Uso da história da ciência em uma aula sobre microscopia
Ana Caroline Gonçalves Gomes dos Santos
Graduada em Ciências Biológicas (2014) e mestre em Ensino de Ciências (2017), ambos os títulos obtidos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atualmente é doutoranda em Ensino de Ciências na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e professora de Ciências na Rede Municipal de Ensino de Campo Grande/MS.
E-mail: anacarolineggsantos@gmail.com
Vera de Mattos Machado
Licenciada e Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula (USU-RJ) (1984), Mestrado em Educação (2004) e Doutorado em Educação (2011) pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É professora efetiva da UFMS, no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas onde atuando como orientadora dos Estágios Obrigatórios e em disciplinas de Prática de Ensino. Também atua nos cursos de Pós-graduação Mestrado Profissional em Ensino de Ciências – PPEC/INFI e Pós-graduação Doutorado Acadêmico em Ensino de Ciências – PPEC/INFI. É pesquisadora nas linhas de Formação de Professores de Ciências e Biologia, Didática das Ciências e no Ensino de Ciências e Biologia. Coordena o Grupo de Estudo e Pesquisa em Formação de Professores e Ensino de Ciências – GEPFOPEC/UFMS/CNPq. Pertence a equipe de gestão do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência – PIBID/UFMS. Desenvolve projeto de pesquisa sobre Formação de Professores de Ciências da Natureza, com fomento pela FUNDECT/MS. Esta como Diretora da Regional 1 (MS/MT/SP) da Associação Brasileira de Ensino de Biologia – Sbenbio – para período de 2017 a 2019.
E-mail: veramattosmachado1@gmail.com
INTRODUÇÃO
Este trabalho é parte de uma pesquisa de mestrado que teve o objetivo de investigar as contribuições que a História da Ciência (HC) pode trazer aos processos de ensino e aprendizagem de citologia. Neste texto, buscamos relatar os resultados de uma das etapas do trabalho, na qual desenvolvemos uma aula prática em que alunos do 8º ano do ensino fundamental puderam relacionar conhecimentos sobre a formação do conceito de célula, representações didáticas e microscopia.
Concordando com Palmero (2000, p. 237), consideramos que a compreensão do conceito de célula é fundamental nas disciplinas de Ciências e Biologia, pois, segundo a autora, esse conceito é chave na organização do conhecimento biológico, uma vez que “determina a estrutura e funcionamento de todo o mundo vivo”.
Desse modo, saberes relacionados à citologia, e que são trabalhados em várias fases da educação básica, devem ser propiciados de forma contextualizada a fim de subsidiar o posicionamento crítico dos estudantes perante questões veiculadas pela mídia, como transgênicos, clonagem, células-tronco, relação das drogas com o comportamento humano, entre outras (FOGAÇA, 2006).
No entanto, o estudo da célula é bastante abstrato e complexo, o que dificulta a compreensão desse conteúdo. Alguns estudos revelam, por exemplo, que os estudantes têm ideias pouco definidas sobre a célula, confundindo esse conceito com os de átomo e molécula; também não há clareza quanto ao tamanho das estruturas biológicas nos níveis de organização e, para muitos, a relação entre seres vivos e as células só existe nos seres humanos (PALMERO, 2000; PEDRANCINI et al., 2007; SILVEIRA; AMÁBIS, 2003).
De acordo com Freitas et al. (2009), essas dificuldades podem ser reflexos do modo como o estudo das células é tratado em sala de aula, como um ensino que se justifica por si mesmo, sem articulação com os seres vivos e o ambiente. Ademais, considerando a complexidade do estudo das células, Bastos (1992) declara que, muitas vezes, a escola não se preocupa em adequar as propostas pedagógicas ao nível do desenvolvimento cognitivo dos educandos.
Nesse contexto, pesquisas em educação têm ressaltado que a utilização da História da Ciência pode ser uma alternativa para minimizar as dificuldades encontradas no ensino de Ciências (BASTOS, 1998; MATTHEWS, 1995; MARTINS, 2006). Segundo essa perspectiva, conceitos trabalhados em citologia podem estar associados ao seu contexto de produção, facilitando a compreensão desses conhecimentos pelos alunos e a própria percepção de como a ciência é construída.
Além disso, pela sua peculiaridade microscópica, o estudo das células é mediado, basicamente, por representações, desenhos e esquemas didáticos que representam, a priori, as estruturas e os componentes celulares observados ao microscópio (BATISTETI; ARAÚJO; CALUZI, 2009). Mesmo assim, pode-se dizer que as representações da célula, em sua maioria, não são suficientes para propiciar aos alunos uma compreensão adequada desse conceito e, ainda, destoam bastante das imagens vistas pelos estudantes quando observam células ao microscópio ótico (HECK; HERMEL, 2014).
Assim, considerando as contribuições que a História da Ciência pode trazer para os processos de ensino e aprendizagem de citologia e as relações entre as representações didáticas da célula e o material celular visualizado ao microscópio ótico, desenvolvemos uma aula prática na qual propiciamos discussões sobre microscopia e a formação do conceito de célula ao longo da história.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A aula prática ocorreu no laboratório de Ciências de uma escola municipal localizada no município de Campo Grande/MS, durante 2 horas. Aproximadamente 30 alunos do 8º ano do ensino fundamental participaram das atividades.
Para a análise dos dados, adotamos pressupostos da análise microgenética fundamentada no referencial histórico-cultural do desenvolvimento humano. Segundo Góes (2000, p. 9), a análise microgenética é uma forma de construção de dados que “requer a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos”, sendo orientada para “as relações intersubjetivas e as condições sociais da situação”, resultando em um relato detalhado dos acontecimentos. Nesse contexto, a análise está direcionada para a investigação de minúcias, detalhes e ocorrências residuais que podem dar indícios relevantes sobre aprendizagem e desenvolvimento nos processos de ensino. Por esse motivo, os diálogos estabelecidos entre os alunos e deles com a professora durante a aula foram gravados e transcritos para a análise.
É importante destacar que essa aula prática foi umas das últimas etapas da pesquisa. Assim, antes dela, investigamos os conhecimentos cotidianos dos alunos sobre o conceito de célula e, a partir disso, desenvolvemos algumas aulas dialogadas em que foram discutidos os principais acontecimentos históricos que levaram à formulação da teoria celular, a importância do microscópio para o estudo das células e a utilização, os problemas técnicos e o aperfeiçoamento desse instrumento.
Durante a aula de laboratório, retomamos explicações sobre as partes e o funcionamento do microscópio ótico e, por meio de imagens, comparamos o microscópio da escola com os microscópios de Robert Hooke[1] (1635-1703) e Antony van Leeuwenhoek[2] (1632-1723) (Figura 1). Também discutimos sobre as diferenças entre microscópios simples e compostos e sobre o aperfeiçoamento desses instrumentos.
Figura 1 – Microscópio de Robert Hooke (esquerda) e réplica do microscópio simples de Antony van Leeuwenhoek (direita)
Fonte: Hooke (1665), prancha 1; Martins (2011).
Posteriormente, os alunos prepararam e observaram lâminas com epitélio da mucosa bucal e da epiderme da cebola. Depois disso, solicitamos a eles que comparassem as células vistas ao microscópio com os esquemas didáticos do livro e discutissem as diferenças identificadas, subsidiando-se nos conhecimentos já apresentados.
PRINCIPAIS RESULTADOS OBTIDOS DURANTE A AULA
Quando analisamos, inicialmente, as concepções cotidianas dos alunos sobre a célula e sua relação com a microscopia, verificamos que os estudantes apresentavam várias limitações. Inclusive, muitos não sabiam o que era uma célula. Além disso, a maioria nunca teve contato com um microscópio e alguns não sabiam o que era esse instrumento e/ou confundiam-no com outros, como o telescópio e o binóculo. Diante disso, nas aulas dialogadas e na aula sobre microscopia buscamos sistematizar os conhecimentos apresentados pelos alunos e reformular as concepções equivocadas.
Durante a aula prática, os alunos mostraram-se bastante interessados na compreensão do funcionamento do microscópio ótico e, quando comparamos o microscópio da escola aos de Hooke e Leeuwenhoek, alguns alunos lembraram das representações de Hooke (1665) no livro Micrographia[3] (como o piolho e a pulga) e que Leeuwenhoek utilizava, principalmente, microscópios simples com poder de resolução bastante considerável, mesmo em comparação com instrumentos modernos (MANNHEIMER, 2002; MARTINS, 2011).
Os alunos também conseguiram diferenciar os microscópios simples dos compostos enquanto se revezavam para observar vários materiais em suas lâminas (Figura 2). Nesse momento, relembramos que por muito tempo os microscópios compostos foram “ofuscados” pelos simples, uma vez que os últimos apresentavam menor custo e produziam menos distorções na visualização. Somente entre 1800 e 1900 esses problemas foram resolvidos, a partir de inúmeras pesquisas (MANNHEIMER, 2002).
Figura 2 – Alunos observando alguns materiais em microscópio composto (esquerda) e simples (direita)
Fonte: Arquivo pessoal das autoras (2016).
Ao observar as células da cebola, os alunos relataram que elas se assemelhavam ao esquema de células de cortiça desenhado por Hooke. Logo, questionamos à turma o porquê dessa semelhança. Depois de um tempo de reflexão e debate de ideias, os alunos finalmente chegaram à conclusão de que tanto a cebola quanto a corticeira possuíam células vegetais.
O mecanismo de ação dos corantes também gerou curiosidade. Nisso, explicamos que os corantes agem como ácidos e bases e que até a metade do século XIX, aproximadamente, eles eram quase sempre isolados de fontes naturais, provenientes de vegetais ou de animais (BRAMMER; TONIAZZO; POERSCH, 2015)
Durante a observação das lâminas, os alunos também relataram que as células da cebola eram “mais bonitas” e “mais fáceis de ver” do que as da mucosa. Em alguns momentos, os estudantes tiveram dificuldade de visualizar as células animais nas lâminas. Aproveitamos essa situação para explicitar que essa dificuldade também foi encontrada pelos cientistas que estudavam tecidos animais durante o século XVIII e que, por conta dela, muitos estudiosos não imaginaram que as unidades encontradas em tecidos vegetais e animais eram a mesma coisa, tanto que o termo “célula” era usado apenas para células vegetais e “glóbulos”, para células animais (BECHTEL, 1984).
Essa aproximação da experiência dos alunos com a de alguns cientistas foi interessante para demonstrar que erros e/ou interpretações equivocadas também fazem parte do desenvolvimento da ciência. Além disso, como salienta Martins (2006), as dificuldades dos alunos, muitas vezes, são semelhantes às de muitos cientistas durante o processo de desenvolvimento de um conhecimento científico, como observamos durante a aula.
Posteriormente, questionamos sobre as principais diferenças encontradas entre uma célula e outra. Os estudantes se referiram, principalmente, ao tamanho e à aparência “retangular” da célula vegetal. Nesse ponto, relatamos que a dificuldade em estabelecer uma relação entre os animais e as plantas durante o século XVIII residia no fato de as células vegetais serem mais visíveis ao microscópio por conta de suas paredes celulares (responsáveis pelo formato retangular dessas células), estruturas que as células animais não possuem.
Quando propusemos a comparação entre as células vistas ao microscópio e os esquemas do livro didático, os estudantes logo declararam que as representações do livro estavam “mais bonitas” ou que tinham “mais organelas”. Diante disso, perguntamos aos alunos como todas aquelas estruturas foram descobertas e por que Hooke, por exemplo, não identificou todas elas em seu microscópio.
As respostas foram as mais variadas. Alguns alunos, por exemplo, relataram que Hooke não sabia exatamente o que era uma célula e que seu interesse estava no estudo das propriedades da cortiça; outros falaram que o microscópio dele não era “potente” o suficiente; alguns declararam que somente um microscópio mais potente que o da escola permitiria “enxergar” as estruturas presentes no livro; outros afirmaram, ainda, que foram necessários mais estudos sobre as células. No geral, a maioria dos alunos utilizou os conhecimentos propiciados nas aulas dialogadas para responder aos questionamentos.
A partir das ideias apresentadas pelos alunos, discutimos que a representação de célula presente no livro é fruto de diversas pesquisas desenvolvidas ao longo do tempo e que o modelo de célula que temos hoje já é bastante diferente do que foi visto por Theodor Schwann[4] (1810-1882) e Matthias Schleiden[5] (1804-1881), por exemplo. Ressaltamos ainda, fundamentados em Batisteti, Araújo e Caluzi (2009), que o esquema didático presente no livro está de acordo com a imagem obtida pelos microscópios eletrônicos, desenvolvidos a partir do século XX.
No geral, percebemos que a maioria dos alunos utilizou as falas e os conhecimentos propiciados pela professora para responder aos questionamentos. Baseadas na perspectiva vigotskiana, entendemos que esse “imitar” não se trata de mera cópia do discurso do professor, como salienta Vigotski (2009), pois a imitação é a principal forma por meio da qual se realiza a influência da aprendizagem sobre o desenvolvimento e, dessa maneira, o sujeito só consegue imitar aquilo que se encontra na zona de suas potencialidades intelectuais.
Ao final da abordagem pedagógica que apresentou essa aula prática como uma de suas etapas, verificamos que muitos alunos evoluíram conceitualmente no que diz respeito ao conceito de célula e a algumas concepções sobre a História da Ciência. Isso demonstrou que os diálogos estabelecidos entre os alunos e com a professora, mediados pela apresentação de alguns dos episódios históricos que contribuíram para a formação do conceito de célula, foram significativos e permitiram reestruturações conceituais. Assim, a sistematização proporcionada pelo trabalho com conceitos científicos influenciou a estruturação de conceitos cotidianos dos alunos, elevando-os a formas mais elaboradas conceitualmente (VIGOTSKI, 2009).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante a aula prática, pudemos retomar e aprofundar conhecimentos sobre a construção do conceito de célula, utilizando como pano de fundo o episódio histórico da formação da teoria celular e as pesquisas subsequentes que culminaram na representação didática da célula presente no livro.
Nesse contexto, acreditamos que a experiência vivenciada foi significativa tanto para as pesquisadoras, que aprofundaram estudos sobre a História da Ciência, quanto para os alunos, que compreenderam que suas dificuldades no entendimento de certos conceitos são plausíveis, pois a ciência não é simples, harmônica, linear, dependente de gênios, mas, sim, produto de tentativas, erros e acertos de muitos cientistas ao longo da história.
Assim, concordamos que a aprendizagem da ciência deve estar relacionada a uma aprendizagem sobre a ciência, a fim de reestruturar concepções equivocadas sobre a natureza do trabalho científico (SILVA; MOURA, 2008). Desse modo, a abordagem contextual de conceitos científicos, como o de célula, pode tornar a aprendizagem mais significativa e aproximar os alunos das circunstâncias em que os conhecimentos estudados foram produzidos.
Ademais, sabemos que muitos recursos didáticos, como os esquemas presentes em livros, trazem visões descontextualizadas historicamente, induzindo concepções equivocadas acerca da natureza da ciência. Minimizar essas limitações não é um processo fácil, uma vez que a formação inicial, muitas vezes, não dá subsídios para que os professores identifiquem essas distorções. Entretanto, cabe a nós, profissionais da educação, pesquisar fontes e estratégias que vão além do que é oferecido nos livros didáticos a fim de oferecer um ensino mais significativo e contextualizado a nossos alunos.
REFERÊNCIAS
BASTOS, F. O conceito de célula viva entre os alunos de segundo grau. Em aberto, Brasília, DF, ano 11, n. 55, p. 63-69, jul.-set. 1992.
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BATISTETI, C. B.; ARAÚJO, E. S. N.; CALUZI, J. J. As estruturas celulares: o estudo histórico do núcleo e sua contribuição para o ensino de Biologia. Filosofia e História da Biologia, Campinas, v. 4, p. 10-25, 2009.
BECHTEL, W. The evolution of our understanding of the cell: a study in the dynamics of scientific progress. Studies in History and Philosophy of Science, [S.l.], v. 15, n. 4, p. 309-356, Dec. 1984.
BRAMMER, S. P.; TONIAZZO, C.; POERSCH, L. B. Corantes comumente empregados na citogenética vegetal. Arquivos do Instituto Biológico, São Paulo, v. 82, p. 1-8, 2015.
FOGAÇA, M. Papel da inferência na relação entre modelos mentais e modelos científicos de célula. 2006. 229 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
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VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[1] Robert Hooke foi um importante filósofo natural que deu contribuições a diversas áreas do conhecimento.
[2] Antony van Leeuwenhoek era um naturalista e microscopista holandês.
[3] Título completo da obra: Micrographia: or some physiological descriptions of minute bodies made by magnifying glasses with observations and inquiries thereupon. Tradução: “Micrografia: ou algumas descrições fisiológicas de pequenos corpos, feitas com lentes de aumento, com observações e investigações a seu respeito”.
[4] Theodor Schwann foi um fisiologista e anatomista alemão. Formulou a teoria celular em 1839.
[5] Matthias Schleiden foi um botânico alemão que colaborou com Schwann na formulação da teoria celular.