Capa Processo

Editorial Edição Especial Paulo Freire

Foi a minha recificidade que me fez pernambucano, a minha nordestinidade que me fez brasileiro, a minha brasilidade que me fez latino-americano, e a minha latino-americanidade me faz um homem do mundo, porque ninguém é do mundo sem ser primeiro de um lugar qualquer. É nesse sentido que – vejam, eu não sei o nome das tribos, como estou pouco brasileiro nisso – são universais, podem ser universais, na medida em que se enraízam e se reconhecem enquanto tais. (FREIRE, 2014, p. 82)[1].

Camaradas leitora e leitor,

A Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB) apresenta uma edição muito especial em celebração aos 100 anos do natalício de Paulo Freire, “peregrino do óbvio”– como ele mesmo se considerava –, um educador tão atual quanto necessário para nosso tempo presente. Com recorrência, Freire refletia sobre a sua própria experiência no exílio, que chamava de “contexto de empréstimo”. Nos quase 16 anos de distanciamento do território e da cultura brasileira, pôde tanto entender a sua “recificidade” quanto a sua “latinoamericanidade”, essa última sendo compartilhada com parte significativa de intelectuais que se deslocavam pela região por necessidade. Mas Freire encontrou nisso tudo a sua “mundialidade” e é nesta perspectiva global que nós empreendemos a reflexão sobre seu legado local, em certo “enraizamento”, fazendo jus aos aspectos sociais, culturais, emocionais, políticos, econômicos e ambientais. Assim, experienciamos o adentramento sobre a práxis das nossas autoras e autores colaboradores que, com o seu olhar local, nos ajudam a entender Freire em sua mundialidade e em sua universalidade.

Como sabemos, há, hoje, uma contínua luta pelos sentidos da educação no espaço público. Quando o estatal é privatizado e dilapidado, há que se reinventar a escola pública, e esse tem sido o papel fundamental dos setores populares e das instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão. Não é por acaso, portanto, que, no centro dessa luta e dessas controvérsias, sobressaia-se a disputa pela memória da educação brasileira e pelo legado de seus autores fundamentais, dentre eles, seguramente, Paulo Freire.

Na última década, a crítica à escola pública e a seus profissionais manifestou-se, também, a partir de diversas críticas a Paulo Freire, às suas ideias, à sua memória e ao seu legado. Patrono da educação brasileira, esse educador, que é mais conhecido e estudado no exterior, é, aqui, alvo contínuo de ataques e descrédito por amplos setores da nossa sociedade.

Defensor de uma pedagogia dos/das oprimidos/as, Freire estabelece que as camadas populares são, elas também, sujeitos/as da educação e de sua própria história. O pensamento freireano tem inspirado práticas educativas disruptivas e democráticas em praticamente todas as áreas do conhecimento e em vastos domínios culturais, inspira também a professoras e professores na escola básica e na universidade, educadoras e educadores populares, estudantes da educação básica e do ensino superior e, sobretudo, extensionistas em sua relação com a população, o artista em sua criação.

Nesse sentido, a Faculdade de Educação da UFMG e seu Programa de Pós-Graduação, assim como o Programa de Extensão “Pensar a Educação, Pensar o Brasil – 1822/2022”, não poderiam deixar de celebrar com grande potência o Centenário de Paulo Freire. E aqui propomos fazê-lo, explorando e destacando as várias faces do seu pensamento sobre a universidade – a questão da formação docente e da extensão, educação básica – as epistemologias e as práticas pedagógicas, ­a potência dos saberes e das pedagogias do Sul e as apropriações inspiradoras realizadas no campo da arte, notadamente no teatro.

Nesse dossiê a diversidade de temas é atravessada por uma concepção de educação emancipadora, crítica e humanizadora defendida por Freire. Dessa forma, reúne dezenove textos de autoria de professoras e professores da educação básica e da universidade, de estudantes de graduação e pós-graduação, além de educadores e educadoras populares vinculados aos movimentos sociais. Os textos aqui compartilhados reúnem um conjunto de “temas-geradores” que expressam uma diversidade territorial, que contribuem para pensar o Brasil e dialogar com a América Latina, para conhecer o “Freire reinventado” a partir do “Freire enraizado”, ou seja, tanto mundial quanto universal. Em cada um deles recebemos o convite para refletir e compreender o legado freireano para a educação básica e, com isso, adentrar na pluralidade de seus pensamentos sobre a educação, por meio de sua práxis.

No conjunto das coisas ditas e escritas elucidamos que as autoras e os autores abordaram temáticas que atravessam o seu cotidiano escolar e refletem o tempo presente: ensino-aprendizagem no contexto da pandemia; educação e Direitos Humanos; gestão democrática; infância popular; educação antirracista, feminista, antilgbtfóbica; estética: teatro, literatura e ilustração popular; e escola plural. E, por isso/com isso, partilham os saberes amorosamente feitos a muitas mãos, aqui, conosco. Gostaríamos de contar-lhes que assim também entendemos a organização desse dossiê: da ideia à sua realização, partilhamos de nosso tempo, de nossos saberes, de nossas curiosidades, de nosso engajamento e compromisso com a educação libertadora. Com a mesma dialogicidade, a inspiradora arte que ilustra a capa desta edição foi imaginada, problematizada, criada e compartilhada com todos/as que agora nos leem. O encontro de saberes e de diálogos entre técnicas tradicionais e modernas, entre a artesania em aquarela e os traços digitais, referencia o processo de criação de Eduarda Taís dos Santos e do Diogo Nascimento. Essa fusão promove uma síntese cultural, desvelando uma identidade autoral no encontro de artistas. O convite, aqui, é para a educação do nosso olhar sobre Paulo Freire.

 Se é que podemos indicar um principal legado do patrono da educação brasileira, a práxis libertadora é o centro desse dossiê, pois, para Freire, a reflexão não é suficiente para transformar a realidade que “está sendo”, é necessário praticar a educação libertadora. Como organizadoras e organizadores dessa edição especial da RBEB, convidamos a todos/as para uma leitura amorosa e esperançosa, atenta e curiosa, crítica e rigorosa para que alcancemos o nosso contexto local e a dimensão global de Paulo Freire, corporificado no chão de nossas escolas e no mundo da vida. Desejamos a todos (as) uma boa leitura e um encontro “enraizado” com esse peregrino do óbvio!

Dedicamos esse dossiê:

Ao Paulo Freire, seu legado e memória;

Às/Aos professoras/es da educação básica que seguem re-existindo;

Às/Aos demitidas/os da vida;

Àqueles/as vitimados/as pela pandemia (do descaso e da Covid-19).

Os/As Organizadores/as.

Primavera de 2021.

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[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

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