Editorial |
Uma linha de silêncio pelas professoras e professores que perdemos para a Covid-19 – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
Uma linha de silêncio pelas pessoas que as professoras e professores perderam – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
Uma linha de silêncio pelas/os estudantes que não voltaram à escola depois da pandemia – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – – –
Um “salve” às professoras e aos professores que buscaram manter o vínculo com estudantes por meio das redes sociais, que buscaram manter o aprendizado, que buscaram manter a esperança e a vida; que retomaram o ensino presencial em meio ao caos, com a demanda inalcançável de recuperar o que ficou perdido e tendo como horizonte um cenário social ainda mais desafiador e desigual.
Essa foi e tem sido a realidade de milhares de redes de ensino no Brasil, entre elas, a Rede Municipal de Educação (RME) de Belo Horizonte – MG. E por onde começar? A que recorrer? Tendo em vista a lógica contemporânea do consumo, que domina também a indústria global de educação (Nóvoa; Alvim, 2021), na qual o saber (Charlot, 2000) está fora do sujeito da docência e, nesse sentido, precisa ser adquirido, lives, sites, cursos, textos e apostilas foram freneticamente consultados na busca por encontrar os novos modos de fazer diante do impossível que atravessou a educação escolar.
No entanto, foi no encontro com as/os estudantes, na escola, em todas as etapas de ensino, que as professoras e os professores parecem ter resgatado o sentido de que aprender requer uma artesania por parte de quem ensina, o que permite afirmar que todo ensino comporta um caráter essencialmente experimental. E é essa dimensão do inédito, constituinte do ato educativo, que se fez visível na educação no período pós-pandemia, deixando mais nítido o quão estas/es profissionais são necessárias/os para se compor uma pedagogia do encontro (Nóvoa; Alvim, 2021).
Aos poucos, a pergunta central, sobretudo na educação pública, deixa de ser “como voltar à normalidade?”, e passa a ser “como inventar o presente?”. E é a isso que esta edição especial da Revista Brasileira de Educação Básica se refere.
Ela começou a se desenhar a partir do convite[1] feito às/aos profissionais da Educação Básica durante a 3ª edição[2] do “Congresso de Boas Práticas dos Profissionais da RME de Belo Horizonte – Socializando Experiências e Conectando Saberes”, realizado nos dias 3, 4 e 5 de novembro de 2022, o qual teve trabalhos inscritos, selecionados e apresentados em formato de comunicação oral e pôster. O convite foi para que as/os participantes transformassem suas apresentações em artigos a serem publicados nesta edição especial.
Apoiadas no pensamento Nóvoa e Alvim (2021), referente à questão da autoria pedagógica como decisiva para se pensar as mudanças na educação e na escola, sendo esta uma maneira de nos envolvermos coletivamente na produção de futuros, interessava-nos conhecer e enunciar as invenções destas/es professoras/es, produzidas neste período de incertezas. E o Congresso significou uma grande oportunidade de acessar estes “fazeres”.
Primeiramente, é preciso dizer que toda prática pedagógica se pretende “boa”, ou seja, cotidianamente, as/os profissionais da educação estão buscando alcançar a construção de conhecimentos por parte das/os estudantes, de formas tradicionais ou inventivas, sempre subsidiadas pela singularidade da experiência acumulada e pela formação. O fato de socializar ou não suas práticas diz respeito, entre outros fatores, ao tempo para o registro destas práticas, às condições para produzir esse registro, às formas como esses registros são acolhidos e os espaços disponíveis para que eles sejam socializados.
É preciso destacar que as “boas práticas” acontecem todos os dias, apesar das condições de trabalho e das constantes ameaças de perdas de direitos fomentadas pela lógica capitalista neoliberal, que trata como privilégio as conquistas alcançadas pela categoria docente por meio de lutas históricas.
Nesse sentido, os doze artigos que nos chegaram a partir da chamada para esta edição especial, e que se encontram agora publicados, representam também toda uma categoria, uma rede de ensino, um tempo histórico, um presente, bem como algumas pistas para o futuro.
Os artigos, produzidos em sua maioria coletivamente, contaram com a participação de dezesseis professoras e dois professores que trabalham em escolas localizadas em seis das nove Regionais Administrativas de Belo Horizonte. Referem-se a práticas pedagógicas desenvolvidas junto às crianças na Educação Infantil e junto aos estudantes dos três Ciclos de aprendizagem do Ensino Fundamental; a práticas de formação docente em serviço, por meio de um grupo de estudo sobre alfabetização e letramento, e de análise e atualização do Projeto Político Pedagógico da escola; e a ação direcionada às famílias e comunidade escolar, visando à comunicação do cotidiano dos processos pedagógicos realizados com as/aos estudantes.
Os temas contemplam a leitura e a escrita, língua portuguesa, matemática e educação financeira, arte, cultura e lazer; estratégias de aprendizagem a partir de “enturmação flexível” e de atividades significativas no reforço escolar; projetos de horta e de educação para as relações étnico-raciais, na perspectiva da decolonialidade do currículo; uso de redes sociais com fins pedagógicos referentes aos projetos escolares; e a importância da instituição e permanência de tempos e espaços coletivos de discussão da prática educativa.
Para complementar este conjunto de artigos e temas, convidamos professoras e professores, através das redes sociais, a produzir e encaminhar imagens do cotidiano profissional na escola, no trajeto, nos arredores e afins, como forma de dizer sobre as suas experiências por outra via de linguagem. Tais imagens estão compondo a abertura deste editorial, de certa forma, simbolizando os afetos e territórios que constituem o cenário das práticas aqui registradas. E uma das imagens, enviada pelo professor Daniel Borges, se tornou a capa da edição, pela sua capacidade de transmitir a presença viva no espaço escolar.
Além disso, a edição conta com um ensaio escrito por uma professora da rede, atuante no 1º e 2º Ciclo, abordando, de modo sensível e crítico, a relevância e os entraves envolvidos na tarefa de registro e compartilhamento do fazeres docentes por parte das/os professoras/es da Educação Básica. Tema também discutido no artigo escrito por Maria Lúcia de Resende Lomba e Libéria Neves, duas pesquisadoras atuantes no campo da formação docente ,a partir do levantamento de dados produzidos por meio de duas perguntas encaminhadas e respondidas por dezenove professoras/es da RME de BH: 1. Quais os desafios você encontra para registrar e comunicar as suas práticas pedagógicas? 2. Se você já registra e divulga a sua própria prática pedagógica, nos diga como tem feito e qual a mudança pessoal e/ou profissional você considera que tem sido mais significativa a partir desse processo de registrar e tornar pública a sua própria prática.
Visando fomentar a discussão referente aos desafios da prática docente nesta rede de ensino (como em tantas outras), buscou-se a realização de entrevistas com duas professoras – uma que se aposentou pela Faculdade da Educação da UFMG, na área de Didática, e exerceu o cargo de Secretária de Educação na referida rede (entre 2017 e 2023); a outra, professora de Artes, moradora de um quilombo, na cidade de Belo Horizonte, atuante num dos três coletivos que compõem a gestão compartilhada do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal de BH. Tais entrevistas, registradas em vídeo, trazem defesas e denúncias, a partir de pontos de vista peculiares às posições de onde se vê a educação – da gestão pública e da sala de aula – , havendo um ponto de intercessão entre estes dois olhares: a constatação de que ser professora e professor, hoje, é uma tarefa extraordinária, no sentido daquilo “que foge do usual ou do previsto; que não é ordinário; fora do comum[3].”
A educação talvez comporte algo de extraordinário a cada época, tendo em vista o fato de a escola ser um espaço atravessado pelo novo, trazido por cada geração, quer seja em relação às características cognitivas, configuradas a partir dos objetos da cultura, ou em relação aos aspectos emocionais, configurados a partir das demandas sociais e econômicas, hoje, reforçadas pelos objetos. Esse extraordinário na educação é o que Freud (1980) nomeou de “impossível” – aquilo que, no outro, escapa ao controle da tarefa de educar e, por isso, causa angústia a quem educa.
São muitos os elementos que configuram o mundo contemporâneo como nada ordinário – tecnologias digitais, redes sociais, a infodemia, expressões da violência, guerras, polarizações, consumismo, mudanças climáticas, mudanças em relação ao trabalho, ao gênero, ao sexo, à família, às instituições, ao Estado, ao tempo, entre tantos outros, numa velocidade inalcançável. Em meio a tudo isso, um atravessamento súbito impôs o distanciamento social por dois anos, deixando sequelas ainda não nomeáveis.
Isso tudo constitui também o impossível na educação do nosso tempo. Freud (1980), entretanto, não traduziu o impossível em irrealizável, pelo contrário, sugeriu a possibilidade a partir da invenção particular de cada um/a diante da tarefa educativa. E é isso o que muitas professoras e professores têm alcançado.
Nesse sentido, esta edição especial se constitui a partir de autoras e autores interessadas/os em partilhar suas invenções, e traz como objetivo fazer circular esse conjunto de experiências, as quais representam tantas outras que não estão registradas (ainda), embora sejam criadas cotidianamente nas milhares de redes de ensino do Brasil. Esse objetivo comporta também a perspectiva de que compartilhar experiências e investigações congrega um caráter formativo para quem o faz e para quem acessa – as leitoras e leitores.
Portanto, desejamos a todas/os ótimas leituras.
Referências
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
FREUD, Sigmund. Análise terminável e interminável. In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p. 239-287. v. 23.
NÓVOA, António; ALVIM, Yara Cristina. Os professores depois da pandemia. Educ. Soc.,Campinas, v. 42,2021.Disponível em:https://doi.org/10.1590/ES.249236. Acesso em: 6 nov. 2023.
[1] O convite foi feito presencialmente pela Profa. Libéria Neves.
[2] A 1ª edição ocorreu em 2018 (https://sistemaseducacao.pbh.gov.br/boaspraticas/default/trabalhos_anais/2018) e a 2ª edição em 2019 (https://sistemaseducacao.pbh.gov.br/boaspraticas/default/trabalhos_anais/2019). A 3ª edição teve como marca o retorno ao ensino presencial pós-pandemia de Covid-19 (https://sistemaseducacao.pbh.gov.br/boaspraticas/default/trabalhos_anais/2022).
[3] Compilado de respostas presentes nos dicionários on-line de Língua Portuguesa.
Organizadoras:
Libéria Neves
Professora da Faculdade de Educação da UFMG, onde também concluí Mestrado e Doutorado na área de Psicanálise e Educação.
Contato: liberianeves@gmail.com
Maria Lúcia de Resende Lomba
Pós-doutoranda (2023/2025) em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pós-doutora em Educação pela Universidade de Lisboa, Portugal. Doutora em Educação pela UFMG, na Linha de pesquisa Infância e Educação Infantil. Coordenadora do Grupo de Estudos e Escrita de Profissionais e Pesquisadores da Educação Básica – GEEPPEB. Editora/organizadora dos dois volumes do livro Relatos e vivências de profissionais na Educação Infantil: reflexões sobre a docência (2021, 2023).
Contato: mlresende@gmail.com