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Matriz de referência para a Educação Física de Contagem (MG): elaboração, avanços e retrocessos

Ohana Alves de Almeida Gonçalves

Mestrado Profissional FAE/UFMG. Professora de Educação Básica na Prefeitura Municipal de Contagem.

E-mail: ohana.almeida@sga.pucminas.br

Andrea Moreno

Doutora em Educação Unicamp; Pós doutora UFRJ, Universidade de LIsboa e Unicamp; Professora titular FAE/UFMG; Diretora FAE/UFMG.

E-mail: andreafaeufmg@gmail.com

Vânia de Fátima Noronha Alves

Doutora em Educação (USP, 2008). Mestre em Educação (UFMG, 1999). Especialista em Lazer (UFMG/SESI, 1995) e em Educação Física Escolar (UFMG, 1995). Licenciatura plena em Educação Física (UFMG, 1984). Docente do Programa de Pós-graduação em Educação na PUC MInas, na área de concentração “Docência: Formação, Trabalho e Práticas Educativas”. Membro do Colegiado do PGED. Professora nas graduações de Pedagogia e Educação Física (licenciatura e bacharelado). Publicou os livros “O corpo lúdico Maxakali: desvelando os segredos de um programa de índio” (C/Arte, 2004) e “Rastros de África no Brasil: práticas educativas no Reinado de Nossa Senhora do Rosário” (Mazza Edições, 2017), além de vários outros artigos sobre temas como educação física, lazer, cultura negra e indigena, currículo, formação  de professores, políticas educacionais, politicas de esporte e lazer, imaginário. Atualmente assina Vânia Noronha.

E-mail: vaninhanoronha@gmail.com

Ao considerar a Educação Física como área do conhecimento, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional  LDBEN 9394/96 provocou a necessidade da sistematização de seu ensino e, desde então, várias redes no país construíram suas propostas. O presente artigo é fruto de uma investigação realizada sobre a construção de matriz curricular deste conteúdo, entre os anos de 2008 e 2012, para as escolas do município de Contagem (MG). A pesquisa adveio do interesse de uma das autoras quando, na condição de professora recém-contratada, intentou localizar propostas curriculares orientadoras para o seu trabalho docente no município e não obteve sucesso na busca.  Ao procurar por este material de referência, a professora percebeu que ele não se encontrava disponível aos interessados na escola, nem mesmo na Secretaria Municipal de Educação (SEDUC). Esse fato fez emergir diversas questões para sua pesquisa: Haveria no município esse documento orientador? Existiria alguma proposta curricular para o ensino da Educação Física? Se sim, qual documento estaria orientando a prática dos professores? Se não, quais os motivos dessa inexistência? 

Nas buscas iniciais a professora localizou um documento virtual da SEDUC, do ano de 2010, intitulado Matriz de Referência Curricular de Educação Física, referente ao ensino fundamental. Sua leitura provocou alguns questionamentos: estaria esta proposta sendo adotada nas escolas municipais de Contagem? Tendo sido elaborada para servir como referência para o professor ‒ sugerindo uma concepção de educação e de Educação Física a ser desenvolvida, objetivos, conteúdos, possibilidades para a sua sistematização nas séries e avaliação ‒, por que a proposta não estava disponível nas diversas instituições escolares? 

Buscar respostas a essas perguntas teria sido bastante interessante para analisar a prática da Educação Física nas escolas de Contagem. Entretanto, outras questões antecediam essas e foram assumidas como eixo para a investigação da professora em seu curso de mestrado: a elaboração das matrizes curriculares estaria inserida num projeto político de educação no município? Quando e em que condições foi elaborada a Matriz Curricular de Educação Física? A matriz foi adotada pelas escolas? 

O presente artigo apresenta o caminho percorrido para a elaboração da Matriz de Referência para o Ensino da Educação Física na Rede Municipal de Educação de Contagem e a análise sobre esse processo, considerando os avanços e retrocessos.

Caminhos metodológicos

A investigação adotou a abordagem qualitativa, tendo a pesquisa documental e a entrevista como suas principais fontes.  Além da Matriz de Referência Curricular de Educação Física elaborada no ano de 2010, outras fontes foram localizadas e consultadas, a saber: os Referenciais para a Construção da Proposta Curricular do 1º e 3º Ciclo de Formação Humana (elaborados respectivamente em 2004 e 2003); o Relatório de Gestão da Coordenadoria de Educação Básica da Secretaria de Educação de Contagem (para o período de 2005-2012); o registro da 3ª Conferência da Rede Municipal de Educação de Contagem e Fundação de Ensino de Contagem ‒FUNEC (2007); as Expectativas de Aprendizagem para a Educação Física (2011); o  Boletim de Avaliação Escolar – Concepções e Operacionalização do Sistema (2012). Algumas dessas fontes estavam disponíveis no setor de Formação Continuada da SEDUC, outras em escolas da Rede e várias em acervos particulares de profissionais da educação envolvidos no processo. 

Nenhum dos documentos acessados informava os autores da Matriz Curricular. Essa identificação só foi possível posteriormente, quando localizado o documento Ficha Técnica, que continha, em um arquivo separado, o nome da consultora pedagógica e de doze educadores/as. Saber a autoria do material foi importante, pois abriu outras possibilidades de estratégias para a pesquisa. Alguns materiais, como planejamentos e anotações do processo, foram cedidos pela consultora pedagógica da proposta, a Profa Dra. Vânia de Fátima Noronha Alves. Além da Consultora, foram selecionadas três educadoras para a realização das entrevistas semiestruturadas, que ocorreram entre os meses de agosto e setembro de 2017. 

O processo de elaboração da Matriz Curricular de Educação Física da cidade de Contagem (MG)

As matrizes curriculares do município de Contagem foram elaboradas em atendimento às orientações previstas no Caderno de Propostas da III Conferência Municipal de Educação publicado em 2007. Essa conferência contemplou as discussões realizadas por profissionais atuantes em várias instituições, dentre elas, escolas municipais, sindicatos e SEDUC. Dentre as orientações, chama-nos atenção a de nº 50, que aborda a organização curricular por áreas de conhecimento, indicando a necessidade de o município elaborar diretrizes curriculares voltadas para as especificidades de cada componente:

Proposta 50: Constituir grupo de estudos com o objetivo de estabelecer proposta curricular que mencione as capacidades e conceitos específicos dos diversos componentes, tendo como referência os PCN’s, os Parâmetros Internacionais, os Referenciais Curriculares Municipais e os Livros didáticos adotados na rede municipal ( CONTAGEM, 2007, p. 31).

A orientação para a organização curricular foi lembrada por uma das professoras entrevistadas, que dizia que na Conferência Municipal de Educação, entre os anos 2005 e 2007 “(…) surgiu a necessidade do documento (…)” (JÚLIA, 2017).

Em 2008, foi proposto pela SEDUC um curso denominado “Aspectos conceituais e metodológicos das diferentes áreas de conhecimento”, destinado aos professores. Esse curso  visava iniciar o processo de elaboração das matrizes curriculares. A Matriz de Referência Curricular da Educação Física foi elaborada com base nas discussões realizadas nesse curso de formação continuada que tratou de questões específicas dessa área. O curso foi desenvolvido no segundo semestre de 2009, foi coordenado pela consultora pedagógica e contou com a participação de professores que se interessaram em contribuir com sua escrita. Esse curso foi destacado pelas professoras entrevistadas:

A gente começou a formação em 2009. Eu lembro que foi logo que eu entrei nessa escola, que era o Pedro Pacheco […]. Segundo semestre. Mais para o final do ano. (ANA, 2017).

Era uma formação. A gente ia e ficava a sexta inteira, acho que era sexta também. A gente ficava lá a sexta toda debatendo, conversando. Foi muito democrático, muito [ênfase] democrático. Assim, todo mundo tinha/expunha a realidade da escola, possibilidades, todo mundo participou desta construção mesmo, do que a gente achava que deveria trabalhar […]. Aí eu acho que o primeiro ano que eu trabalhei na rede foi 2009 mesmo, desde fevereiro de 2009. Aí tinha essa… igual foi feito esse ano, essa construção do dia de formação por área. (CAMILA, 2017).

2009. É eu estou fazendo…eu pensei que fosse depois disso, tem muito tempo [risos]. […] É… mas aí é isso mesmo. Eu estava na escola Domingos Diniz Moreira, lembro um pouco dessa relação […]. Eu tenho a impressão que foi no segundo semestre. (JÚLIA, 2017).

O produto final, fruto desse processo, recebeu o nome de Matriz de Referência Curricular (CONTAGEM, 2012a), que, como as matrizes das outras áreas, foi “concebida e formulada como diretriz na organização dos planos de trabalho, projetos e proposta curricular de cada instituição escolar” (CONTAGEM, 2012b, p. 12). Para a Educação Física, seu referencial foi intitulado Matriz de Referência Curricular de Educação Física.

Importante lembrar que a construção das matrizes curriculares se apoiava no Programa Municipal de Qualidade Educacional, definido pela SEDUC em 2009, que objetivava

garantir educação de qualidade social para todos os estudantes da Rede Municipal por meio de planejamento coletivo, disponibilização de recursos, oferta de formação continuada, reconhecimento e respeito à diversidade, valorização dos trabalhadores em educação, fortalecimento de parcerias intersetoriais (CONTAGEM, 2012a, p. 35).

Visando alcançar as metas do programa, a estruturação do currículo da Rede Municipal de Educação de Contagem (CONTAGEM, 2012) previa a elaboração das matrizes curriculares, dentre outras ações, como o processo avaliativo. Neste mesmo ano de 2009, uma comissão composta por pedagogos da Rede Municipal de Educação se reuniu para discutir o processo avaliativo de cada escola e a necessidade de um registro comum para a Rede, de modo que “todas as unidades escolares tivessem a mesma diretriz, tanto no processo avaliativo, quanto no registro do processo” (CONTAGEM, 2012b, p.16). 

Esse documento relata que

nesse aspecto, a elaboração das matrizes de referência curricular e das expectativas de aprendizagem surgiu como uma necessidade de propiciar essa unicidade, definindo, para a rede municipal, o que é fundamental e imprescindível aos estudantes em trajetória no Ciclo de Formação Humana ( CONTAGEM, 2012b, p. 16).

Em 2010, como um desdobramento da matriz, foram elaboradas as “Expectativas de Aprendizagem”, que destacavam, para cada conteúdo da área, os seus descritores, ou seja, os menores itens a serem avaliados. Em relação à Educação Física o documento objetivava “especificar algumas dimensões do conhecimento expressas nos descritores, bem como propiciar a avaliação numa perspectiva inclusiva e processual ao longo do Ciclo de Formação Humana.” (CONTAGEM, 2012a, p. 38). Os materiais analisados nos mostram que, no ano de 2010, a Rede Municipal de Educação contava com o aporte das Matrizes Curriculares e das Expectativas de Aprendizagem como diretrizes para embasar os processos pedagógicos das escolas.

O processo de elaboração das matrizes e das expectativas vai ao encontro da instituição do Boletim de Avaliação Escolar, no qual foi “possível registrar informações sobre o trabalho a ser realizado pelos educadores e sobre o desenvolvimento de cada estudante, bem como acompanhar os processos pedagógicos” (CONTAGEM, 2012b, p. 30). Nesse instrumento, era necessário que o professor fizesse o lançamento dos códigos das expectativas a serem avaliadas. 

Em síntese, podemos compreender, com base nos materiais e documentos consultados, que o processo de elaboração das Matrizes de Referência Curricular se organiza conforme quadro 1:

Quadro 1. Síntese das indicações contidas nos materiais e documentos consultados

Documento / Material
O que ele nos indica?
Caderno de propostas III Conferência Municipal de Educação
2007- Por intermédio da proposta de nº50, há a abordagem sobre a constituição de um grupo de estudos para estabelecer a proposta curricular para os diversos componentes curriculares.
Relatório de Gestão 2005-2012
2008 – Indicação de curso visando aspectos conceituais e metodológicos para professores.
2009 – Instituição do Programa Municipal de Qualidade Educacional, no qual uma das ações estabelecidas por ele tratava-se da estruturação do currículo.
Organização da comissão e processo de elaboração preliminar das matrizes, com envio às escolas para análise. 
2010 – Revisão das matrizes considerando as análises e elaboração/divulgação dos documentos produzidos.
Boletim de Avaliação Escolar
2009 – Indicação de comissão composta por pedagogos da rede que discutem sobre sistema único de avaliação, surgindo a necessidade de um material/diretriz que indicasse o que era fundamental ao estudante no decorrer do ciclo, surgindo assim as matrizes de referência curricular.
Matrizes de Referência Curricular 2010
2010 – Documento de construção coletiva, feito através de formações nos últimos três anos que antecedem sua publicação (2010). 

    Fonte: Almeida (2018, p.70)

Na figura 1, denominada Processo de Elaboração e Revisão das Matrizes de Referência Curricular, constante no documento “Relatório de Gestão 2005-2012”, podem-se perceber as ações cumpridas ao longo desses anos:  

Figura 1: Processo de elaboração e revisão das Matrizes de Referência Curricular

Fonte: Relatório de Gestão 2005-2012. Contagem (2012a).

A figura 1 deixa claro que a construção da matriz foi processual e que a SEDUC, por meio de sua Diretoria de Ensino Fundamental, acompanhou as ações determinadas. A participação dos docentes foi prevista com a implementação da comissão que iria elaborar a matriz preliminar. O processo democrático fica evidente quando essa matriz preliminar é encaminhada às escolas para sugestões e retorna aos consultores para possíveis revisões.

 

O curso de formação continuada e o debate sobre os aspectos conceituais e metodológicos da Educação Física

Ao pensarmos na organização das escolas para a participação dos professores nos encontros do curso, vimos que a SEDUC propôs uma condensação dos tempos pedagógicos (TP) dos Professores de Educação Básica (PEB2) em cada dia da semana, de acordo com o componente curricular. No caso da Educação Física, os TPs foram aglutinados nas sextas-feiras. Essa organização possibilitou ao profissional sua saída da escola nesse dia, sem que sua ausência prejudicasse o andamento da rotina escolar ou fosse considerada falta. Ao lembrarem da organização do curso e a demarcação de dia, horário e local, as professoras entrevistadas relataram que:

Foi ao final do ano e aí, se eu não me engano, era de quinze a quinze dias que a gente ia para lá […]. Não, era toda sexta-feira, era uma sexta-feira que era o meu TP. A gente ia para lá, SENAC eu acho. (ANA, 2017).

E aí eles colocaram a nossa área, Educação Física toda no mesmo dia e chegou um momento onde nós tínhamos esses encontros, eu acho que era a cada quinze dias, não me lembro muito bem, faz muito tempo […]. A gente ia lá para o SENAC e fazia esses encontros lá, se reunia lá. (CAMILA, 2017).

Foi lá no SENAC. Então, toda sexta pela manhã a gente se encontrava lá. […] esses momentos seriam na sexta-feira pela manhã, então a escola organizaria nossos tempos pedagógicos para que a gente desse aula em todos os horários, e nesse momento de planejamento que a gente cumpria em hora, dentro da escola, a gente iria então. (JÚLIA, 2017).

A organização dos encontros foi também confirmada por meio dos relatos da consultora pedagógica, Profª. Dra. Vânia F. Noronha Alves, que conduziu o curso. Ela nos disse que o grupo “ se encontrava de quinze em quinze dias, nas sextas-feiras pela manhã […] Esses encontros eram realizados lá no SENAC. E aí eram quinzenais, os professores eram liberados da escola para estar lá”. Isso se confirma no quadro com a definição das datas pela SEDUC, cedido pela consultora pedagógica:

Figura 2: Cronograma de datas dos encontros de formação continuada
Fonte: Arquivo pessoal da consultora pedagógica.

A figura 2 descreve um quadro com o cronograma das datas do curso de formação de nome “Formação aspectos conceituais e metodológicos”, porém, não nos diz sobre o ano de realização do curso. A consultora nos mostrou o material como integrante do curso ocorrido em 2009, com vistas à elaboração da matriz de referência curricular.  O curso foi realizado por meio de 8 encontros presenciais. Cada encontro tinha a duração de 4 horas, com a carga horária total de 32 horas/aula.

Com relação à forma de divulgação do curso e à participação dos profissionais, buscamos entender como se deram entre os professores da Rede Municipal de Educação. Os relatos das entrevistas registraram que:

Foi convite. (ANA, 2017).

Não acho que era uma coisa que a Secretaria obrigou, eu acho que eles falaram na época que ia ter o certificado, para quem quisesse participar e não foi falado inicialmente que seria a construção da matriz, falou-se que seria uma formação. (CAMILA, 2017).

A gente recebeu na escola comunicados mesmo, via ofício, falando que iam ter essas formações para construir, como se fosse a matriz curricular mesmo. […] É… eles encaminharam esses ofícios para as escolas, perguntando quem gostaria de participar nesses momentos (JÚLIA, 2017).

Podemos compreender, por meio das falas, que a SEDUC enviou para as escolas, em formato de ofício, convites, para os professores/as, que indicavam a oferta do curso de formação continuada. A consultora pedagógica disse não se recordar como se deu a escolha dos participantes e que também não sabe ao certo o motivo de sua contratação. Entretanto, indica que possivelmente seria por sua participação na elaboração do referencial curricular para a Educação Física do Estado de Minas Gerais, denominado de Conteúdo Básico Comum (CBC). Com relação à divulgação do objetivo do curso, a consultora pedagógica indicou que, ao ser convidada para ministrar a formação, fora orientada sobre a construção da matriz, “ele (o curso) era só para reorganizar a matriz”. Porém, toda a organização e o desenvolvimento do curso foram propostos pela consultora pedagógica, que, quando indagada sobre sua participação, relata que tinha sido ela mesma a elaborar o curso, ministrá-lo (para conteúdos específicos, como por exemplo, a ginástica, foram convidados outros professores) e depois organizar a matriz junto com os professores/as.

Quando nos referimos à chegada dos convites/ofícios aos professores, não sabemos ao certo se o curso de formação continuada foi vinculado ao objetivo da construção da matriz, pois as falas abaixo apresentam pontos de divergência nesse aspecto, e os ofícios utilizados na época não foram localizados para a pesquisa. Uma das professoras enuncia que:

Eu acho que ao longo do processo, a gente foi amadurecendo a ideia da construção. Eu acho que foi até a partir da necessidade da questão que nós professores colocamos, que a gente não tinha uma referência. […] Eu não acredito que a intenção a princípio tenha sido assim: “Vamos reunir para fazer formação”, eu acho que era uma formação, que depois, de acordo com as necessidades, que eu acho foi de todas as áreas, que foram construídas nessa mesma época […]. Eu não sei se a Secretaria de Educação chamou para esta intenção, mas a Secretaria de Educação propôs a formação e eu acho que surgiu essa necessidade de ter matrizes para todas as áreas. (CAMILA, 2017).

Ao ser indagada sobre a existência de algum material específico para orientar o ensino da Educação Física no município, a professora 2 diz que “nós não encontrávamos”. Sua fala confirma a ausência de materiais e de documentos da SEDUC para esse suporte. Podemos concluir que não havia proposições curriculares específicas para cada componente curricular, ou documentos da SEDUC, antes do processo de elaboração das matrizes. O fato é abordado também na entrevista com a Profª Dra Vânia F. Noronha Alves, consultora pedagógica, que, ao ser questionada sobre essa existência, relata-nos que não havia proposições anteriores, diz-nos que “se tinha, não chegou [em sua] mão. E também os professores, não indicaram nada”. Ela ainda nos diz: “parece que eles trabalhavam cada um por si, e sei lá, estava muito a cargo da condição das escolas, e as condições eram muito precárias.” Quanto ao número de participantes no processo, os documentos apresentam divergências. Segundo a professora:

Eu lembro que o grupo começou maior, a gente começou com… não lembro o número exato, uma pena que não tenham guardado as listas de presença, mas a gente tinha as listas de frequência, inclusive para justificar junto à escola. Então a gente recebia os atestados para ir para a escola, só que, provavelmente, esses documentos se perderam, não é, frente à prefeitura, mas a gente começou assim, com um grupo muito maior e quando foi finalizando, a gente tinha tipo a metade das pessoas. Então, na minha opinião, a gente ainda terminou com um grupo significativo, em função da história de Contagem […]. No início nós éramos mais ou menos umas 25/30 pessoas, acho que não passava muito disso não. Mas a realidade da rede era muito maior que isso […]. Então, a gente tinha assim, um quantitativo, vou chutar por baixo, de uns 300 professores de Educação Física na rede. Quando a gente pensa na representatividade disso, é evidente que a gente está falando que é pouco representativo. (JÚLIA, 2017).

Um levantamento realizado junto ao setor de gestão de pessoas da SEDUC em setembro de 2017 indicou que, em 2009, havia cerca de 198 professores de Educação Física na Rede Municipal de Educação de Contagem. Diante desse número é possível afirmarmos que foi baixa a participação no curso de formação continuada. No decorrer das entrevistas, as professoras e a consultora pedagógica abordaram alguns possíveis motivos.

E eu lembro, assim vagamente, de que eles comentavam que o ideal seria que todos os professores de Educação Física do município pudessem participar, mas que não era a realidade, que eles não podiam sair da sala, e que pelo fato de ser um trabalho a mais, muitos também não quiseram participar, pois era um momento que eles iam ter que estudar, que eles iam ter que ler, que eles iam ter que se envolver com a produção, com a produção da matriz, e aí muitos nem toparam fazer isso. Então esse grupo que eu realmente não sei como foi selecionado, ele tinha essa característica, tinha um grupo que representava os outros e que também se dispuseram a participar. (Profª Dra. Vânia F. Noronha Alves, consultora pedagógica, 2017).

Como eu te expliquei, eu também trabalhei dentro da Secretaria de Esportes, nós tentávamos convocar os professores para as conferências de esporte. A gente tinha muito pouco sucesso na mobilização dos professores de Educação Física. […] O meu olhar sobre isso é que os professores que não participaram, eles não participavam, tinham outros compromissos ou trabalhavam em outras escolas, tinham que sair correndo de uma rede para outra. E aí, não que eu não quisesse ou os professores que estavam lá não quisessem, mas acabou que a gente tinha uma proposta que era sexta-feira de manhã, eu não lembro se sexta-feira à tarde também tinha, mas por exemplo, já dificultava para os professores da tarde participar. Foi se perdendo eu lembro, que tinham algumas paradas, a gente teve que parar em alguns momentos […], às vezes, essas paradas também desmobilizaram alguns professores, mais no final nós tivemos um grupo forte e firme, que conseguiu manter a proposta e construiu o documento. (JÚLIA, 2017).

Algumas hipóteses para a pouca adesão dos professores/as em atividades dessa natureza podem ser levantadas: o fato de muitos docentes serem do gênero feminino ‒ neste caso, a mudança de rotina comprometeria as tarefas domésticas em seguida ao trabalho; o deslocamento para um local diferente daquele de costume; acesso ao transporte público; pouco tempo para deslocar para outro local de trabalho; o comprometimento com leituras que exigiria um tempo maior de dedicação. Entretanto, os participantes reconheciam a importância da participação:

As pessoas que estavam lá, elas sempre falavam isso para mim, “nossa que oportunidade que a gente está tendo, de rever, revisitar os conceitos, os conteúdos”. E muita coisa a gente teve que voltar mesmo, desde a história da Educação Física às concepções de Educação Física, para eles poderem até dar uma atualizada assim. Era um grupo muito heterogêneo, tinha gente que já tinha muito tempo de Educação Física, que foi formado inclusive em uma outra lógica, eu lembro inclusive dessa minha amiga Ana [nome fictício], que a nossa formação foi na época da ditadura, e aí então até para quebrar alguns conceitos era difícil, não é? E tinha gente que era recém-formada. Eu não me lembro se todos tinham a formação em Educação Física, ou se tinha alguém que na época ainda não tinha, ou estava formando, eu não lembro disso, não vou conseguir lembrar, e aí, mas foi um processo, apesar de ter sido dessa forma, foi um processo muito rico. (Profª Dra. Vânia F. Noronha Alves, consultora pedagógica, 2017).

Com relação ao processo de organização inicial do curso e do conteúdo, as professoras e nos relataram:

Acho que o primeiro encontro eles fizeram uma apresentação da proposta, e depois nós já fomos para a sala, cada direcionador  o nosso no caso foi a Consultora [indicação nossa], que seria a pessoa que trataria dos temas conversaria sobre as questões mesmo da área de Educação Física e, a partir disso, a gente pensaria as propostas curriculares. (JÚLIA,2017).

Com base nos diversos materiais oferecidos pela consultora pedagógica, podemos perceber detalhes sobre o curso e sua proposta. A figura 3 apresenta a ementa, os objetivos, os conteúdos, os procedimentos metodológicos, a avaliação e a bibliografia utilizada no decorrer do curso.

Figura 3: Proposta do curso de formação continuada ‒2009      
   
Fonte: Arquivo pessoal da consultora pedagógica.

Os professores e a consultora pedagógica nos indicaram que, ao longo do curso, foram realizadas discussões sobre ciclo de formação humana, questões específicas da Educação Física e embasamento teórico diverso. Dentro da organização dos encontros, houve a divisão da turma de acordo com os temas: danças, lutas, esportes, ginásticas, jogos e brincadeiras. Houve também a divisão por ciclo. Nos grupos, os participantes começaram a estruturar o que deveria ser desenvolvido em cada um dos três anos do 1º, 2º e 3º ciclo. A organização do curso e seu desenvolvimento foram lembrados por uma das professoras entrevistadas:

Primeiro teve uma divisão por ciclos, que eu acho que foi a maior parte da discussão, e aí a gente ficou elencando quais problemas que eram levantados nesses anos, é… quais dificuldades, o que seria mais viável para trabalhar. E depois, teve essa divisão por tema, por eixo, que foi esporte, ginástica, dança. (ANA, 2017).

O processo de elaboração é referenciado por uma das entrevistadas como “muito democrático, muito democrático. Assim, todo mundo tinha/expunha a realidade da escola, possibilidades, todo mundo participou dessa construção mesmo, do que a gente achava que deveria trabalhar” (CAMILA, 2017).

Sabemos da impossibilidade de elaborarmos um documento referência para uma rede de ensino que conta com um número expressivo de escolas e docentes, garantindo a participação de todos os professores/as das áreas. Essa situação é praticamente inviável. Assim, acreditamos que o processo conduzido pela SEDUC foi uma tentativa de considerar os saberes e as realidades vividas pelos seus docentes, ainda que as condições para a participação possam ser repensadas e ampliadas. 

A Matriz de Referência da Educação Física: o elaborado e o publicado

Como já dito, a participação dos professores na elaboração da Matriz da Educação Física foi voluntária. Após o curso de formação, foram programados mais alguns encontros para tratar especificamente dos conteúdos e descritores para avaliação dos conhecimentos.  Para tanto, a realidade das escolas de Contagem e o trabalho já desenvolvido pelos/as professores/as foram levados em consideração.

A estrutura do documento foi referenciada em outra instituição de ensino, apresentada pela consultora como exemplo aos participantes do curso de formação. Os conteúdos foram elaborados pelos participantes, como dito no relato:

O formato ele veio da experiência da consultora Vânia. Ela trouxe, não… na verdade, ela trouxe, deixa eu explicar melhor, porque se não dá a impressão que foi imposto. Ela trouxe alguns modelos, entre eles o do Colégio Estrela […] E além de tudo, eles têm uma preocupação com todo referencial transversal do PCN, sabe, eu achei brilhante assim mesmo a dinâmica que eles trouxeram. A consultora Vânia, eu acho que também participou deste documento, então ela tinha experiência dessa proposta. […] então eu lembro que isso foi uma questão assim, a gente transferiu o que estava lá no programa que veio do Colégio Estrela, e seguimos ele, auxiliando na forma, os conteúdos a gente nem olhou para a questão do Colégio Estrela. (JULIA, 2017).

O documento final da formação continuada, apresentado pela consultora pedagógica, fazia referência aos dezenove professores participantes; trazia o relato do processo de construção da matriz; discorria sobre a realidade da Educação Física no município de Contagem, na qual os professores indicaram problemas que comprometem as aulas (aspectos específicos do componente, como aqueles ligados à organização educacional); apresentava a fundamentação teórica da matriz, em consonância com a LDB 9.394/96, e indicações acerca da compreensão da Educação Física e de seu desenvolvimento na escola; constava o documento “Expectativas de aprendizagem”; acrescia uma folha em branco para que fosse inserido o documento final da Matriz de Educação Física, e, por fim, sugeria a avaliação do processo de construção da matriz.

Infelizmente não encontramos informações sobre como este material final foi concluído pela SEDUC, como foi revisado, publicado e distribuído (ou não) para as escolas. O que pudemos perceber, na investigação realizada, é que a versão final da matriz, por motivos desconhecidos pelos envolvidos, não foi publicada como havia sido elaborada, mas com muitas modificações. A consultora afirma não saber o que de fato ocorreu:

Pois é, o que que eu estou entendendo, que depois que a gente montou, teve uma comissão ali de…que que é mesmo? […] Revisão. Só de revisão. […]. Aí seria interessante conversar com eles, sobre essa, como é que foi esse processo de revisão, se eles alteraram alguma coisa, se eles modificaram alguma coisa, ou se eles só leram e falaram assim: é isso mesmo, a gente concorda. […] Para mim é novidade essa equipe de revisão, eu nunca soube disso. (Profª Dra. Vânia Noronha Alves, consultora pedagógica, 2017).

Uma primeira constatação das modificações no documento original foi a de que a matriz curricular definiu os temas e conteúdos para cada ano do ciclo, como afirmam as professoras:

[…] foi por eixo sim porque aí colocava em cada ano o que que tinha que ser aprendido de acordo com o eixo. (CAMILA, 2017).

Os conteúdos mesmo para serem trabalhados em cada ano do ciclo, e também, inclusive, o que a gente chamou de descritores, como que aquelas atividades se tornariam reais. Então a gente tem um documento enorme construído. Eu lembro que a planilha final, eu me perdia nela de tanto documento, porque cada conteúdo, em cada ano do ciclo, ele era desenvolvido por número de aulas como se fossem quatro aulas por mês. Então, se fosse, por exemplo, o descritor lutas, no primeiro semestre, do 1° ano do 1° ciclo, a gente teria lá, se fosse o primeiro bimestre, a gente teria 8 aulas de lutas, já dizendo o que que a gente ia tratar como poderia ser tratado. (JÚLIA, 2017).

Este fato causou estranheza entre os participantes do processo. As professoras comentam que:

Como eu participei do processo, então na hora que eu peguei o documento (pausa) antes de ficar pronto, a gente fez, então eu já sabia o que era para trabalhar com o 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 6º, todos os anos. Então, eu trabalhava com o 3º ciclo, para mim ficou muito fácil pegar os últimos três anos, os conteúdos, e a gente definiu “ah, no quinto ano, no sétimo ano a gente vai…” para não ficar aquele negócio, todo ano futebol, todo ano o handebol. […] então a gente colocou, no 6º ano, handebol, no 7º ano, basquete, no 8º ano, vôlei. Eu lembro que os meus alunos vinham me perguntar: — “Professora, não vai ter futebol não?” — “Não, futebol, você teve no ano passado” […]. Então, depois a matriz não saiu exatamente desta forma. A gente fez a divisão, claro. Na matriz, ela sai por ciclo. […] os descritores saem por ciclo. Não tem esse negócio de exatamente o que você precisa, qual o conteúdo para ser trabalhado para atender aquele descritor, mas a gente lá tinha feito. Entendeu, então […] Isso. Foi o processo final, e eu não estava. (ANA, 2017).

Outra constatação diz respeito ao referencial bibliográfico para a escrita do documento. Ao analisarmos a versão publicada da Matriz de Referência Curricular de Educação Física, vemos que nela consta apenas a indicação dos PCNs como referência bibliográfica adotada. As professoras lembram que:

Eu acho que foi um referencial. A base da construção acho que teve muito a questão do CBC e as práticas. Que eu me lembro assim… eu também não me lembro de tudo […]. Tiveram alguns artigos, que era o que eu estava te falando, a gente discutiu alguns textos […] Miguel Arroyo, né? Por causa da questão do ciclo, discutiu muito. (ANA, 2017).

Aí a gente estudou primeiro, ela passou umas orientações de documentos que a gente tinha que ler, para depois a gente montar. (JÚLIA, 2017).

Os conteúdos nós nos pautamos no Coletivo de Autores, no PCN, foi onde a gente se referenciou mesmo. A gente criou muitos outros debates. Criamos muitas outras questões. Debatemos o lazer […] debatemos a questão da comunidade, como eram as comunidades de Contagem […]. Então a gente também pensou nessas questões locais, para ver como a gente incorporaria, iria incorporar isso dentro da realidade local, entendeu? Então, não são só esses, isso eu tenho clareza. No final, a gente pode ter colocado esse porque foi o que deu para fazer no final, mas a gente teve documentos da cidade de Contagem […] debatemos textos referentes à prática docente na Educação Física, debatemos a educação infantil […], então eu lembro que teve muito mais coisa, mas a gente realmente leu textos, trazendo elementos da comunidade, vê o que a Prefeitura tinha produzido em termos de documentos também, até da geografia de Contagem. (JÚLIA, 2017).

Mas, a gente, assim, usou outros documentos para basear o nosso, pra gente estudar pra construir o nosso. A gente usou o CBC, na época já tinha, a gente percebeu que todo mundo já tinha [referencial] e a gente não.

Eu me lembro dos dois, dos PCN’s e o CBC também foi usado como um modelo para a gente ver. […] Mas não teve muita coisa além disso não. […] A LDB também foi falada e tudo mais, não… acho que ela não colocou como referência não […]. Foi bem cobrado mesmo que a gente estudasse antes de começar a construir. O PCN e o CBC. O CBC foi cobrado como, mostrado como modelo né. Não que tivesse que ser igual, mas foi um modelo da época, que a gente usou. (CAMILA, 2017).

Assim como relatado pelas professoras, a consultora pedagógica nos mostra, em um de seus materiais, uma lista com 71 referências, além dos PCNs, abordando diversas temáticas específicas da Educação Física, da Educação, documentos legais e os documentos nacionais. A consultora nos disse: 

Você viu o tanto de referência que tem lá? […]. Olha lá… Nossa Senhora… é, com certeza não foi só isso que a gente trabalhou […]. Ó, essa bibliografia aqui com certeza não colocaria só isso, né? Talvez até por limite de página, sei lá se tinha limite de página, e aí, horrível isso né?! (Profª Vânia Noronha Alves, consultora pedagógica, 2017).

Além do processo de elaboração da matriz curricular, no encontro com os professores/as foi construído outro documento intitulado “Expectativas de Aprendizagem”, em que constavam, para cada ciclo, os objetivos (descritores) com os conteúdos de ensino. Embora esse documento não seja evidenciado nas entrevistas com a mesma proporção das matrizes, a consultora pedagógica dispunha do material “Expectativas de aprendizagem – Versão final”, que orientaria a organização do curso de formação de 2009. Ao realizar a leitura desse documento, percebemos que se trata de um material cujo conteúdo e formatação também se difere do documento disponibilizado pela SEDUC:

Figura 4: “Expectativas de Aprendizagem” – Versão Final – Formação
Fonte: Arquivo pessoal da consultora pedagógica.

Podemos observar que a estrutura proposta para este documento se embasa no documento da matriz, com indicação da Prefeitura, da SEDUC e de setores envolvidos. Também coincidem o nome do documento, a qual modalidade de ensino se refere e sua divisão em ciclos. 

Figura 5  ‒ “Expectativas de Aprendizagem Educação Física 1º ciclo” – Versão encaminhada às escolas
Fonte: Expectativas de Aprendizagem (CONTAGEM, 2011).
Figura 6  ‒ “Expectativas de Aprendizagem Educação Física 2º ciclo” – Versão encaminhada às escolas
Fonte: Expectativas de Aprendizagem (CONTAGEM, 2011).
Figura 7  ‒ “Expectativas de Aprendizagem Educação Física 3º ciclo” – Versão encaminhada às escolas
Fonte: Expectativas de Aprendizagem (CONTAGEM, 2011).

Ao analisarmos o conteúdo do documento publicado pela SEDUC, podemos notar que esses são divergentes daquele abordado pelo documento divulgado em 2011, que se traduz na indicação dos descritores da matriz, utilizando-se de códigos alfanuméricos, diferentemente das expectativas elaboradas no decorrer do curso. Podemos compreender que, embora possuam o mesmo nome, são documentos distintos. Não temos indicações de que as “Expectativas de Aprendizagem”, produzidas em 2009, tenham sido divulgadas para a Rede Municipal de Educação, pois não constam no caderno de matrizes, e não temos nenhuma outra fonte, além do material virtual em pdf, localizado na investigação.

Também a distribuição dos documentos analisados nas escolas foi discutida com as professoras. Cada uma delas possui uma lembrança diferente:

Chegou, eu me lembro de ver a matriz chegar na escola como documento, um livro verde. […] ele chegou, eu lembro de pegar e manusear. (ANA, 2017).

Pois é, você está me fazendo uma boa pergunta, porque, olha só que doideira, tenho uma vaga lembrança de ter conseguido ter levado ele para a biblioteca da Escola Municipal Domingos Diniz Moreira, se ele tiver, provavelmente ele ainda está, mas ele estava em um formato assim de capa branca, sem uma capa e aí vem todos os documentos juntos, então era um blocaço assim, eu lembro mais ou menos. […]. Isso pode ser uma imaginação, ou minha memória querendo forçar, que eu vi esse documento, mas eu vi esse documento pronto, entendeu, agora eu não sei te dizer onde ele está, onde foi produzido, não consigo te provar que ele foi impresso, sabe? (JÚLIA, 2017).

Não chegaram. Não chegaram.  Se eu te contar que esse ano eu vi pela primeira vez esse negócio aqui ó (mostrando uma divisão do planejamento) pela primeira vez, esse ano. Eles (matriz) não chegaram à escola, eu continuei trabalhando, não saí da rede, eles nunca chegaram para mim, nunca. A matriz nunca chegou, eu só tenho ela no e-mail. (CAMILA, 2017).

Percebe-se assim, algumas divergências com relação à chegada desse documento até as unidades escolares. A consultora pedagógica relatou que não teve acesso ao documento final e, do mesmo modo, não ficou sabendo como ocorreu sua divulgação na rede: “Eu não sei nem como é que ficou o produto final, depois se eles realmente… como é que eles implementaram, porque nem para mim chegou uma cópia final”.

Buscamos, ainda, compreender a utilização da matriz pelas professoras. Em seus relatos, elas dizem:

Eu lembro que, a partir disso, eu sempre fui apresentada a ela, você vai fazer o planejamento do ano, eu recebia de todas as escolas que eu trabalhei a matriz, para me planejar […]. Então, as escolas que eu fui, por exemplo, eu trabalhei em uma escola que era só primeiro ciclo, eu recebia a matriz do primeiro ciclo de Educação Física pra poder fazer o planejamento. E a partir daí, eu sempre fiz meus planejamentos pelos descritores. Eu acho que, no primeiro momento, foi exigido isso da Secretaria […], depois eu acho que aí ficou a nossa escolha […]. Que se perdeu. Eu lembro que eu mesma parei de usar os descritores que não me atendiam mais. (ANA, 2017).

Da escola que eu trabalhava, inclusive, quando a gente foi montar o PPP, eu tentava fazer com que o professor do outro turno incorporasse algumas questões da matriz, eu falava da matriz, mas os usos que cada um faz dos trabalhos são de outras lógicas, e eu acabei usando talvez porque eu tenho essa questão ideológica muito posta para minha vida profissional, por acreditar que talvez alguém deles usasse em algum outro momento, então eu fiz dele minha prática no tempo que eu continuei na escola. Eu mantive assim os anos do ciclo que eu trabalhava, eu mantive os conteúdos, nem sempre os descritores, mas os conteúdos eu mantive. (JÚLIA, 2017).

Uma professora disse desconhecer o documento:

Não, nunca foi utilizado e nem serviu de base para as outras aulas […]. Eu entrava no e-mail e olhava […] se chegou em algum lugar dentro da escola nunca foi repassado […]. Eu não sei se chegou para alguma escola, ou chegou pra escola que eu estava na época, né? Contratada, eu sei que eu sempre usei, mas do meu e-mail […]. (CAMILA, 2017).

Alguns trechos das entrevistas nos mostraram que, com o passar do tempo, talvez devido ao fato de o documento não atender, naquele momento, aos planejamentos dos professores/as, por não se reconhecerem nele, por não encontrarem condições para desenvolvê-lo ou por não se ter uma obrigatoriedade de uso, a sua utilização foi sendo deixada de lado:

Para te falar a verdade antes de vir para a Secretaria não me lembro. Depois, enquanto assessora, eu já vi pessoal que fala que usa outras coisas, não usa esse documento. Não especificamente da Educação Física. (ANA, 2017).

Eu sempre fui uma defensora desse documento, então, eu lembro de levar a fala dele em vários locais, mas eu me via muito solitária no processo. É, não acho que os professores incorporaram de maneira geral. (JÚLIA, 2017).

Sobre o vivido no curso de formação e na elaboração da proposta, Camila faz um comentário em relação à sua expectativa com o processo da construção da matriz: “tenho certeza que ninguém saiu de lá achando que isso ia se perder”. O fato é que a proposta foi alterada e se perdeu. A fala da professora anuncia a esperança em um novo tempo na Rede e, ao mesmo tempo, nos leva a pensar como são elaboradas as políticas públicas educacionais em nosso país. Mais uma vez, se constata uma distância entre o que é produzido e o que é efetivamente colocado em prática. 

Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo compreender o processo de elaboração de uma Matriz de Referência Curricular de Educação Física da cidade de Contagem (MG). Percorremos o caminho da pesquisa documental  ‒ por meio dos materiais produzidos pela SEDUC e de arquivos pessoais dos envolvidos  ‒e da pesquisa oral,  entrevistando participantes do processo de elaboração da matriz. Os materiais da SEDUC nos remetem ao processo de elaboração da matriz de forma superficial, relatando pouco sobre esse marco para a história da educação de Contagem. As entrevistas nos trouxeram dados mais detalhados sobre os bastidores do processo, impossíveis de serem registrados nos documentos oficiais. Por isso, foi de extrema importância a realização da pesquisa considerando essas duas fontes de investigação. Foi no confronto entre a análise dos documentos oficiais, dos arquivos da consultora pedagógica e o material das entrevistas com os participantes que pudemos perceber divergências entre o que se produziu no processo de elaboração e o que, posteriormente, foi publicado no documento final.

Como vimos, o processo de elaboração dessa Matriz de Referência Curricular de Educação Física se deu por meio da participação de professores em um curso de formação continuada que se desmembrou em sua construção. Embora os materiais da SEDUC nos indiquem o ano de 2008, os relatos dos participantes e materiais da consultora pedagógica nos mostraram que o curso, ofertado quinzenalmente na Faculdade SENAC Minas, ocorreu no segundo semestre de 2009.  A participação dos professores se deu por adesão e inicialmente, aproximadamente, trinta professores estavam presentes. Este número foi se reduzindo no decorrer dos encontros. No documento “Ficha Técnica” foram indicados como participantes do processo de elaboração doze professores (referenciados como educadores) e, como equipe de revisão, apenas dois professores participantes do processo de construção. Alguns desses participantes, no decorrer do processo, deixaram o curso. A organização e a redação final do documento foi realizada por um grupo menor de professores/as sob a orientação da consultora. 

Curiosamente, a leitura dos documentos finais nos apresenta uma outra equipe de professores, que não participaram do processo de construção, constituída para revisar o documento elaborado. Esse fato, possivelmente, pode ter resultado em alguns pontos de diferenciação do documento produzido no decorrer do curso de formação em 2009 e o documento difundido em 2010, como por exemplo a organização dos conteúdos apenas por ciclo, mas não por ano do ciclo; a indicação de referência bibliográfica apoiada apenas nos PCNs da área e a ausência das demais; as alterações de diversos descritores e comentários; mudanças na escrita e na quantidade de eixos, dentre outras. As diferenças entre os documentos nos permitem compreender que a versão difundida nas escolas se trata de outra proposta, divergente da construída com os professores no curso de formação de 2009.  A matriz enviada para as escolas da Rede Municipal de Educação no primeiro semestre de 2010, disponível em formato de livro,  tratava-se de um documento diferente do que havia sido construído juntamente à consultora pedagógica.

Por meio das entrevistas, constatamos que algumas unidades escolares repassaram o documento aos professores, para que embasassem o planejamento, porém, de outras não temos informação, o que pode ter dificultado o acesso a esse documento pelo professor. Provavelmente dois fatores podem ter contribuído para a não apropriação da matriz curricular da área de Educação Física pelos professores da Rede Municipal de Educação de Contagem. Um deles pode ser o fato de o documento final não se tratar do construído pelos professores no decorrer do curso, contendo as modificações já citadas neste artigo. Outro, a possibilidade de, mesmo tendo sido encaminhado às escolas, seja por meio físico (livro) ou em documento virtual (PDF), ter sido frágil a divulgação do documento para a Rede e para os professores. Para confirmar ou não essas hipóteses, uma pesquisa precisaria ser realizada.

Vimos que a elaboração de matrizes para o ensino da Educação Física vinha ocorrendo em todo o país, em diferentes sistemas de ensino, no momento a que se refere esta pesquisa, devido a uma exigência de sistematização do conhecimento da área logo após o seu reconhecimento pela LDBEN 9394/96 como área do conhecimento. Sem dúvidas, consideramos esse movimento imprescindível para a compreensão da finalidade e dos elementos teórico-metodológicos e avaliativos da Educação Física nas escolas. Entretanto, em 2017, foi publicado um novo documento normativo para todas as áreas do conhecimento, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que tem trazido novas orientações e demandas para os professores/as de todo o país. Certamente, encontramos nessa nova proposta outras possibilidades de pesquisas.

Concluímos ressaltando que a pesquisa desenvolvida descortinou um importante movimento de construção de uma proposta de Educação Física no cenário educacional de Contagem, revelando uma história que possivelmente estaria “esquecida” nos documentos oficiais do município. A investigação abre também possibilidades de pensarmos o processo lento e árduo de construção de um documento referencial para a Educação de um dado lugar. Esse processo envolve atores, circunstâncias, contexto político e institucional que ficam submersos no documento final. A distância entre o elaborado e as versões finais, oficiais, divulgadas e adotadas pelas Secretarias de Educação, nem sempre refletem o que se pensou num dado momento. Ressaltamos, por fim, que a pesquisa reafirma o lugar importante dos professores na implementação de políticas públicas, sem os quais, nenhum documento chega “ao chão da escola”. 

Referências

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, Diário Oficial da União. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 09 fev. 2017.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Referenciais para Construção da Proposta Curricular do 3º Ciclo de Formação Humana. Contagem: SEDUC, 2003. 68 p.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Referenciais para Construção da Proposta Curricular do 1º Ciclo de Formação Humana. Contagem: SEDUC, 2004. 51 p.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Caderno de propostas da 3ª Conferência da rede municipal de Educação de Contagem e FUNEC. Contagem: SEDUC, 2007.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Matriz de Referência Curricular de Educação Física – Ensino fundamental. Contagem: SEDUC, 2010.

CONTAGEM. Secretaria Municipal de Educação e Cultura. Expectativas de aprendizagem. Contagem: SEDUC, 2011.

CONTAGEM. Relatório de Gestão da Coordenadoria Educação Básica da Secretaria de Educação de Contagem Gestão 2005-2012. Contagem: SEDUC, 2012a.

CONTAGEM. Boletim de avaliação escolar – Concepções e operacionalização do sistema 2012. Contagem: SEDUC, 2012b.

Imagem de destaque: Photo by Wesley Tingey on Unsplash

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