21032014imprensafotomarcossantos004

Cinema como prática na escola: A representação do outro no contexto escola

Rafael Garcia Madalen Eiras 

Rafael Garcia Madalen Eiras é Doutorando pelo PPGCine/ UFF, Mestre em Humanidades, culturas e Artes (PPGHCA- UNIGRANRIO (2020). Graduado em História pela Universidade Cândido Mendes (2015) e Graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Estácio de Sá (2007). Especializado em Fotografia e Imagem pela Universidade Cândido Mendes (2009). Trabalha a mais de 15 anos no mercado do audiovisual e atualmente é professor do município do Rio de Janeiro (SME-RJ).

E-mail: eiras.rafael@gmail.com

Este artigo propõe uma breve reflexão sobre as potencialidades da cinematografia na criação de mundos, através de sua linguagem, inseridos na prática escolar, entendendo que a momentânea necessidade das aulas remotas acentua uma tendência contemporânea inscrita em documentos e políticas oficiais que privilegiam a prática mediada pelas tecnologias da informação (TICs.) Esse processo gera uma valorização da educação a distância, da utilização de mídias audiovisuais na aula presencial, como também a possibilidade da própria produção de outras linguagens em sala de aula, como a prática cinematográfica.

Nesta dinâmica o uso do cinema em sala de aula não necessariamente se apresenta como uma prática inovadora. Ele já se insere nesse espaço de diversas maneiras e sentidos, na maioria das vezes de forma acessória, um mero instrumento auxiliador de outras disciplinas. Insere-se também no dia a dia dos alunos através de dispositivos móveis, aparelhos reprodutores e distribuidores de sons e imagens, que participam do cotidiano educacional sem pedir licença, como próteses do próprio corpo humano,uma lógica operacional que se tornou predominante no que convencionamos chamar de modernidade histórica” (SOARES, 2016, p.84). 

A proposta cinematográfica como prática inovadora na escola surge, então, quando ela vai na contramão da simples análise descritiva das narrativas, enfatizando sua estética, interpretando, por um lado, as imagens cinematográficas como um discurso que possibilita preparar o aluno para interagir com as novas dinâmicas visuais do mundo contemporâneo, lugar das imagens que “rasgam” de forma definitiva com a linearidade da escrita (FLUSSER, 2005), e, por outro, possibilitando, , na criação de novas imagens no ambiente escolar, um discurso próprio, uma experiência particular que foge da ordem disciplinadora clássica do processo de ensino e aprendizagem e promove a visão de outros afetos e representatividades. Uma prática que pode promover a imagem cinematográfica como uma construtora de vivências do outro

A própria experiência dos estudantes com o cinema se inicia no observar, discutir e sentir e depois produzir seus próprios esquemas de lógicas que não necessariamente devem seguir as vigentes, pois “o cinema, antes de ser discursivo, é um perturbador de ordens estéticas e, consequentemente, um operador político” (MIGLIORIN, 2015, p.64). Nesse sentido, a escola operaria não somente como um espaço/tempo que promova a formação do sujeito, mas também “lugares do enredamento de diferentes conhecimentos e modos de conhecer e de se constituir criados em outros espaços/tempos da vida social” (SOARES, 2016, p. 87-88). Perspectiva que permite inserir o cinema no currículo escolar como um dispositivo que percebe o outro, as diferenças, no momento que o outro cria significados através do próprio discurso cinematográfico e as potências da estética da imagem. 

O cinema é uma experiência estética. Ele faz o espectador se transportar para um “mundo possível”(MORIN, 1983). O próprio ato de se assistir a um filme e responder aos estímulos que a imagem em movimento cria faz o espectador imergir no fluxo de imagens, de produzir subjetividades. Para Jorge Larrosa Bondía (2002), a experiência se contrapõe no mundo moderno a uma busca desenfreada por informações,  mundo em que a academia e, por contrapartida, a realidade conteudista das escolas, se enquadram. Ele propõe pensar a educação também através da estética, da experiência, ou seja, do acontecimento, a partir de uma experiência/sentido.

(…) requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.” (BONDÌA, 2002, p. 24).

O cinema, nesse sentido, torna complexa essa relação moderna em que a informação, o conteúdo são privilegiados. Por mais que um filme possa ser apresentado como um objeto que informa, ele é experiência estética, deixando vestígios, impactos, que extrapolam a informação. “Por isso, o saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo, contingente, pessoal” (BONDÌA, 2002, p. 27).

Nesse caminho, o artigo traz a análise do filme Boa Água (2014)¹, produzido e exibido no contexto escolar.  Filme que nasce como uma proposta inovadora de se desvincular da força interpretativa das imagens “como uma busca perene da coisa idêntica a ela mesma” (MIGLIORIN. PIPANO, 2019, p. 146) e propõe uma pedagogia que afeta e é afetada pelo outro, por outras experiências que fogem da narrativa linear e se debruça na experiência estética. Nesse contexto, a imagem cinematográfica vai além do suporte material. Ela está ligada às percepções desconstrutivas e descentradas do filósofo francês Gilles Deleuze (1985; 2005) acerca do cinema. A imagem cinematográfica teria características de um acontecimento, uma percepção anterior à própria narrativa e às significações do mundo, estaria no nível imanente da percepção humana, propondo uma imagem-movimento, um violento encontro que força o pensamento.

Deleuze, tanto em seus dois livros especificamente sobre cinema Imagem- movimento (1985) e Imagem-tempo (2005) como em sua obra escrita em parceria com Felix Guattari, o já clássico Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia (1997), percebe que existe um mundo do devir, que constrói outras subjetividades desviantes, que fogem da máquina binária que regula a lógica ocidental. Esse outro território, não mais histórico e sim geográfico, que se produz como raízes e não troncos, são pontos de fugas, universos deslocados do centro projetor de afetos. Em seus escritos sobre cinema, o autor vai se interessar por filmes que geram essas outras percepções, em que a visão hegemônica e binária é rasgada por um mundo sem significações ou lógicas, um mundo da experiência. Para ele, o cinema acaba por ser uma máquina de projeção de devires, menos como a reprodução narrativa e mais como o acontecimento.

A obra apresentada aqui tange essa perspectiva. Ela foi realizada pelo projeto Inventar com a diferença, na Paraíba, no primeiro semestre de 2014, com a participação de oito escolas públicas de ensino fundamental, médio e EJA (Educação de Jovens e Adultos), e é pensada dentro de um dispositivo denominado de filmes-carta, proposta que permite o não iniciado nas técnicas cinematográficas conseguir produzir filmes na “construção de uma máquina-cinema” (MIGLIORIN, 2014. p. 5). Projeta-se, dessa forma, uma prática educacional possível de produção cinematográfica dentro da escola e que promova a criação de mundos diversos que escapam do enquadramento disciplinar do cotidiano escolar.

UM CAMINHO METODOLÓGICO

Cezar Migliorin é um dos idealizadores do projeto Inventar com a diferença. O autor relata a experiência do projeto e da prática da pedagogia através do conceito de pedagogia do Mafuá em seu livro Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá (2015), promovendo a perspectiva de que o aluno também é autor, pois participa efetivamente do significado, tirando a imagem da ditadura da informação e potencializando uma pedagogia da criação. Isso inclui ativamente a criança no conhecimento que ela produz e adquire, e que ao mesmo tempo acontece em meio à bagunça.

Um mafuá surge na desordem, jamais como um modelo, e impõe uma frágil estabilização momentânea, não-linear e não-vertical, a partir de procedimentos não-domesticados e em permanentes processos de desnaturalização. Cada objeto, cada sujeito, tem uma entrada singular no mafuá e faz alterar o todo, de forma contínua, eis a enunciação coletiva como condição de operação do mafuá. Ele é assim menos um espaço de onde algo se parte e mais um corpo de processos e materialidades que absorve uma multiplicidade de objetos e saberes em um universo metastável (MIGLIORIN, 2015: 196-197).

Está pedagogia do Mafuá, desta forma, opera como montagem cinematográfica em múltiplas materialidades e afetos, aproveitando que o universo infantil não é linear. Processo educacional em que o conhecimento é afetado pelas dimensões sensíveis do cinema, resultando num “ato de criação que engaja a produção do saber entre mundo sensível, os objetos técnicos e os seres, indistintamente, ou melhor, sem estabelecer com isso movimentos de verticalização e estabilização” (MIGLIORIN. PIPANO, 2019, p. 154-55).

Na experiência do Mafuá Migliorin relata:

Todos os exercícios que proporíamos aos professores e mediadores seriam organizados como dispositivos. Tal noção nos daria a possibilidade de trazer para os exercícios os desafios de igualdade no lugar ocupado entre os estudantes e professores, o desafio da não hierarquização dos discursos e imagens e a necessária abertura para o território, para a comunidade e para a diferença, sem sermos pautados por discursos ou temas, e tendo o cinema como a questão central. De alguma maneira esses exercícios precisavam entrar na educação possibilitando as experiências e os movimentos subjetivos que narramos acima. Sem uma pauta ou uma agenda, reforçávamos com eles nossa crença em um cinema político na escola (MIGLIORIN, 2015, p. 78).

É nessa construção e desconstrução de discursos que a articulação cinematográfica se apresenta como desarticulador de uma identidade fixa ou de uma disciplinaridade neutra. Seu poder reside, justamente, nesses buracos que cria entre a obra e a fruição, entre o filme e seus efeitos. Ou seja, o espectador participa de uma experiência, “um processo no qual a fruição passa por uma recepção de signos heterogêneos, elementos que se negam, somam, dialogam, mas que não organizam o mundo a partir de um conhecimento que antecede à própria aparição das imagens” (MIGLIORIN, 2010, p. 4).

O dispositivo na prática pedagógica cinematográfica introduz regras, procedimentos que criam, elaboram um universo escolhido, mas ao mesmo tempo liberta, pois é “dependente da ação dos atores e de suas interconexões” (MIGLIORIN, 2015, p. 79). Uma forma de colocar a experiência na imagem, sem que o texto e a narrativa estivessem no centro dessa dinâmica e que as hierarquias (aluno e professor) fossem deslocadas. 

Dentro desse panorama contemporâneo, o surgimento de uma perspectiva pós-estruturalista permite entender a prática educacional, voltada para as significações do currículo como um constructo discursivo, em que as relações de poder de quem o produziu e a sociedade em que se inseriu estão sendo apresentadas. Entende-se, assim, “os discursos pedagógicos e curriculares como atos de poder, o poder de significar, de criar sentidos e hegemonizá-los” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 40). Dessa forma, o currículo se apresenta como uma produção de sentidos e, portanto, uma prática cultural que se dá em múltiplos momentos.

Essa é a convocação cinematográfica contemporânea, sem moldes fixos ou códigos únicos, mas representando um dado universo particular, que dialoga com uma potência de realidade: uma alteração sem fim, visto que “o cinema é um relacionar-se com o mundo que mais interroga, vê e ouve do que explica. Trata-se de um posicionamento propriamente estético da ordem da ocupação dos espaços, dos tempos, dos ritmos, dos recortes, das conexões e rupturas” (MIGLIORIN, 2010, p. 3). Há, dessa forma, como qualidades, a criação; não a transmissão de saberes, de conteúdos disciplinarmente ordenados. Como arte ele não se ensina, mas se vivencia.

BOA ÁGUA, A INSTABILIDADE COMO O OUTRO.

Boa Água (2014) é parte da primeira edição do projeto Inventar com a Diferença, na Paraíba, no primeiro semestre de 2014. Como cita Migliorin:

O caminho teórico que percorremos foi tracejado em paralelo a exercícios com filmes-carta feitos tanto nas aulas práticas com estudantes na Universidade Federal Fluminense, como em cursos livres, ministrados frequentemente por professores que pouca ou nenhuma experiência têm com o cinema. A realização de filmes-carta não é uma resposta definitiva para todas as inquietações político-estéticas levantadas neste artigo, mas é parte do que se experimenta com operações criativas que permitem a construção de uma máquina-cinema. Se saímos de questões muito gerais para experiências localizadas é também porque é na prática da sala de aula que essas máquinas e pedagogias emancipatórias podem ser inventadas e atualizadas (MIGLIORIN, 2014.p.5).

No início de Boa Água o que se vê é a imagem trêmula, instável – produzida provavelmente por um sujeito que não tem uma intimidade técnica com o aparato cinematográfico –, que enquadra ao fundo uma construção que lembra uma escola, iluminada por um sol do fim de tarde que inunda o horizonte do universo filmado. Uma trilha sonora instrumental dá ao momento uma áurea mágica, às vezes cômica, desarticulando um sentido objetivo de realidade. Em primeiro plano, mais próximo da câmera, uma criança ainda vestida, mas escurecida como uma sombra, silhuetada pela potência do sol, brinca, debaixo de um jorro de água, muito mais do que se banha, “jogando com o aparato cinematográfico, cuja presença ele atesta com seus olhares reflexivos” (MIGLIORIN; PIPANO, 2019, p. 149).

 A fonte da água é imprecisa, talvez vinda de um chuveiro ou de uma mangueira improvisada, o fato é que não se pode vê-la. Elementos que criam um pequeno e intrigante mundo, muito mais pelo que não é óbvio (Fotograma 01). 

Figura 1: Fotograma 01
Fonte: Filme Boa água, 2014.

Depois de mais de um minuto nesta imagem, acontece uma mudança, um corte. O que poderia ser um choque de continuidade no que se apresenta, mas o sol ainda é presente no horizonte e a trilha sonora continua. Nesta nova imagem, que constitui um mesmo universo, a câmera, ainda de forma trêmula, acompanha um grupo de crianças (fotograma 02). 

Figura 2: Fotograma 02
Fonte: Filme Boa água, 2014.

Subitamente e de forma sutil uma voz de menina surge, uma voz off,  recitando uma carta escrita para sua antiga vaca chamada Pintada. Na carta, a criança revela ter saudades do leite da antiga amiga, tendo, dessa forma, que beber o leite de caixinha. Agora, no decorrer da leitura da carta, outras imagens surgem de forma paralela: imagens do pasto, tendo como uma nova continuidade discursiva a presença, que é ausência, da vaca. 

As imagens não ilustram a carta, ao contrário, nos metem no centro do imaginário por ela aludido em sua interlocução com o animal. Quer dizer, a menina narra um evento, porém, não a vemos na vacaria, tampouco a vaca Pintada ou o teste gustativo sugerido pelo vaqueiro. Vemos o mundo com o qual a carta entra em relação, adicionando à imagem sua camada fabulatória, admitindo haver uma agência humana na vaca com a qual é possível dialogar e que, porventura, pode responder ao enunciado… nunca se sabe (MIGLIORIN; PIPANO, 2019. p. 150).

No fim da leitura da carta ocorre outra mudança na imagem. Agora a câmera mostra uma menina, mas o enquadramento não revela seu rosto. Nessa imagem “incógnita”, uma caixa de leite industrializado e um copo vazio se apresentam em um primeiro plano (fotograma 03), fechando, dessa forma, uma relação imagética entre o leite de caixa e o copo vazio com outros momentos do filme, tanto com a carta lida, como com o banho que inicia o filme. Esses elementos todos criam uma interligação única entre essas diversas imagens, criando um universo particular na obra, em que a carta lida se dirige a um devir não-humano: 

(…) olhar trans-individual dos corpos que tomam a câmera e com ela assumem, apenas fragmentária e provisoriamente, um novo ponto de ver – o qual, no limite, não remete a nenhum ponto de vista subjetivo, nem mesmo ao olhar da narradora da carta. Não há centralidade individual, apenas singularidades: desde o menino que toma sua ducha à garota que, ao final de Boa Água, bebe o leite de caixinha desenhando no gole um bigode constituído pela espuma branca leitosa, fixada em superclose (MIGLIORIN. PIPANO, 2019, p. 151).

O filme termina com a menina sem rosto enchendo o copo com o leite e bebendo, fazendo com que – quase que automaticamente, como se fosse uma necessidade a ser vista – a imagem mude para o enquadramento de sua boca suja com o leite ingerido (fotograma 04). Nesse instante, a trilha sonora acaba e se escuta uma voz dizendo: “Pronto”, como se fosse o sujeito que filma finalizando o próprio filme.

Figura 3: Fotograma 03 e 04
Fonte: Filme Boa água, 2014  

O que pode se perceber nas imagens descritas é que a instabilidade do dispositivo cria fissuras de significação, em que os instantes são forças que lutam ora contra o óbvio, contra uma narrativa fluida e assimilável; ora se apresentam como lógicos, fechando sentidos, mas que ao mesmo tempo buscam texturas: a luz do sol, o leite sujando a boca, o pasto. Texturas que afetam e desviam do que se busca óbvio.

No mundo contemporâneo, a arte cinematográfica não se restringe ao filme dramatizado, subordinado a um enredo, pelo contrário ela é uma regida por diversos modelos e dispositivos. Potencial que permite aos filmes produzidos na escola, como o filme descrito, ressignificar a forma como se percebe o próprio cinema contemporâneo, em que o campo cinematográfico também está “afetado pela crise epistemológica que assola todo o pensamento monotemático ocidental, o que inegavelmente cria novas problemáticas e expõe os limites das ferramentas empregadas diante das imagens, caras à razão moderna (MIGLIORIN; PIPANO, 2019, p. 152). Ou seja, não se trata mais de buscar entender o filme, que talvez possa ser interpretado como a falta de uma vaca leiteira, mas se abrir para além das representações, para além do identificável, indo em direção à instabilidade e à crise. Pontos de fuga que geram momentos desviantes, rupturas, em que se pode experimentar o outro como outras formas de se vivenciar um possível outro universo. 

Aqui, a representação deixa de se estabilizar como pretendente, reagir como sintoma ou enquadrar-se como exigência, para situar-se apenas como parte do que a imagem dá a ver, pois há propriamente corpos e sujeitos “representados”, figurando as cenas. Porém, as formas expressivas do filme assumem, pela montagem, uma potência que as ressignifica na pulsão do acontecimento e que fazem a representação tremer, abrindo-a ao desfundamento das imagens, como um ato performativo. Performance que se passa sem o imperativo de ter a câmera explicitada, na revelação do antecampo ou de outras demais estratégias reflexivas próprias ao regime de opacidade que caracterizou o cinema moderno, que jogam com a reflexividade reiterando ao espectador que, no final das contas, trata-se sobretudo de uma construção artificializada (MIGLIORIN; PIPANO, 2019, p. 151).

A cena do chuveiro improvisado, por exemplo, surgiu ao acaso; a carta lida foi inventada como exercício de sala de aula; o tema da vacaria era um conteúdo curricular que estava sendo abordado quando o filme foi produzido; e a cena do pasto foi pensada devido ao fato de existir um rebanho que passava todos os dias na frente da escola, fato que só não aconteceu no dia da filmagem. A própria prática é gerenciada por diversas circunstâncias que se relacionam ao ambiente escolar, como o fracasso das filmagens dos bois que deveriam passar em frente à escola, pela criação coletiva, pela ficção da carta inventada. Ou seja, através de afetos, de experiências e montagens cinematográficas, a escola está sendo inscrita de outras formas, que não através das forças disciplinadoras de uma prática voltada para o mercado de trabalho ou para a crítica ao sistema, mas revelando múltiplas subjetividades que fazem parte do dia a dia escolar.

CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS

Nessa dinâmica, pode-se pensar na imagem audiovisual como construtora de vivências do outro. “A experiência dos estudantes com o cinema se faz na própria ação de observar, discutir, montar e produzir imagens e não porque aquelas imagens serão lidas de uma maneira particular ou porque levarão os estudantes para outro lugar” (MIGLIORIN, 2015, p. 88), mas produtora de novos esquemas que não necessariamente devem seguir as lógicas vigentes.

Nesse sentido, o cinema não é uma prática inovadora somente por utilizar as novas tecnologias, mas sim na forma como ele é entendido. Criando um espaço que possa desestabilizar a própria instituição escolar, sem dessa forma a destruir. Produzindo uma prática escolar como um dispositivo que percebe o outro, as diferenças, no momento que o outro cria uma experiência através do próprio discurso cinematográfico e das potências da estética da imagem. 

REFERÊNCIAS

BONDÌA, Jorge Lorrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Jan/Fev/Mar/Abr, nº19, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbedu/a/Ycc5QDzZKcYVspCNspZVDxC/?format=pdf&lang=pt  Acesso em: 9 abr. 2022.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/. Acesso em: 24 fev. 2020.

DELEUZE, G. Cinema: Imagem-movimento. Rio de Janeiro: Brasiliense 1985.

DEULEZE, Gilles, GUATARRI, Felix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 54, 1997.

DELEUZE, G. Cinema: Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense 2005.

FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa Preta. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.

LOPES, Alice Casimiro; MACEDO, Elizabeth. Teorias de Currículo. São Paulo: Cortez, 2011.

MIGLIORIN, Cezar. Inevitavelmente cinema: educação, política e mafuá. Rio de Janeiro : Beco do Azougue, 2015.

MIGLIORIN, Cezar. O ensino de cinema e a experiência do filme-carta. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós, Brasília, v.17, n.1, jan./abr. 2014.2/16o www.e-compos.org.br| E-ISSN 1808-2599 |

MIGLIORIN , Cezar. Cinema e escola, sob o risco da demogracia. Revista contemporânea de edicacao, v.5, n9 (2010) Link: https://revistas.ufrj.br/index.php/rce/article/view/1604 Acesso em: 17 jul. 2020.

MIGLIORIN, Cezar; PIPANO, Isaac. Camerar um ponto de ver:a pedagogia das imagens em Boa Água. In: REBECA – Revista Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual.  v. 8, n. 1 (2019) link: https://rebeca.socine.org.br/1/article/view/563 acesso: 18 jul. 2020

MORIN, Edgar. A alma do cinema in: XAVIER, Ismail (Org.).A Experiência do Cinema. Rio de Janeiro: Graal,1983. .

SOARES, Maria da Conceição Silva. O audiovisual como dispositivo de pesquisas nos/com os cotidianos das escolas. VISUALIDADES (UFG), v. 14, p. 80-103, 2016.

XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

___

  1. Boa Água, 2014 ( 3m18s ) Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=I5HzsYel59k&feature=emb_title>. Acesso em: 16 Jul. 2020.

Imagem de destaque: Marcos Santos/USP Imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *