Paulo Freire

Sulear e Esperançar: a América Latina não é, ela está sendo

Eduarda Thaís dos Santos

Eduarda Thaís dos Santos

Bolsista Puic-UNISC Voluntária. Graduanda em História Licenciatura. Universidade de Santa Cruz do Sul- UNISC

e-mail: eduardathaisdosantos@gmail.com

A construção de conhecimentos e do agir de forma crítica são um processo lento e difícil, pois ainda somos educados/as e nos ancoramos na norma colonizadora que utiliza o Norte, de modo ideológico, como orientação. Por isso, nesse texto, busco refletir sobre o verbo Sulear, criado por Marcio D’Olne Campos e utilizado por Paulo Freire como uma “bússola” que aponta para outras perspectivas epistemológicas e metodológicas que levariam ao pensamento anticolonial e crítico, vinculando-o a outro verbo, esperançar. De acordo com Freire, a “promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética”. (FREIRE, 2015, p. 34). Assim, a boniteza é tão necessária quanto a decência. Para esse educador brasileiro, estar sendo é a condição, entre homens e mulheres, para “ser mais”. Por isso mesmo, a boniteza, ou seja, a estética, é parte importante da experiência educativa humanizadora, e, do meu ponto de vista, pode alcançar dimensões anticolonialistas e latinoamericanistas – um encontro com um certo acumulado histórico, como diria Simón Rodriguez[2], com aquilo que corresponde a um pensar autêntico.

A arte, acima, foi produzida por mim, pintada em aquarela e com detalhes em caneta nanquim 0.5. Nela estão representados alguns elementos que inspiraram a construção da obra que nos remete a Paulo Freire como: a América Latina invertida, inspirada em Joaquín Torres Garcia, apontando para o Sul [3] na qual ele levanta o questionamento sobre a valorização do nosso próprio território e cultura –, e seguindo com a representação das marchas, nesse caso, a da agroecologia e dos/das camponeses/as; além do  esperançar, que pode ser encontrado nos olhos de quem ad-mira.

Para refletirmos sobre isso, precisamos retomar a obra “Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido”, pois é nela que identificamos o verbo “Sulear”, criado pelo físico Marcio D’Olne Campos. Em diálogo com Freire, Campos reflete sobre o senso comum em torno do termo “Nortear” como um guia de caráter ideológico. “Norte é Primeiro Mundo. Norte está em cima, na parte superior, assim Norte deixa “escorrer” o conhecimento que nós do hemisfério Sul ‘engolimos sem conferir o contexto local’”. (FREIRE; 1992, p. 113, apud CAMPOS, 1991, p. 59-61). Com isso, observamos o modo como Freire, inspirado no amigo, passa a entender o sentido crítico da orientação Norte e da orientação Sul. Assim, sulear sugere um novo rumo dentro do nosso contexto de “terceiro-mundista”, ou seja, de latino-americanos. Nesse contexto, sem seguir normas impostas por quem vem de “cima”, a orientação é a de construir um guia próprio, um pensar e um fazer autêntico, porém sem estabelecer algum tipo de inversão de superioridade e de introjeção de valores colonizadores, como se fosse possível reproduzir a lógica de “[…]importação de modelos de fora […]. Para Freire, era preciso substituir as receitas transplantadas, a autovalorização, a autodesconfiança e a inferioridade que amortecem o ânimo criador das sociedades dependentes.” (ADAMS, 2018, p. 444).

Dito isso, observamos que Paulo Freire tem uma relação e análise crítica com relação à América Latina, pois existe ainda a vinculação de dependência do “Sul” pela exploração e expropriação do “Norte”. Assim, “Freire sugere que, ao invés de homenagear os invasores, se homenageassem os que lutaram e continuam até hoje lutando contra as invasões, nas lutas dos conquistados.” (ADAMS, STRECK, 2018, p. 38). É interessante analisar nessa crítica que, até hoje, tem-se uma imagem de quem são os referentes dos conquistadores, e não os dos “esfarrapados do mundo”. Dito de outro modo, mantém-se um vínculo através de uma história de dominação, e não de libertação, como fio invisível e estrutural que parece nos prender cada vez mais a situações-limites, de vulnerabilidades, caraterísticas terceiro-mundistas, de dependentes.

Desse modo, o verbo sulear nos lembra que também temos nossos meios, nossa história, nossa expressão e arte em marcha, que de certa forma é única, porém invisibilizada e desconsiderada, até mesmo pelos nossos/as “irmãos e irmãs”. Freire refletiu sobre isso na perspectiva de nos vermos no mundo e como é necessário para a nossa construção de conhecimento. No livro “Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa” diz que

[…] O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da história. (FREIRE, 2015, p.53).

É importante entender quem somos dentro do mundo, pois as nossas visões sociais de mundo também são relevantes para construirmos pontes para uma educação libertadora, portanto, como sujeitos que fazem história constantemente. Reconhecer isso é essencial para sulear, mas não somente ver com olhos mais sensíveis e ingênuos o que temos, como também de modo crítico. Nosso mundo também é caótico partindo da ideia de que a colonialidade se estende até os dias atuais, quando pensamos que ainda existem métodos como a monocultura e a cultura de exportação (com foco maior na exportação do que nos recursos do próprio país), apesar de não sermos mais uma colônia dependente de uma metrópole, além da insistente ideia de evolução de países do Norte de “primeiro mundo” comparados aos de “terceiro mundo”, reforçando os laços de dependência nunca rompidos. Isso acontece, inclusive, ao não reconhecermos os conhecimentos de nosso próprio país, como o caso de Paulo Freire, que, apesar de influenciar muitos países com a Metodologia Freireana, no próprio ela não é utilizada e até mesmo banida, de modo autoritário. Claro que são países com recursos diferentes dos nossos, mas qualquer ideia com cunho freireano nos ensinos formais é vista de modo negativo, devido também à situação caótica do país.

Apesar dessas dificuldades, Freire inspirou e inspira muitas pessoas e grupos que se tocam com a amorosidade. Como é vastamente conhecido, algumas obras foram criticadas como sexistas por algumas feministas, tanto estadunidenses como brasileiras, que criticaram a linguagem machista presente em alguns de seus escritos. A professora e pensadora bell hooks foi uma delas, que inclusive tem inspiração imensa por ele, e cita que Paulo Freire, em “Ensinando a transgredir: A educação como prática da liberdade”, saciou sua sede num momento em que ela estava refletindo criticamente sobre questões interseccionais, inclusive ela cita Paulo Freire como sendo um elo entre o processo de descolonização (e, descolonialização) a partir da conscientização. Segundo hooks:

[…] Paulo Freire foi um dos pensadores cuja obra me deu uma linguagem. Ele me fez pensar profundamente sobre a construção de uma identidade na resistência. Uma frase isolada de Freire se tornou um mantra revolucionário para mim: ‘não podemos entrar na luta como objetos para nos tornarmos sujeitos mais tarde.’ Realmente é difícil encontrar palavras adequadas para explicar como essa afirmação era uma porta fechada – e lutei comigo mesma para encontrar essa chave – e essa luta me engajou num processo transformador de pensamento crítico. Essa experiência posicionou Freire, na minha mente e no meu coração, como um professor desafiador cuja obra alimentou minha própria luta contra o processo de colonização – a mentalidade colonizadora. (HOOKS, 2017, p.66-67).

A partir disso, podemos dizer que Freire inspirou muitas pessoas e, juntamente com Campos, encontrou o verbo que faltava para o nosso vocabulário emancipador: sulear. Afinal, a luta é pela nossa identidade coletiva, sem a visão imposta libertadora da colonização e da colonialidade. Como foi o caso de hooks, também é um processo demorado até encontrarmos a “chave” para nos entendermos enquanto sujeitos e não objetos. Por isso, o pensamento crítico e a ação dialógica a educação libertadora é de essencial para uma educação libertadora. A consciência é, assim, ação.

A conscientização é uma das formas de levar as marchas, que é um conceito presente nas obras de Paulo Freire e podem ser analisadas numa perspectiva de organização dos sujeitos em coletivos, em movimento social, como o caso dos trabalhadores e  trabalhadoras do campo, que são representados juntamente na arte, pois o que chega no nosso prato também é político. Dentro dessas marchas também existe educação e vivência na práxis que acaba sendo colocada de lado ou desconsiderada como um conhecimento.

Considerações finais    

Essa perspectiva vai além da busca de direitos individuais para a consciência de classe, também vai “suleando” para o processo de práxis, ação e reflexão. Desse modo, espero ter contribuído com reflexões nos “suleandos” para uma educação libertadora. Não somente pelas palavras, mas também pelas experiências e outros modos de expressão, como, nesse caso, a arte.  É preciso pensar em uma educação de qualidade para além do nosso meio “formal” que consiga transgredir. Deixamos uma última citação de Freire:

O poder dominante, entre muitas, leva mais uma vantagem sobre nós. É que, para enfrentar o ardil ideológico de que se acha envolvida a sua mensagem na mídia, seja nos noticiários, nos comentários aos acontecimentos ou na linha de certos programas, para não falar na propaganda comercial, nossa mente ou nossa curiosidade teria de funcionar epistemologicamente o tempo todo. (FREIRE, 2015, p.137).

Dessa forma, concluímos que Freire nunca escondeu sua admiração pela América Latina, e sempre criticou essa relação transplantada de modelos europeus, dando as costas para a própria realidade e ambiente totalmente diferente e muitas vezes refém desse pensamento sem autonomia. É frustrante, porque não faz sentido aprendermos que a América Latina na história sempre parte do ponto de vista do colonizador, como se tudo foi entregue de mão beijada, mas após a Independência estaríamos livres, é o contrário de “vitimização”, como chamam, e sim uma perspectiva crítica de que esse não é o nosso lugar, de modo a também buscarmos essa admiração no processo de autorreconhecimento e assim esperançar com as demais possibilidades de educação que seja orientada para a libertação. Não faz sentido “nortearmos” (no sentido ideológico da palavra), se deixamos os nossos legados para trás. O povo é o Sul, também o que vem até o nosso prato, nossos saberes tradicionais, e isso também é educação e história. Comer, plantar, amar, educar: verbos da luta de quem ainda resiste e não se vende. Precisamos sulear para esperançar. 

Referências

ADAMS, T; STRECK, D. América Latina. In: STRECK DR, REDIN E, ZITKOSKI JJ, organizadores. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica; 2018. p. 37-39.

ADAMS, TELMO. Sulear. In: STRECK DR, REDIN E, ZITKOSKI JJ, organizadores. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica; 2018. p. 444-445.

CAMPOS, MÁRCIO D’OLME. “A Arte de Sulcar-se”, In: SCHEINER, TERESA [org.]   Comunidade pela Educação Ambiental, Manual de Apoio ao Curso de Extensão Universitária. Rio de Janeiro: Uni-Rio/Tacnet, Cultural, 1991. p. 59-61

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017. p. 66-67.

[1] Este trabalho é uma versão ampliada do texto outras expressões; “Sulear para esperançar: Paulo Freire um terceiro-mundista latinoamericano” apresentado no Fórum Paulo Freire de 2021 .

[2] Simón Rodriguez (1771-1854) foi um educador venezuelano que, além de amigo de Simón Bolivar, foi seu professor. É considerado um dos grandes humanistas da América Latina, colocando no centro de suas discussões uma educação livre e emancipada, inventiva e autônoma. Para ele, educar é formar as consciências para uma “conduta social” para o bem de todos.

[3]“Nuestro norte es el nuestro sur” criada por Joaquím Torres Garcia em 1935, é uma crítica à dependência histórica que foi imposta para a América Latina, numa ideia de inversão e valorização. 

SANTOS, Eduarda Thais dos. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 5, Número Especial Paulo Freire, setembro, 2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Eduarda Thaís dos Santos

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