Gênero e Feminismo no ambiente escolar na perspectiva Freireana: relato de Experiência
Maria Inês de Oliveira Sousa
Pedagoga e mestranda em Educação (UFMG). Bolsista do Programa Pensar Educação Pensar o Brasil (UFMG)
e-mail: ines.sol1@hotmail.com
Introdução
Sabe-se que a escola assume um papel fundamental no processo de transformação social da sociedade. Nesse processo ela não deve ficar neutra diante dos diversos momentos e tipos de opressão em que vivemos. Porém, o ensino tradicional, moldado apenas pelo currículo disciplinar, impossibilita a transformação e impede que os conteúdos dialoguem com as vivências dos educandos, fragmentando o conhecimento e levando à própria fragmentação do ser humano na busca de desarmá-lo na luta contra as diferentes formas de dominação (ANDRADE, 1998).
É preciso urgentemente que a escola se reinvente e “vá se tornando um espaço acolhedor e multiplicador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros, não por puro favor, mas por dever” (FREIRE, 1993, p. 60) e que o professor seja capaz de desenvolver sua prática pedagógica atrelada a uma educação libertadora e transformadora. A educação tem o poder de mudar vidas, porém isso só ocorre através do ensino crítico, em que os educandos consigam perceber como as relações de poder e opressão interferem em suas vidas.
Dessa forma, partindo da concepção de educação libertadora proposta por Freire, foram realizadas com algumas adolescentes da EEM Professora Carmosina Ferreira Gomes, localizada no bairro Sumaré, periferia de Sobral/CE, oficinas pedagógicas com objetivo de aprofundar, problematizar e contextualizar as concepções das jovens sobre as desigualdades de gênero por elas vivenciadas, fazendo com que consigam não apenas identificar as interfaces do machismo e do preconceito em seu cotidiano, mas também construir formas de combatê-las.
Primeiros passos: a escola, o contato com as adolescentes e o início das reflexões.
Comecei a trabalhar na EEM Professora Carmosina Ferreira Gomes, situada no bairro Sumaré, na cidade de Sobral – CE, como professora substituta. A escola, bem como o bairro, é marcada por fortes estigmas e pré-conceitos. Enquanto ela era tida, dentro da cidade, como espaço de baixa qualidade de ensino e com uma infraestrutura precária, o bairro era tido como violento e local de facções, em especial pelo fato de ser um território onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) estava organizado.
Porém, tais estigmas não representavam a diversidade presente no bairro, que conta com grupos organizados de jovens que cobriam um largo espectro de atividades, desde movimentos vinculados à cultura hip hop, à dança contemporânea, à swingueira a grupos de jovens vinculados a iniciativas religiosas e esportivas.
A convivência com os adolescentes, especialmente com as alunas, se intensificou a partir da minha mudança para o bairro. Enquanto mulher e professora dessas alunas, essa experiência foi um espaço de aprendizagem e de transformação pessoal e profissional. Enquanto moradora do mesmo bairro, os alunos ficavam perplexos por sua professora fazer parte daquele território marginalizado e tido como violento. Durante o convívio e diálogo com as adolescentes, percebi como as desigualdades nas relações de gênero eram manifestadas naquele espaço e como a escola ficava omissa a essas discussões.
Tais observações estavam vinculadas também à minha trajetória acadêmica, visto que meus estudos e pesquisas eram voltados para os estudos de gênero e sexualidade, em especial na educação infantil. Na educação infantil essas temáticas ainda são um tabu. As crenças culturais e pessoais de famílias e professores dificultam a abordagem dessas discussões em sala de aula, para piorar, o docente ainda ocupa o papel de vigiar ou punir crianças que transgridem os padrões heteronormativos.
No ensino médio há uma mudança de cenário. Na maioria das vezes o professor não consegue exercer esse papel punitivo e os alunos transgridem as imposições sociais das normas de gênero. Por não seguirem esses padrões, logo são classificados como rebeldes, porém, é necessário que “[…] o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o imuniza contra o poder apassivador do bancarismo.” (FREIRE, 2020, p. 27).
O ambiente escolar pode ser um espaço de formação ou deformação quando apenas visa reproduzir uma educação bancária e busca se “neutralizar” a respeito dos debates sociais que permeiam nossa sociedade, especialmente questões de gênero, feminismo e sexualidade. Sabe-se que não é fácil abordar essas temáticas em sala de aula, mas “é preciso e urgente que a escola vá se tornando um espaço acolhedor” (FREIRE, 1993, p. 60) das diferenças.
Em sala de aula eu trabalhava com textos e músicas que abordavam pautas sociais, dentre elas, a construção social da mulher no mundo patriarcal. Nas aulas, os alunos, especialmente as alunas, conseguiam identificar as formas de opressão a que estavam sujeitos e, dessa forma, traziam seu dia a dia e a forma como as relações de gênero estavam implicadas nas suas vidas. Após as discussões em sala de aula, as alunas solicitaram-me que desse continuidade aos estudos e discussões sobre questões de gênero e feminismo. Então, foram organizadas oficinas pedagógicas sobre as lutas feministas e questões de gênero interligadas às suas vivências.
As oficinas pedagógicas e as palavras geradoras
Realizadas semanalmente à tarde, as oficinas tinham duração de duas horas e eram realizada na mesma escola onde as alunas estudavam. Os encontros eram um espaço em que as adolescentes compartilhavam suas experiências e afetos. Portadoras de conhecimentos fundados na sua cultura e nas suas experiências nas oficinas, as adolescentes trouxeram palavras que estavam no seu dia a dia, mas ainda não tinham dimensão dos seus significados e contexto histórico. Baseando-se no método de Freire (1987), as palavras geradoras são extraídas do universo vocabular dos sujeitos e “são chamadas geradoras porque, através da combinação de seus elementos básicos, propiciam a formação de outras” (p.6) e são carregadas de significados que configuram situações existenciais em que o sujeito está inserido. Assim, as palavras trazidas e carregadas de elementos da realidade em que as adolescentes viviam eram: violência, trabalho doméstico e “jeitos de se vestir”.
A partir dessas palavras começamos a discutir as relações de gênero, feminismo, sexualidade e o machismo a partir do local de mulher na periferia. Por acreditar que a educação é um processo dialético e político, minha prática educativa buscou ser “pautada na formação crítica dos/as educandos/as, o que não pode ocorrer por meio do simples depósito de conteúdo, mas sim pela problematização dos sujeitos em suas relações com o mundo.” (Freire, 1987 p. 26).
Os relatos de violência que as jovens sofriam ou ainda presenciavam mostram como a violência de gênero, seja na sua forma física ou simbólica, faz parte de seu cotidiano. Em relação ao trabalho doméstico, as meninas já traziam consigo profundos desconfortos por as mulheres em suas casas serem as principais responsáveis pelos trabalhos de limpeza e cuidados com as crianças enquanto os homens em raros casos tomavam isso para si. Nossos debates nos levaram a refletir sobre essa situação, partindo desde nossos modos de criação, em que as meninas e meninos têm educações distintas, situando a necessidade das mulheres de ocuparem espaço não apenas no mercado de trabalho, mas também nos espaços públicos e por fim questionando o status de inferioridade que tais iniciativas tinham.
As jovens também trouxeram um profundo incômodo com a maneira como seus jeitos de se vestir eram tratados. Buscamos refletir as causas e os efeitos dessa situação, questionando a moral da sociedade e a própria tentativa de controle dos corpos das mulheres, desde a questão do controle da reprodução, até a erotização do corpo feminino, passando pela construção de um modelo ideal público de presença da mulher na sociedade, sem decotes, com roupas aceitáveis, comportamento pacato e submisso, dentre outros.
Além de problematizarmos as palavras geradoras trazidas pelas adolescentes, também utilizamos a exibição de um curta-metragem chamado “Acorda Raimundo, acorda! ”. Nele as desigualdades de gênero que as mulheres enfrentam perante a sociedade são abordadas usando recursos audiovisuais ao inverter os papéis estereotipados do homem e da mulher.
A exibição do curta-metragem colaborou para que as adolescentes relatassem seu cotidiano juntamente com as discriminações enquanto sujeito mulher no bairro.
Os resultados das oficinas
Ao conceituar e problematizar as palavras que estavam no cotidiano das adolescentes, elas conseguiam identificar as formas de opressão a que estavam submetidas nos espaços públicos e privados. As palavras geradoras foram instrumento importante para que as alunas compreendessem as lutas e os avanços das conquistas das mulheres.
Essas palavras do cotidiano das adolescentes representam uma forma de compreensão de mundo de como as mulheres estão inseridas nessas relações sociais e estruturais de poder. Durante as oficinas as adolescentes revelaram que sentem o dobro da discriminação pelo fato de serem do sexo feminino e moradoras da periferia. Ainda destacaram que são privadas de lazer, cultura e também impedidas de circular entre os bairros, devido às disputas territoriais entre facções. Mesmo diante dessa realidade, elas manifestam seus desejos de transformar suas vidas por meio do trabalho e do estudo.
No que tange às questões de gênero e feminismo trabalhadas com as adolescentes através do curta-metragem e de imagens de diferentes mulheres “representando” o “modelo” do que é ser mulher entre o passado e o presente, foi uma tentativa de verificar como elas identificavam as situações de opressão, violência e machismo contra as mulheres. Logo não demoraram a perceber que eram submetidas às opressões, que acreditavam ser naturais, devido à forma como foram educadas. Também identificaram esse mesmo processo em relação a suas mães, visto que presenciavam suas mães sendo agredidas de forma física e verbal por seus parceiros.
Entre todos os resultados obtidos na oficina pedagógica, o mais importante foi a reação de uma das adolescentes que, após os estudos e as discussões, levou os conhecimentos para a sua mãe e esta refletiu sobre a sua condição de ser mulher na sociedade, especificamente em seu bairro, e sobre a relação com seu marido, decidindo inclusive se separar dele, devido aos constantes abusos sofridos por ela.
Essa reação só foi possível através da problematização das palavras trazidas pelas jovens, que foram provocadas pelo processo de reflexão-ação sobre ser mulher através de diálogos críticos. O debate da opressão de gênero contra as mulheres por meio da educação crítica e libertadora proposta por Freire possibilita que os sujeitos consigam identificar suas situações de opressão e assim agir sobre elas. Dessa forma, “[…] a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade […] busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade.” (FREIRE, 1987, p. 80).
Por mais que ainda exista um longo caminho a ser trilhado para erradicar o machismo no bairro pesquisado e na sociedade como um todo, acreditamos que dialogar com as adolescentes sobre essas temáticas, numa perspectiva de educação freireana, partindo da sua realidade, contribui para o seu processo de formação e transformação e também possibilita que as jovens sejam multiplicadoras desses conhecimentos tanto na escola como fora dela.
Referências
ANDRADE, Rosamaria Calaes. Interdisciplinaridade: um novo paradigma curricular. In: GOULART, Iris Barbosa (org.). A educação na perspectiva construtivista: reflexões de uma equipe interdisciplinar. 2. ed. RJ: Vozes, 1998.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
______. Pedagogia da Autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. 63ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020
______. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. Olho d’Água, 1993.