Paulo Freire: Um educador para os tempos atuais
Sérgio Haddad
É economista, pedagogo, com mestrado e doutorado em Educação. Foi professor visitante na Universidade de Oxford, Inglaterra. Ex professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC-SP e da Universidade Caxias do Sul. Atualmente trabalha da ONG Ação Educativa. Foi presidente da ABONG – Associação Brasileira das ONGs e do Fundo Brasil de Diretos Humano. Participou da Comissão Nacional de Educação de Adultos, do Conselho de Educação Básica da CAPES e do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da Presidência da República. É pesquisador sênior do CNPQ. Recentemente publicou a obra O Educador: um perfil de Paulo Freire.
Em 29 de maio de 1994, em uma longa entrevista publicada no caderno Mais, da Folha de São Paulo, em resposta às jornalistas Marilene Felinto e Mônica Rodrigues Costa sobre as razões de o seu método não ter erradicado o analfabetismo no Brasil, Paulo Freire responderia:
Tu sabes que, em tese, o analfabetismo poderia ter sido erradicado com ou sem Paulo Freire. O que faltou, centralmente, foi decisão política. A sociedade brasileira é profundamente autoritária e elitista. Para a classe dominante reconhecer os direitos fundamentais das classes populares não é fácil. Nos anos 60 fui considerado um inimigo de Deus e da pátria, um bandido terrível. Pois bem, hoje eu já não seria mais considerado inimigo de Deus. Você veja o que é a história. Hoje diriam apenas que sou um saudosista das esquerdas. O discurso da classe dominante mudou, mas ela continua não concordando, de jeito nenhum, que as massas populares se tornem lúcidas.
Acusado de comunista nos anos 1960, Paulo Freire preparava um programa nacional de alfabetização a ser implantado pelo governo de João Goulart quando foi preso e exilado pelos militares protagonistas do golpe de 1964. O programa nasceria como decorrência da experiência realizada no ano anterior pelo governo do Rio Grande do Norte, na cidade de Angicos, com cerca de 400 jovens e adultos, sob a coordenação e inspiração do educador, e que acabou por ganhar notoriedade nacional e internacional não só porque o método utilizado realizaria em 40 horas o processo de alfabetização, mas também porque contribuiria para formar cidadãos mais conscientes dos seus direitos e dispostos a participar democraticamente para defendê-los. O método partia de palavras selecionadas entre as questões existenciais dos alunos, fazendo com que se alfabetizassem dialogando sobre as suas condições de vida, como trabalho, saúde, educação, lazer e outros. Unia, portanto, educação, política e cultura, ao tomar as experiências do alunado e seus conhecimentos como parte integrante do ato de educar para participar.
Ao ganhar dimensão nacional, os golpistas intuíram que o programa poderia desestabilizar os poderes constituídos ao colocar, no curto prazo, uma grande quantidade de pessoas em condições de votar (o voto era vetado aos analfabetos), impactando os currais eleitorais, mas também, e principalmente, levando os setores populares a influírem de maneira mais consciente e crítica em seus destinos. Seria necessário, portanto, banir e deslegitimar o método, como também seu autor.
Em 18 de outubro de 1964, alguns dias depois de Paulo Freire ter partido para o exílio, o tenente-coronel Hélio Ibiapina Lima – um dos 377 agentes do Estado apontados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade (2014) por violar direitos humanos e cometer crimes durante o regime militar – divulgaria o texto final do inquérito que comandou, acusando Paulo Freire de ser “um dos maiores responsáveis pela subversão imediata dos menos favorecidos. Sua atuação no campo da alfabetização de adultos nada mais é que uma extraordinária tarefa marxista de politização das mesmas”. Para Ibiapina Lima, Paulo não teria criado método algum e sua fama viria da propaganda feita pelos agentes do Partido Comunista da União Soviética. “É um cripto-comunista encapuçado sob a forma de alfabetizador”, informava o relatório.
Francisco Weffort, na apresentação do livro Educação como prática da liberdade, de Paulo Freire, escrito no Chile, em 1965, onde estava exilado, assim analisaria os fatos ocorridos no Brasil:
Nestes últimos anos, o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra qualquer governo democrático da América Latina, teria alcançado feições reais aos olhos dos reacionários na presença política das classes populares….Todos sabiam da formação católica do seu inspirador e do seu objetivo básico: efetivar uma aspiração nacional apregoada, desde 1920, por todos os grupos políticos, a alfabetização do povo brasileiro e a ampliação democrática da participação popular….Preferiram acusar Paulo Freire por ideias que não professa a atacar esse movimento de democratização cultural, pois percebiam nele o gérmen da derrota.
E acrescentaria: “se a tomada de consciência abre caminho à expressão das insatisfações sociais é porque estas são componentes reais de uma situação de opressão”
Exilado por 16 anos, tendo vivido na Bolívia, Chile, EUA e Suíça, Paulo regressaria em definitivo ao Brasil em 1980, reconhecido internacionalmente como um dos mais importantes educadores. Havia percorrido diversos continentes a convite de universidades, igrejas, grupos de base, movimentos sociais e governos. Durante os últimos dez anos do seu exílio em que trabalhou no Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, Paulo totalizaria ao redor de 150 viagens internacionais para mais de 30 países.
No seu retorno, começaria a dar aulas na Pontifica Universidade Católica de São Paulo e na Unicamp. Em fins de 1988 seria convidado pela prefeita eleita de São Paulo Luiza Erundina para ser seu Secretário Municipal da Educação nas primeiras eleições municipais depois da nova Constituição. As eleições daquele ano marcariam o início da ascensão dos governos de oposição aos grupos que se mantinham no poder desde o golpe militar, com o PT governando vários municípios, posteriormente estados, e, finalmente, assumindo a Presidência da República com as eleições de Lula e Dilma. Frente às inúmeras pressões que recebia, Paulo Freire não completou sua gestão como secretário, passando o cargo para o filósofo Mário Sérgio Cortella, seu chefe de gabinete, em 1991. Suas orientações, no entanto, foram mantidas até o final da gestão, e acabariam por influenciar outros municípios e governos estaduais no campo da democratização da gestão e das inovações pedagógicas. A presença do educador, ao assumir um cargo público de um governo de esquerda, voltaria a incomodar parcelas da sociedade que não deixaram de desqualificá-lo durante todo o período que permaneceu no cargo.
No dia primeiro de maio de 1997, Paulo, com a saúde fragilizada, daria entrada no Hospital Albert Einstein em São Paulo para fazer uma angioplastia, mas complicações na reabilitação o levariam à morte no amanhecer do dia 2 de maio de 1997.
Paulo Freire seria agraciado em vida e in memoriam com 48 títulos de doutor honoris causa por diversas universidades no Brasil e no exterior. Instituições de ensino de várias partes do mundo o convidaram para tê-lo no corpo docente. Foi presidente honorário de pelo menos 13 organizações internacionais.
Diversos outros títulos, homenagens e prêmios lhe seriam concedidos em vida e depois da morte: mais de 350 escolas espalhadas pelo Brasil e exterior receberiam seu nome, assim como diretórios e centros acadêmicos, grêmios estudantis, teatros, auditórios, bibliotecas, centros de pesquisa, cátedras, ruas, avenidas, praças, monumentos e espaços de movimentos sociais e sindicais. Paulo inspiraria estátuas e pinturas em sua homenagem, além de letras de músicas e enredos de escola de samba. Inúmeros prêmios e condecorações foram criados com seu nome.
Em 1995, seria indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Em 13 de abril de 2012, Paulo seria declarado Patrono da Educação Brasileira por iniciativa da agora deputada federal Luiza Erundina.
Seus livros se espalharam pelo mundo. Pedagogia do Oprimido foi traduzido para mais de vinte idiomas. Quase todos podem ser encontrados na língua inglesa ou espanhola, alguns em italiano, francês e alemão. Há traduções para valenciano, coreano, japonês, hindi, ídiche, hebraico, sueco, holandês, indonésio, dinamarquês, ucraniano, finlandês, paquistanês e basco. Pedagogia da autonomia, sua última obra, foi um dos livros mais vendidos de seu tempo no Brasil, atingindo, em 2005, depois de oito anos do seu lançamento, a marca de 650 mil exemplares. Seu legado vem se multiplicando em novos textos, vídeos, filmes e entrevistas. Vários centros de documentação e de promoção do seu pensamento podem ser encontrados pelo mundo.
Estudo de junho de 2016, do professor Elliott Green, da London School of Economics, afirmou que Pedagogia do Oprimido era a terceira obra mais citada em trabalhos da área de humanas, à frente de pensadores como Michel Foucault e Karl Marx. Pedagogia do Oprimido é também o único título brasileiro a aparecer na lista dos 100 livros mais requisitados nas listas de leituras exigidas pelas universidades de língua inglesa. Em dezembro de 2018, a reconhecida revista Revue internationale d’éducation de Sèvres fez um balanço dos principais educadores da humanidade. Lá estava Paulo Freire, acompanhado, entre outros, por Rousseau, Condorcet, Vygotsky, Dewey, Montessori e Grundtvig.
A despeito de tão vasto reconhecimento, que o coloca entre os pensadores mais importantes da atualidade, Paulo Freire voltaria a ser atacado e desqualificado. Em 2013, ano anterior à realização da Copa do Mundo no Brasil e às eleições presidenciais em que Dilma se candidataria para um segundo mandato, a população tomaria as ruas de várias cidades do país para exigir a revogação do aumento das passagens do transporte público. Como um rastilho de pólvora, os jovens do Movimento Passe Livre detonariam um processo reivindicatório muito mais amplo e abrangente por efetivação e manutenção de direitos, por reduções de tarifas e aumentos de salários, mas também contra políticos e partidos que se misturavam numa confusa diversidade de opiniões, resultando em um concerto dissonante de demandas. O apoio da população ao governo Dilma e de outros governantes cairia vertiginosamente em consequência desses atos, que cobravam hospitais e escolas padrão FIFA, numa clara crítica aos elevados gastos com estádios de futebol.
As manifestações voltariam a se repetir após as eleições presidenciais de 2014, quando Dilma Rousseff derrotou o candidato Aécio Neves, do PSDB, numa apertada vitória contestada por seu adversário, levando a oposição a boicotar o governo desde os primeiros dias. Ato contínuo, para decepção de parte daqueles que a apoiaram, Dilma sinalizaria um forte ajuste fiscal, fragilizando ainda mais o seu governo. No início de 2015, novas manifestações se intensificariam nas grandes cidades, agora pedindo o impeachment da presidenta, radicalizando posições antidemocráticas, manifestadas em cartazes com palavras de ordens homofóbicas, racistas, machistas, e com setores defendendo abertamente uma intervenção militar. Uma onda conservadora tomaria conta do país em manifestações contra o PT, seus militantes e suas políticas, aumentando a intolerância no debate político. Entre as palavras de ordem dos manifestantes, uma chamaria a atenção: “Chega de doutrinação marxista, basta de Paulo Freire!”.
Com a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, as críticas ao educador e ao seu pensamento retornariam de forma contundente, estimuladas pelo filósofo Olavo de Carvalho, de quem o presidente era seguidor. Durante a campanha eleitoral, em agosto daquele ano, em uma palestra para empresários no Espírito Santo, o então candidato afirmaria: “A educação brasileira está afundando. Temos que debater a ideologia de gênero e a escola sem partido. (Vou) Entrar com um lança-chamas no MEC para tirar o Paulo Freire de lá” e complementou: “eles defendem que tem que ser crítico. Vai lá no Japão, vai ver se eles estão preocupados com o pensamento crítico”. Em seu programa de governo para a Educação, Bolsonaro defendeu expurgar o educador das escolas. Seus dois ministros da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, ambos indicados por Olavo de Carvalho, não deixaram de lado o discurso de combate ideológico e guerra cultural contra Paulo Freire.
Paulo Freire voltaria a ser foco dos setores conservadores e atrasados da sociedade brasileira, desta vez com forte apoio das redes sociais, empenhadas em desqualificar e banir o seu pensamento. Criticavam a qualidade literária dos seus textos e a sua pedagogia, acusando-a de proselitismo político em favor do comunismo; responsabilizavam o educador pela piora na qualidade do ensino, argumentando que quanto mais se lê e se estuda Freire nas universidades, mais a educação no Brasil anda para trás; afirmavam que seus escritos estavam ultrapassados e que o lugar de fazer política é nos partidos e não nas escolas.
Paulo Freire nunca foi comunista, nunca pregou uma educação partidária nas escolas e a crítica à qualidade literária dos seus livros não se sustenta. Tais opiniões são proferidas por setores atrasados, que desrespeitam a pluralidade de ideias, sem compromisso com os ideais democráticos de liberdade de opinião. Não reconhecem no educador um interlocutor consagrado e respeitado, tendo lido ou não as suas obras, concordando ou não com o seu pensamento.
Freire acreditava no diálogo como método de apreensão do conhecimento e aumento da consciência cidadã. Defendia que os educandos fossem ouvidos, que exprimissem as suas ideias como exercício democrático e de construção de autonomia, de preparação para a vida. Propunha o diálogo efetivo, crítico, respeitoso, sem que o professor abrisse mão da sua responsabilidade como educador no preparo das suas aulas e no domínio dos conteúdos. Era contra a educação de uma via só em que o professor dita aulas e o aluno escuta, o primeiro sabe o segundo não sabe, um é sujeito e o outro objeto, como detalhou em “Pedagogia do Oprimido”. Para ele, todos tinham o que aportar neste processo de diálogo, assim como todos aprendiam em qualquer processo educativo: “não há docência sem discência”, afirmaria.
Freire foi criticado também por setores progressistas, classificando-o como idealista, por sua linguagem com ênfase no masculino nos primeiros trabalhos, por ser contra o aborto, por desconsiderar os conteúdos nos processos educativos, pela insuficiência do seu método.
O educador nunca foi unanimidade dos corredores das universidades, e nem esperava por isso. Coerente com o que escrevia e pensava, procurou tratar seus interlocutores e críticos, fossem eles de qualquer espectro, com igual respeito. Aprendia com os diálogos, debates e polêmicas nos quais se envolvia, refazendo muitas das suas posições. Olhava a educação como um produto da sociedade, portanto, reflexo de projetos políticos em disputa, naturais em qualquer sociedade democrática que aposta no debate de ideias para a constituição do seu futuro.
Como cristão comprometido com os mais pobres e discriminados, Paulo Freire bebeu de diversas teorias para realizar pedagogicamente valores que tinham como fundamento ontológico uma profunda crença na capacidade de o ser humano se educar para ser partícipe na construção de um mundo melhor e de acordo com os seus interesses.
Em seu percurso intelectual, não se ateve a uma corrente de pensamento, sendo muitas vezes criticado por isso. Escolhia, dentre as diversas teorias, aquelas que melhor ajudassem a realizar o seu compromisso ético de cristão ao lado dos oprimidos, inclusive o marxismo. Em diálogo com Myles Horton, educador norte-americano, no livro O caminho se faz caminhando, reafirmaria essa postura: “Minhas reuniões com Marx nunca me sugeriram que parasse de ter reuniões com Cristo”.
Quando perguntado, Paulo não se recusava a comentar de forma crítica sobre os abusos do regime comunista. Na mesma entrevista citada no início deste artigo, afirmou que o fim do comunismo no Leste Europeu havia representado uma queda necessária, não do socialismo, mas da sua “moldura autoritária, reacionária, discricionária, stalinista, dentro da qual se pôs o socialismo”. Ao mesmo tempo, como socialista, como se definia, perguntava sobre a qualidade do capitalismo no Brasil: “que excelência é esta que produz 33 milhões de famintos?”
Em 2021, uma série quase infinita de atividades e publicações foi organizada por ocasião do seu centenário de nascimento, no Brasil e em várias partes do mundo, para celebrar e defender o legado de Paulo Freire. Foi também uma resposta à conjuntura conservadora vivenciada no Brasil, que resultou no crescimento e no aprofundamento da leitura da sua obra, além de debates, palestras e novos escritos sobre o seu legado e, principalmente, no reconhecimento da atualidade do seu pensamento para enfrentar os desafios atuais.
Freire deixou um texto inacabado, interrompido pela sua morte, posteriormente publicado por Nita, sua segunda esposa, em Pedagogia da Indignação. Nele, daria voz à sua indignação com o assassinato do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, ocorrida dias antes em Brasília, queimado vivo por cinco adolescentes, na mesma data em que se celebrava o Dia do Índio – 19 de abril de 1997: “Tocaram fogo no corpo do índio como quem queima uma nulidade. Um trapo imprestável.” Refletindo sobre quem seriam os jovens, indagou que exemplos, testemunhos e ética os levariam a essa “estranha brincadeira” de matar gente. “Qual a posição do pobre, do mendigo, do negro, da mulher, do camponês, do operário, do índio neste pensar? ”
Diante do ocorrido, proclamaria pelo dever de qualquer pessoa que educa, de lutar pelos princípios éticos mais fundamentais: “Se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção”, ajudando as novas gerações a serem sérias, justas e amorosas com a vida e com os outros. Concluiria afirmando que “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.
Nada mais atual para enfrentar os desafios colocados para as nossas sociedades nos tempos de agora.