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Confluências epistemológicas – ancestrais e contemporâneas – da Arte e da Língua Portuguesa

perfil – Gabriel Schunemann Dantas

Gabriel Schunemann Dantas

Professor de português. Formação em Letras/Licenciatura/Português pela FALE/UFMG, mestrado em Estudos de Literatura do Instituto de Letras da UFF. 

Contato:  gabriel.schunemann@edu.pbh.gov.br

foto luciana – Luciana de Souza Matias

Luciana de Souza Matias

Mestranda  em Educação Tecnológica pelo CEFET/MG. Sou graduada (2002) em Educação Artística com habilitação em Música pela ESMU/UEMG. Acabo de me graduar em Pedagogia pela UEMG. Tenho Especialização em Artes Visuais pela UFMG; e em Educação Empreendedora pela UFSJ. Sou mãe do Vitor Artur, Márcio Manoel, Kamili Blandina e Marília Batista. Filha de Oxum, Ogum e Xangô; Ekedy no Ilê Axé Odé Safé Edun Ará no Quilombo Mangueiras Belo Horizonte – MG. Liderança Quilombola no Quilombo Família Mattias  Belo Horizonte. Membra da Diretoria colegiada do Sindrede/BH;  do Coletivo Esperançar; do coletivo Quilombos em contexto urbano de Belo Horizonte; da Coordenação Ampliada do NERER/PBH; da Coordenação do GEAP Sankofa e do GEEPPEB. Professora Municipal de Artes no ensino fundamental nos anos finais na rede municipal de educação de Belo Horizonte – MG. 

Contato: luciana.s.matias@edu.pbh.gov.br

Introdução

Apresentaremos um dos eixos de uma unidade de ensino de um projeto pedagógico para a promoção das relações étnico-raciais e antirracistas, o qual desabrochou no contexto emergencial da pandemia, a partir do compartilhamento de links de podcasts, canais do youtube e outras plataformas que traziam, à época, discussões temáticas sobre o racismo. Uma destas referências foi justamente o podcast Amarelo Prisma[1], do multiartista Leandro Roque de Oliveira, mais conhecido como Emicida, cantor, compositor, escritor e apresentador. Ouvindo esse podcast, percebíamos uma didática que se espalhava como se os saberes ali contidos fossem polinizados, assim como fazem as abelhas, espalhando o pólen de flor em flor circulando pelo jardim para que a vida continue a desabrochar, e, dessa forma, nasceu o Projeto Zum, num contexto em que precisávamos desabrochar para a luta antirracista em nosso ambiente escolar.

Talvez você tenha ficado um pouco estonteada(o) com o ritmo da escrita acima, como se estivéssemos, talvez, a dançar, como em uma ciranda ou girando em círculos. Se causamos tal sensação, será, para nós, motivo de profunda felicidade, uma vez que nossa proposta metodológica se fundamenta nas matrizes africanas e afro-brasileiras, indígenas e europeias com o simples e igualmente complexo objetivo de promover um processo de aprendizado equânime a partir das matrizes culturais presentes em nossa sociedade. Ademais, nossa sequência didática foi pensada a partir de sua descolonização ou desconstrução de seu sentido metodológico. Pensar uma metodologia para a educação das relações étnico-raciais e antirracistas e desconstruir as bases que a compõem pressupõe a desconstrução de estruturas coloniais e a busca de modos outros de ver, pensar, fazer, sentir e fluir os processos de aprendizagem, para que possam confluir as pessoas, os modos de aprender e sentir o mundo.

Convidamos a confluir conosco nesta pedagogia da encruzilhada que é, ao mesmo tempo, espiralar e por isso talvez nos inspire tanto, como nos explica Leda Maria Martins:

Espiralar é o que, no meu entendimento, melhor ilustra essa percepção, concepção e experiência. As composições que se seguem visam contribuir para a ideia de que o tempo pode ser ontologicamente experimentado como movimentos de reversibilidade, dilatação e contenção, não linearidade, descontinuidade, contração e descontração, simultaneidade das instâncias presente, passado e futuro, como experiências ontológica e cosmológica que têm como princípio básico do corpo não o repouso, como em Aristóteles, mas, sim, o movimento. Nas temporalidades curvas, tempo e memória são imagens que se refletem. (MARTINS, 2021, p. 23).

A circularidade, o movimento, o desabrochar de novas formas de aprender a desaprender, em certa medida,  são o cânone hegemônico que exclui territórios, lugares de fala e saberes fundantes de nossa diversidade cultural.

Figura 1: A forma espiralar das conchas remetem à circularidade e ao movimento preconizados pelos valores civilizatórios da matriz africana[2] 

Fonte: Arquivo dos autores (2023)

Nossa unidade de ensino fundamenta-se em uma metodologia multicultural e antirracista. Alicerçamo-nos em teóricos como Azoilda Trindade, responsável por sistematizar os valores civilizatórios da matriz africana, sendo eles: circularidade, musicalidade, memória, ancestralidade, corporeidade, musicalidade, cooperativismo, religiosidade, oralidade e força vital. Sobre esses valores, nos diz:

A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores civilizatórios, ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais, objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem num processo histórico, social e cultural (TRINDADE, 2013, p. 132).

Estes valores estão presentes em sala de aula cotidianamente a partir da presença de cada menina e menino estudante da Escola Municipal Padre Guilherme Peters e, desta forma, não podem ser desconsiderados e/ou invisibilizados. A sequência a que se refere este texto tratará das subjetividades do território e de sua relação com a ancestralidade, sentido que guiará todo o processo. Segundo Leda Martins, a ancestralidade

em muitas culturas, é um conceito fundador, espargido e imbuído em todas as práticas sociais, exprimindo uma apreensão do sujeito e do cosmos, em todos os seus âmbitos, desde as relações familiares mais íntimas até as práticas e expressões sociais e comunais mais amplas e mais diversificadas. De que modos, então, essa sofisticada vivência da ancestralidade e a presença imanente do ancestre na vida cotidiana dos sujeitos também inscrevem uma singular compreensão e experiência da temporalidade como uma sophya? (MARTINS, 2021, p. 23).

A partir deste valor civilizatório, acessamos outras culturas e ambicionamos democratizar a comunicação através da diversidade cultural expressa nas linguagens das artes e de nossa língua amefricana[3].

Objetivos da experiência, metodologia, desenvolvimento

Objetivos Gerais: 1) Fomentar a reflexão acerca do território em suas dimensões espacial, de pertencimento e em sua relação com o corpo; 2) Compreender os fundamentos da narrativa visual; 3) Compreender o conceito de Pessoas do Discurso.

Objetivos Específicos: 1.1) Identificar e valorizar o território como instância fundamental para as relações de sociabilidade; 1.2) Provocar nos estudantes um despertar de sua identidade étnico-racial; 2.1) Refletir sobre a linguagem visual, especialmente sobre sua potência narrativa.

Metodologia

Organizada em: (1) fundamentos metodológicos, (2) metodologia da aplicação e (3) metodologia de avaliação da sequência.

1) Esta sequência busca construir um ensino multicultural, em que nossas matrizes culturais africana, indígena e europeia sejam igualmente relevantes, e não apenas no que tange aos objetos de conhecimento e conteúdos, mas na estrutura curricular e na própria concepção de ensino (Petronilha, 2013).Entendemos ser essa diretriz extremamente desafiadora, uma vez que nossa prática está submetida a um constante regime de invenção (diferentemente do padrão ocidental firmemente sedimentado no espaço escolar e em nossa própria formação universitária).

2) Para a aplicação desta sequência, é fundamental considerar a prática pedagógica em sua dimensão dialógica.[4] Assim, a maioria das aulas consiste em análises coletivas de obras literárias e visuais, e as aulas expositivas devem ser conduzidas em formato de diálogo.

3) A avaliação é construída coletivamente, com a montagem de uma exposição[5]. Durante esse processo, espera-se que estudantes e professores reflitam acerca da experiência pedagógica vivida nas aulas através do diálogo e que os professores registrem atentamente as falas das(os) estudantes, de modo a realizar adaptações no percurso, incorporando as reflexões e demandas das(os) estudantes a cada aplicação da sequência.

Desenvolvimento

O que é o um território? Está dentro ou está fora? Do que fala o território? Quem fala no território? A quem pertence o território? Quem é o território? Marcelino dos Santos, em seu poema “Aqui nascemos”[6], nos convida a refletir sobre o território a partir do que somos nós; nossas experiências a partir de nossa ancestralidade. Neste sentido, tomamos como referência semiótica a obra da artista visual Rosana Paulino[7] denominada “Assentamento”.

Figura 2: Assentamento de Rosana Paulino[8]

Fonte: Arquivo dos autores (2023)

Esta obra é uma instalação em que a artista utilizou impressão em tecido, bordado, madeira, vídeos e paletes, trazendo como referências imagéticas mulheres negras escravizadas, destacando em bordados ou costuras possíveis sentimentos que essas mulheres não conseguiam expressar. A imagem em destaque nos inspirou justamente a pensar “onde nascemos”, a ancestralidade como memória e território, e incentivar a produção plástica individual das árvores genealógicas dos estudantes, os quais utilizaram materiais diversos, como papel, tinta, lápis de cor e giz de cera.

Figuras 3, 4 e 5: Produção realizada por estudantes do 9º/ 3ºciclo

Fonte: Acervo de fotos pessoal dos professores (2023)

A partir daí continuamos o nosso processo refletindo sobre a nossa identidade; para isso, estudamos a poesia concreta a partir dos poemóbiles que foram criados por Augusto de Campos e Julio Plaza. Com essa criação, as meninas e meninos estudantes puderam trazer a experiência da pesquisa da ancestralidade de cada um e expressar como se faziam presentes no território familiar, desenvolvendo visualmente e poeticamente o objeto de arte poemóbiles.

Figuras 6, 7 e 8: Produção realizada por estudantes do 9º/ 3ºciclo

Fonte: Acervo de fotos pessoal dos professores (2023)

ESCULTURAS:

A partir da poesia concreta trabalhamos o concretismo nas artes visuais por meio das obras de dois artistas concretistas, Jorge dos Anjos e Ruben Valentin, que se inspiram na cultura de matriz africana e afro-brasileira, as quais se relacionam com a nossa ancestralidade.

Figuras 9, 10 e 11: Produção realizada por estudantes do 9º/ 3ºciclo

Fonte: Acervo de fotos pessoal dos professores (2023)

Esse processo nos leva a refletir sobre o nosso papel na sociedade de forma responsável, considerando a nossa identidade, pensando o nosso corpo como território de conhecimento e ação na sociedade; nos leva a considerar o que nos une e o que nos separa, a considerar as nossas diferenças de forma mais ampla. Neste sentido, quando trabalhamos, com o professor Gabriel, as pessoas do discurso, refletimos sobre os lugares de fala de cada pessoa.

AUTORRETRATO:

Ao desenvolvermos o nosso autorretrato, trabalhamos o que somos a partir das nossas raízes familiares: tonalidade de pele, texturas dos nossos cabelos, linhas que compõem o nosso rosto e nosso corpo como território.

Figuras 12, 13 e 14: Produção realizada por estudantes do 9º/ 3ºciclo

Fonte: Acervo de fotos pessoal dos professores (2023)

Figura 15: Divulgação da Exposição “Aqui nascemos”

Fonte: Acervo de fotos pessoal dos professores (2023)

Os trabalhos desenvolvidos foram exibidos recentemente em uma exposição realizada na escola. Foi um momento de extrema emoção para todos nós. A exposição foi inteiramente montada pelos estudantes, apresentada por eles para toda a escola e organizada de forma que as turmas pudessem visitá-la e ouvir dos colegas artistas a explicação sobre todo o processo. Para finalizar, a trilha sonora que acompanhou a nossa exposição é de autoria de Ballaké Sissoko e Mamadou Diabaté, mestres da Kora, um instrumento de cordas tradicional da África.

Referências

BARBOSA, Ana Mae. Imagem no ensino da arte: anos 1980 e novos tempos. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BARBOSA, Ana Mae. Arte/educação contemporânea: consonâncias internacionais. São Paulo: Cortez, 2017.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: ______. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

BISPO DOS SANTOS, Antonio. Colonização, quilombos: modos e significados. Brasília: UnB, 2015.

MARTINS, Leda Maria. Performance dos tempos espiralar, poéticas do corpo tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.

SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Entre Brasil e África: Construindo Conhecimento e. Militância. Belo Horizonte-MG. Editora Mazza, 2011.

SOMÉ, Sobonfu O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Odysseus, 2007.

TRINDADE, Azoilda Loretto; SANTOS, Rafael (org.). Multiculturalismo: mil e uma faces da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.


[1] Podcast Amarelo Prisma, de Emicida. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vw6G3o-KQe0 acesso em 06 out 2023.

[2] Fotografia de Ansgar Koreng. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/114240786@N08/44869746575. Acesso em 25 out. 2023.

[3] Conceito cunhado pela pensadora Lélia Gonzalez.

[4] Conferir o livro Cartas a Guiné, em que Paulo Freire estuda detidamente o pensamento de  Amílcar Cabral, incorporando o sentido decolonial da prática pedagógica à sua obra.

[5] Esta exposição articulará as obras e temas trabalhados nas aulas com o pressuposto de que o olhar conta histórias – daí o trabalho, a ser exposto a seguir, com o conceito de pessoas do discurso e construção da identidade.

[6] Disponível em: http://poemasdalusofonia.blogspot.com/2009/01/aqui-nascemos-i-terra-onde-nascemos-vem.html Acesso em 9 out. 2023.

[7] São Paulo, Brasil, 1967. A artista vive e trabalha em São Paulo. Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, é especialista em gravura pelo London Print Studio, de Londres e bacharel em Gravura pela ECA/USP. Disponível em https://rosanapaulino.com.br/sobre/. Acesso em 8 out 2023.

[8] Disponível em:  http://coletivomarquise.blogspot.com/2014/09/assentamento-de-rosana-paulino.html acesso em 9 out 2023.

MATIAS, Luciana de Souza. DANTAS, Gabriel Schunemann. Confluências epistemológicas – ancestrais e contemporâneas – da Arte e da Língua Portuguesa.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial A escola no pós-pandemia, novembro, 2023, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Obra “Target”, de Jasper Jones/1960

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