A falácia da educação para o trabalho

A Base Nacional Comum Curricular que se encontra em implantação no território nacional tem sido atacada e defendida por muitos educadores. Aqueles que a defendem dizem que ela pode contribuir para a ultrapassagem da fragmentação das políticas educacionais, robustecer a colaboração entre os três entes federados, balizar a qualidade do ensino e possibilitar a redução das desigualdades educacionais. Aqueles que a atacam dizem que ela tende a potencializar o controle sobre os professores e estudantes, se intrometer na autonomia da escola e dos docentes, exigir o emprego de muitos recursos que atualmente são escassos.

Uma parte dela, isto é, a área relativa à formação profissional, também tem sido alvo de ataques e de defesa por parte dos educadores. Alguns acham que ela torna a escola mais atrativa aos discentes e outros a vêm como um indevido atrelamento da escola ao setor econômico. Embora sejam argumentos válidos e sustentáveis, cabe colocar uma outra questão referente à validade e à pertinência dessa formação.

Muitos sabem que ela surgiu junto com o nascimento da era industrial, haja vista a necessidade de os trabalhadores saberem ler, escrever e contar para garantirem o adequado funcionamento das máquinas e das fábricas. Na medida em que a industrialização capitalista avançava novos conhecimentos e habilidades se tornavam necessários, os quais tinham que ser adquiridos na escola. A teoria sociológica funcionalista contribuiu bastante para a justificação de tal meta, porquanto ressalta a importância da divisão social do trabalho, provocadora do aumento da interdependência entre os indivíduos e do ajuste das aptidões pessoais às profissões existentes.

Porém, a partir de fins do século passado começaram a ocorrer sérias alterações sociais. Em decorrência disso, a educação para o trabalho passou a situar-se no interior de um novo cenário muito complexo, bastante original, singular e diferente totalmente daquele que vigorou até então, pois nele se encontram presentes vários elementos que interagem entre si, na forma de uma sobredeterminação, os quais condicionam fortemente a meta em questão. Não é viável portanto falar sobre a formação para o trabalho sem levar em conta este intrincado cenário que condiciona fortemente a vida de todos. 

Aparecem nele a proposta da construção de projetos de vida e a sociedade do conhecimento. Um projeto de vida inclui, obrigatoriamente, a opção profissional que, frente à velocidade das transformações, exige várias mudanças no decorrer do tempo. Por sua vez, a sociedade do conhecimento requer que as pessoas escolham ocupações fundamentadas na capacidade criativa. Note-se, portanto, que a escolha ocupacional constantemente alternada tende a se mostrar de forma bem reduzida.

Em tal sociedade emerge a denominada era pós-industrial, que se diferencia muito da anterior, a industrial,  e isso se percebe claramente no setor de serviços, que absorve hoje a maior parte da mão de obra,  mais que a indústria e a agricultura juntas, pois o trabalho intelectual é muito mais constante que o manual e a inventividade mais importante que a simples execução de tarefas. Essa era agrega, portanto, o conjunto dos trabalhadores engenhosos os quais integram uma categoria muito restrita, produtora de novidades 

A marcante globalização do período hodierno inclui o movimento do capital especulativo, a internacionalização da produção e a fragilização do Estado como agente do desenvolvimento. Ela revela que a antiga função do dinheiro voltada para o incremento de atividades produtivas passou para o segundo plano. Interessa muito mais agora a acumulação do capital por meio de taxas atrativas. Isso mostra a existência de um mercado ocupacional restrito, bastante especializado e exigente de qualificações ímpares. Indica ainda a possível escassez de recursos estatais para investir em obras geradoras de empregos.

No atual estágio pós-fordista se sobressaem a drástica redução da produção em série, o ajuste da produção à demanda segundo a concepção  just in time e  a indústria 4G a ser incrementada pela tecnologia 5G. Não é preciso fazer nenhuma análise profunda para perceber que o pós-fordismo, por assentar-se na tecnologia e na robotização, não contribui para a progressiva  criação de postos de trabalho. 

Por sua vez, o neoliberalismo decadente em vigor, ao exigir o rígido controle do orçamento nacional, restringe sobremaneira a ação do Estado em obras de infraestrutura e em políticas públicas que são geradoras de trabalho. Há expectativa da sua substituição pela ideologia pós-neoliberal que prevê a reorganização da economia, a imputação do papel de agente orientador da sociedade para o Estado, a transposição da retórica do livre mercado e o resgate do público sobre o privado. A proposta trilionária de Biden nos Estados Unidos e o Fundo Next Generation EU acordado pelo Conselho Europeu possibilitam algum alento.

Portanto, o que fica claro e cristalino neste contexto é o fato do irrefreável e progressivo  encolhimento do mercado de trabalho à medida que o tempo passa, o qual já foi detectado há alguns anos. Com efeito, em uma das mesas do Fórum Econômico Mundial de 2018 foi dito que a quarta revolução industrial inclina-se para o lado da eliminação de empregos, embora crie algumas oportunidades exigentes de alta qualificação.

Neste mesmo ano Paulo Feldmann publicou um artigo em que disse que é impossível prever quais empregos vão surgir futuramente, que é pouquíssimo viável o aparecimento de novas atividades requerentes da presença humana e que o capitalismo caminha em direção a outra crise consequente da derrocada do mercado consumidor.

Em 2020 Daniel Susskind concedeu uma entrevista na qual ressaltou que o desenvolvimento tecnológico é dotado do poder de aumentar a produtividade e reduzir a oferta de trabalho, impactando a possibilidade de distribuir os ganhos obtidos. Expôs que a crescente automatização tende a fazer com que as funções consideradas tipicamente humanas sejam cada vez mais realizadas por máquinas. Thomas Davenport, em 2021, disse que ao lado da substituição de trabalhadores por máquinas ocorrerá a cooperação entre humanos e robôs em vez de competição.  

Recentemente Domenico de Masi declarou que o crescimento econômico sem emprego, ou seja, uma produção cada vez maior ao lado de um trabalho humano cada vez menor, é uma tendência que veio para ficar. E segundo uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília em 2019, até 2026, 54% dos empregos formais do nosso país poderão ser ocupados por robôs e programas de computador. A porcentagem representa cerca de 30 milhões de vagas. 

Apesar da visível e irrefreável decadência do emprego, verifica-se nos meios de comunicação a presença de muitos intelectuais que defendem a formação para o mercado de trabalho como uma das principais finalidades da escola. Pressupõem que a ligação entre a escola e o mercado de trabalho não perdeu validade alguma desde quando surgiu há vários séculos, por ocasião do nascimento do capitalismo industrial. Pressupõem também que a escola é capaz de oferecer aos alunos a qualificação profissional que almejam para conseguir uma vaga no setor ocupacional. Não é preciso fazer nenhum esforço analítico para inferir que tais pressupostos são frágeis e passíveis de questionamentos.

Vale observar que a Base Nacional Comum Curricular concede um destaque especial à educação para o trabalho por meio de expressões pertinentes que aparecem espalhadas em todo o texto, isto é, desde a seção destinada às finalidades até às quatro áreas que a integram. Além disso tal educação ocupa uma parte extensa quando trata do Itinerário da Formação Técnica e Profissional. Por sua vez, o Ministério da Educação emitiu uma nota datada de julho do ano passado a respeito deste itinerário na qual expôs orientações a serem seguidas pelas escolas como se vivêssemos em plena era fordista.

Parece que reina um desconhecimento sobre o novo tempo que exige novas guias mais consoantes. Uma das mais importantes diz respeito à capacidade de transformar informação em conhecimento. Outra se refere às poucas profissões que têm possibilidade de se manter durante o tempo, tais como as de psicólogo, psiquiatra, gestor de mídias sociais, engenheiro de cibersegurança, tecnólogo da informação e especialista em inteligência artificial. A terceira incide no princípio da polivalência ou do profissional que é capaz de assumir diversos papéis e funções dentro de uma empresa e que consegue se adaptar bem às frequentes mudanças que nela ocorrem.

Mais importante ainda é levar em conta o princípio da politecnia, entendido como o preparo básico e necessário a todos os alunos, válido para qualquer tipo de ocupação que cada um venha a exercer na sociedade. Ele envolve o domínio das bases científicas pertinentes às múltiplas tecnologias empregadas nos processos produtivos e requer a internalização de um senso crítico voltado para a organização do trabalho na sociedade atual norteada pelo ideário da globalização neoliberal. Como pode ser inferido, trata-se de uma concepção bastante diferente da pregação oficial que se aproxima de um mero adestramento em habilidades específicas.

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Antonio Carlos Will Ludwig

Professor Aposentado, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Conservadorismo e Progressismo na Formação Docente (Pontes) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes)

Contato: emil@linkway.com.br 

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