PIBID PORTUGUES

Entre identidades e alteridades: PIBID Língua Portuguesa

De agosto de 2018 a janeiro de 2020, uma equipe de docentes da educação superior, professores de educação básica e licenciandos se formou para a constituição do Subprojeto de Língua Portuguesa, inserido no núcleo de Letras do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Esse grupo se organizou em atividades em duas escolas de Belo Horizonte: a Escola Estadual Três Poderes e o Colégio Técnico da UFMG (COLTEC).

A seguir, relatamos algumas das atividades desenvolvidas nesse contexto, com a intenção de não apenas dar visibilidade a elas, mas também promover reflexões que possam nos ajudar e, igualmente, ajudar a outros interessados no aprofundamento de questões como o ensino de Língua Portuguesa, a iniciação à docência e a formação continuada.

Organização das atividades do subprojeto

O subprojeto organizou suas atividades na maior parte do tempo de forma alternada, em dois tipos de reuniões quinzenais: reuniões gerais com todos os participantes das duas escolas e reuniões de equipe com o grupo de cada uma das duas escolas, ambas acompanhadas pela coordenadora de área. A partir desses encontros, foi possível, além de planejar e avaliar o que acontecia nas escolas, focar na formação continuada em diálogo com a prática da iniciação à docência. As reuniões gerais, no segundo semestre de 2018, deram lugar a um exercício prático de aula pelos licenciandos, para suprir uma necessidade identificada por eles em disciplinas de sua formação. Essas aulas, de tema escolhido pelos licenciandos, eram comentadas por todos quanto à didática e à abordagem do conteúdo e, a partir daí, foram propostas reflexões que alimentaram as iniciativas na escola, visando à formação inicial do licenciando e continuada dos professores. Sugestões de leitura teórica foram feitas antes e após esses encontros, de acordo com as necessidades que surgiram. 

Em 2019, começamos o semestre discutindo a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Chamou a nossa atenção o destaque para as mídias digitais e para o desenvolvimento de multiletramentos, como parte da necessidade de dialogar com práticas sociais contemporâneas dos alunos, o que está em confluência com discussões também muito presentes na universidade. Ao longo da leitura, houve questionamentos sobre quais práticas seriam realizadas em consonância com propostas da BNCC, a qual, em muitos casos, parecia distante da realidade escolar, especialmente em se tratando da infraestrutura tecnológica e da limitação do professor para, sozinho, desenvolver projetos mais complexos. Nesses casos, uma equipe como a do PIBID contribui sobremaneira, além das parcerias entre os professores, mas apenas um profissional em sala não consegue dar conta. É o caso do tratamento do gênero documentário e da preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que relataremos adiante. Percebeu-se, também, na análise da BNCC, que a formação oferecida nos cursos de licenciatura não consegue ainda abranger todas as habilidades e competências que os professores devem ser capazes de trabalhar com os alunos, principalmente no que diz respeito à interdisciplinaridade e à utilização das novas arenas de comunicação, como a internet e o audiovisual. Dessa forma, fica claro o papel do PIBID na diminuição da distância entre a formação dos licenciandos e as exigências profissionais feitas pela BNCC e pelo mercado de trabalho aos professores.

No segundo semestre, optamos por discussões de questões levantadas pela prática dos licenciandos, como avaliação e letramento literário na prática. 

Para o tema avaliação, selecionamos cinco textos para discussão por todos na reunião: Ruiz (1998); Antunes (2006); Malheiros (2013); Nova Escola (2017) e Suassuna (2019). Ao longo das discussões, apresentamos estratégias adotadas na avaliação dos textos e da aprendizagem, confrontando as experiências com sugestões encontradas nos textos teóricos. Discutimos a postura de avaliar procurando “erros”, que é hábito do avaliador, como menciona Antunes (2005), ao contrário da postura colaborativa do leitor, que lê procurando entender o texto. Nos atualizamos sobre os tipos de avaliação, citadas e exemplificadas por Ruiz (1998): indicativa (quando se circunda ou sublinha a palavra em que ocorre o problema); correção resolutiva (quando se corrige todos os erros, reescrevendo palavras, frases e períodos inteiros); classificatória (quando se classifica o tipo de erro cometido) e a textual-interativa (quando se deixam comentários mais longos com considerações sobre a tarefa do aluno). Concluímos que nossa avaliação antes feita de forma mais intuitiva misturava os vários tipos, mas, a partir dessas conversas, tomamos consciência dos tipos e nos propusemos a utilizá-los de forma mais consciente e produtiva para a relação professor-aluno, levando em conta o nível de desenvolvimento do aluno, conforme Vygotsky (1984). 

Para abordagem do letramento literário, lemos e discutimos o livro de mesmo nome de Cosson (2014). Entre vários e pertinentes aspectos tratados na obra, conversamos sobre a aprendizagem da literatura (experienciar o mundo pela palavra), a aprendizagem sobre a literatura (conhecimentos de história, teoria e crítica) e a aprendizagem por meio da literatura (saberes e habilidades proporcionados pela literatura), todas citadas pelo autor (COSSON, 2014, p. 47). Ele afirma que é preciso focar na aprendizagem da literatura, favorecendo a experiência sensível dos alunos. Comentamos sobre a crítica que o autor faz à prática de estudo dos períodos literários (Arcadismo, Romantismo etc.), geralmente criticada na universidade, mas ainda muito presente nos livros didáticos e experiências do professor de educação básica. Argumentou-se sobre a importância dessa prática, desde que feita de forma reflexiva e crítica, para além do livro didático. 

Esse resumo da organização das nossas ações busca mostrar o cenário em que se deram as atividades em cada escola, as quais relataremos a seguir. As atividades se construíram na complexa rede entre teoria e prática, entre problemas e soluções encontradas, por meio de diálogos com cada um dos membros dessa comunidade que se formou em prol do ensino-aprendizagem de português nos contextos das duas escolas onde atuamos. Foi nesses diálogos que a equipe percebeu que as atividades iam no sentido da relação identidade e alteridade, noções que se tornaram importantes para nos guiar no planejamento e execução dos percursos de cada escola.

Atividades do COLTEC

No COLTEC, os bolsistas trabalharam em 2018 em três frentes principais: 1) em pesquisas realizadas pelos bolsistas do Programa de Iniciação à Docência (PID) sobre a organização do sistema escolar (sobre funções dos professores, relação do professor com a administração escolar, pesquisa de opinião de professores da educação básica sobre seu trabalho, por exemplo), o que era discutido em reuniões quinzenais do grupo; 2) em observação de aulas e outras práticas da escola e preparação de uma aula por cada dupla, sobre conteúdo já previsto no planejamento do professor; e 3) em um projeto de ensino, para o semestre seguinte.

As discussões e debates do grupo sobre a organização do sistema escolar se mostraram muito relevantes para realçar aos bolsistas a função do docente e suas múltiplas facetas dentro e fora da escola. O papel do professor – segundo a LDB (MEC BRASIL, 1996) e congêneres – é fundamental dentro da escola e se reflete em toda a sociedade, pois ele é um agente ativo e operacional na formação de um sujeito e de um cidadão. Além de ser um educador, atuando como gestor de aprendizagem, o professor tem influência para orientar e motivar seus alunos desde o primeiro contato com a escola.

Sobre isso, é importante destacar que não há uma forma padrão para o exercício da profissão. E, antes de tudo, é fundamental enfatizar que todo docente deve e pode admitir erros e reconhecer que aprende enquanto ensina, principalmente com seus alunos. Da mesma forma, é papel do docente pesquisar e elaborar métodos alternativos de avaliação e de procedimento (considerando a classe e o próprio professor) a fim de se preservar a organização escolar, o processo de ensino-aprendizagem e sua própria saúde física, emocional e psicológica. Entre as muitas funções executadas pelo professor e discutidas nas reuniões do COLTEC, as principais serão apresentadas a seguir.

Em primeiro lugar, cabe ao docente orientar os alunos para neles despertar o interesse e a vontade de buscar seus objetivos com seus próprios esforços, planejando e elaborando atividades desafiadoras que valorizem o potencial de cada aluno. É relevante estabelecer uma relação igualitária e dialógica com seus alunos, reconhecendo seus saberes e legitimando a sua capacidade de contribuição com seu próprio processo de desenvolvimento. De tal forma, o docente exercerá o papel não de mestre, mas também de um mediador, um facilitador e um articulador do conhecimento, provocando o aluno a aprender a partir de seus próprios questionamentos. Com tais ações, o docente poderá promover o protagonismo do aluno que, conforme seu engajamento e maturidade, estará apto a se assumir como autor do seu próprio processo pedagógico. Nessa concepção, é lícito ressaltar ao docente o papel de respeitar as diferenças, entendendo que cada estudante é único, aprende de uma forma diferente e vive em um contexto próprio. Assim, compete ao docente zelar cuidadosamente pela aprendizagem dos alunos, segundo artigo 13 da LDB. Ao professor, de forma mais centralizada, cabe a preparação e organização do material curricular em prol da aprendizagem. Uma dúvida surgiu em vista de tais considerações: seria então papel do docente identificar as necessidades de desenvolvimento no nível intelectual, físico, emocional, social e cultural de seus alunos? Como?

Dando prosseguimento à análise, vimos que o docente precisa estabelecer pesquisas que estimulem os alunos a realizar estudos argumentativos, considerando a interação entre os temas do passado e do presente. Todavia, como seriam articulados os métodos de avaliação? Como distribuir pontos sem elaborar atividades punitivas que apenas desvalorizam os alunos? São temas que foram continuamente discutidos pela equipe e ainda o serão pelos professores em seu ofício diário.

As discussões e análises foram articuladas pelos bolsistas sob a orientação do supervisor, estando os bolsistas organizados em duplas para que o tempo fosse melhor aproveitado e a interação se desse de modo mais dinâmico.

No primeiro semestre de 2019, foi escolhido um tema central que guiasse o desenvolvimento das atividades em sala: a alteridade. Assim, cada dupla de bolsistas ficou responsável por desenvolver um conjunto de atividades relacionadas a essa temática para que fossem realizadas com os alunos do segundo ano do ensino médio. Os trabalhos elaborados tiveram como foco os gêneros discursivos, partindo da leitura e produção de textos, sendo eles: a música, a crônica, a fanfiction e o Teatro do Oprimido. No segundo semestre, a maior preocupação dos bolsistas do COLTEC foi o ENEM, atendendo à necessidade dos alunos do 2º ano quanto à preparação para a produção de textos em regime de concurso nacional, geralmente concentrada apenas no 3º ano. 

A BNCC, que define as aprendizagens essenciais na educação básica, norteando o currículo escolar e as propostas pedagógicas, reconhece que a sociedade atual é marcada pelo desenvolvimento tecnológico, sendo movida pelas tecnologias digitais (MEC BRASIL, 2018, p. 473) e estabelece que no ensino médio o foco deve estar “no reconhecimento das potencialidades das tecnologias digitais para a realização de uma série de atividades relacionadas a todas as áreas do conhecimento” (MEC BRASIL, 2018, p. 474). Para a BNCC, a escola deve proporcionar que os estudantes apropriem-se:  

das linguagens da cultura digital, dos novos letramentos e dos multiletramentos para explorar e produzir conteúdos em diversas mídias, ampliando as possibilidades de acesso à ciência, à tecnologia, à cultura e ao trabalho”, e usem “diversas ferramentas de software e aplicativos para compreender e produzir conteúdos em diversas mídias, simular fenômenos e processos das diferentes áreas do conhecimento. (MEC BRASIL, 2018, p. 475)

Nesse sentido, considerando as particularidades do público do ensino médio, a oficina de escrita de fanfiction (ou fanfic) teve como objetivo oferecer uma outra forma de aprimorar a escrita pelo desenvolvimento de elementos que garantem coerência e coesão, a progressão textual e a adequação ao gênero e à prática social na qual ele se inscreve. As fanfics são “histórias produzidas por fãs, baseadas em livros, filmes, seriados, quadrinhos, dentre outros” (ALENCAR, ARRUDA, 2017, p. 89).

A ideia de se trabalhar a fanfic surgiu de um Projeto de Pesquisa desenvolvido por um dos licenciandos na disciplina de Introdução à Pesquisa Científica, na qual se tomou esse gênero textual como macrotema. A escolha dela para as atividades nas aulas do COLTEC considerou a proximidade do gênero ao universo jovem, o que propiciou maior identificação e, consequentemente, maior engajamento dos estudantes ao longo da oficina. Ademais, a relação com o tema alteridade se dá no exercício do autor de compreender o outro colocando-se no lugar dele em um cenário ficcional. Durante as intervenções em sala, foram apresentadas uma introdução e algumas particularidades sobre o gênero e, em seguida, foi solicitada a produção textual. Além disso, também retomamos modos diferentes de criar uma fanfic, a partir de músicas, por exemplo, e não apenas como derivada de filmes ou outras obras do universo ficcional. Os textos produzidos durante a oficina foram publicados no Wattpad¹, plataforma destinada à publicação de fanfics.

O trabalho com o teatro surgiu a partir da leitura do conto “Espiral”, de Geovani Martins (2018), que aborda críticas sociais relacionadas a questões raciais e econômicas. Esse conto se mostrou primoroso para o trabalho com o tema alteridade, já que suscita a reflexão sobre o “se colocar no lugar do outro”. O protagonista, morador do morro, ao observar que seus vizinhos da Zona Sul sentem medo ao vê-lo, cria pequenas perseguições, em uma espiral alimentada pela violência e pelo preconceito, para observar a reação do outro, mostrando a fronteira entre morro e asfalto. As “encenações” propostas pelo narrador de “Espiral” levaram ao Teatro do Oprimido (TO), com o objetivo de estimular os alunos a refletirem sobre a própria vida, a convivência em comunidade e expressar criticamente suas insatisfações através da arte. O Teatro do Oprimido (TO) é “um método teatral em que a construção do drama é realizada por pessoas que sofrem opressões, conceitualmente consideradas entraves para a realização de desejos e para a experiência de uma vida livre, democrática, humana” (CAMPOS et al., 2014, p. 553). Após leitura do conto e discussões, os alunos fizeram exercícios dramáticos, sendo convidados a participar debatendo e apresentando saídas para as situações encenadas, como é próprio do método.

A proposta de trabalho com o ENEM se deu pelo destaque atual no acesso ao ensino superior. Com o grande foco na redação, os alunos buscam uma boa produção textual no maior e mais abrangente exame avaliativo do país. Em duplas, os bolsistas então abordaram os métodos de avaliação dessa prova, estudando e analisando um rico conjunto de temas que já participaram do exame. Além disso, corrigiram textos dos alunos, levando em conta as cinco competências que orientam as avaliações das redações e as discussões sobre avaliação citadas anteriormente. Cada texto corrigido recebeu seu respectivo feedback e os alunos puderam reescrever os textos num exercício contínuo de leitura e escrita. Uma professora da educação básica, que participa da correção de redações do ENEM, foi ao COLTEC conversar com os bolsistas sobre o exame e dar dicas de como preparar os alunos para esse contexto.

Abordar a redação do ENEM no segundo semestre resultou em uma já prevista satisfação dos alunos em relação às atividades do primeiro semestre. Deve-se destacar que o perfil de aluno do COLTEC é caracterizado pelo perfil do curso técnico. Por isso, os estudantes se preocupam muito em produzir material e aprender matérias teóricas. Os resultados foram muito positivos, pois os alunos valorizaram muito as aulas e todo conteúdo abordado, o que trouxe muita satisfação para o grupo de bolsistas do COLTEC.

Em reuniões periódicas da equipe, além de discutir o andamento das atividades, os bolsistas foram encarregados de preparar discussões em vista de temas prementes na escola e no ensino de Língua Portuguesa contemporâneo. Temas como “Disciplina na escola: qual, como, para que e para quem?”, “Relação professor/aluno: limites, liberdades e responsabilidades”, “Saúde do professor: cuidados e negligência”, “Políticas de inclusão e de exclusão na escola”, “Escolarização da literatura”, “Ensinar língua portuguesa por meio da produção de textos: desafios contemporâneos”, “Furor pedagógico X experiência: qual a relação?” e “O recém licenciado hoje: perspectivas” foram pesquisados, apresentados e debatidos para atender necessidades sentidas pelos próprios licenciandos na prática suscitada pelo PIBID. 

Atividades da Escola Estadual Três Poderes

Em 2018, na E.E. Três Poderes, os bolsistas se dividiram em duplas: duas delas dedicadas a turmas do segundo ano e outras duas a turmas do terceiro ano do ensino médio. As atividades se desenvolveram em torno da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, a partir de um acordo de leitura com os alunos, no início do semestre. Várias atividades foram desenvolvidas levantando características da obra, do autor e do estilo de época que ainda predomina no estudo da literatura nas escolas. Ao final do semestre, os alunos fizeram apresentações de trabalhos realizados a partir da leitura, em formato de poemas, desenhos, maquetes e teatros. Na Figura 1, um aluno apresenta um desenho que fez com colegas sobre a obra. 

Nas turmas de terceiro ano, as atividades foram direcionadas, por demanda dos alunos, à preparação para o ENEM, por meio do exercício de escrita e reescrita de produções de texto, trabalho com a matriz de correção utilizada no exame e levantamento de problemas frequentes na adequação ao gênero e à situação de comunicação esperados. Além disso, após a realização do exame, os bolsistas auxiliaram nas aulas de Literatura Portuguesa. Numa tentativa de contemplar a Lei nº 10.639, que estipula a obrigatoriedade do ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, apresentaram planos de aula que trabalhassem autoras e autores afro-brasileiros em consonância com a realidade dos estudantes da escola pública.

Figura 1: O estudante da Escola Três Poderes apresenta um desenho feito a partir da leitura de Dom Casmurro.
Fonte: Acervo PIBID Língua Portuguesa.

No início do ano letivo de 2019, deparamo-nos com alunos das turmas do primeiro ano do ensino médio, sendo eles, em grande maioria, egressos do ensino fundamental de escolas municipais e estaduais. Num primeiro contato, foi observado um repúdio em relação ao ensino da Língua Portuguesa, a qual foi classificada pelos estudantes como disciplina cansativa. Seguindo as observações, a professora fez uma sondagem oral sobre o hábito de leitura dos alunos. Percebeu-se, assim, que um número muito pequeno tinha essa prática. A partir daí, juntamente com os bolsistas do PIBID, deu-se início à leitura da obra literária O olho de vidro do meu avô, de Bartolomeu Campos de Queirós. Foi um momento de perceber que a biblioteca da escola é um espaço físico distante dos alunos, assim como do prédio das salas de aulas. Então, ela passou a ser frequentada pelos estudantes como o local apropriado para realizar essa leitura coletiva do livro.

Aprender a ler e a escrever é, por assim dizer, uma técnica que vai além do ato propriamente dito, é ver o mundo com vários olhos, é interpretar o que se lê e lançar essa ideia no mundo, na perspectiva de Freire (2005). Nosso trabalho com a literatura priorizou a leitura e a análise do texto literário. Esse visou a compreender de que forma o autor utiliza a linguagem, organiza seus textos tanto na forma quanto no conteúdo, na perspectiva de aprendizagem da literatura, conforme Cosson (2014), já citado. O importante foi que os alunos perceberam a leitura também como instrumento de prazer, como ferramenta lúdica. Isso lhes permite explorar outros mundos reais ou imaginários, que os aproximem de outras pessoas e de outras ideias e, assim, possam interagir na sociedade em que estão inseridos.

Durante todo o estudo da obra literária, buscou-se estabelecer relações entre o autor, a história da obra, os elementos da narrativa, a linguagem poética, o gênero memórias e a cultura de que fazem parte nos campos artísticos, culturais e sociais. Por meio dessa prática pedagógica, o aluno não apenas desenvolveu habilidades específicas de leitura de linguagens, mas também outras habilidades, como: comparar, transferir, sintetizar, inferir e levantar hipóteses. Desse modo, ao mesmo tempo amplia e solidifica seu repertório sociocultural.

Em um segundo momento, já imbuídos das reflexões sobre o tema identidade, abordamos as variedades linguísticas por meio de vídeos e textos que ressaltaram as particularidades da língua de cada região do país. Uma das pibidianas ilustrou o estudo com demonstração do ALIB – Atlas Linguístico do Brasil. Logo depois, ao estudar a Língua Portuguesa e suas origens, vimos que o português é língua oficial de vários países; entre eles estão: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Como forma de consolidar nosso estudo, organizamos uma feira cultural sobre os países lusófonos. Nela, proporcionou-se aos alunos e à comunidade escolar “viajar” para cada um desses lugares e conhecer as principais características (sociais, geográficas, culturais, históricas, religiosas etc.) dos países lusófonos.

Com uma participação mais assídua dos bolsistas, em concomitância com o projeto dos países lusófonos, a atenção foi direcionada para o desenvolvimento do gênero documentário, dentro da proposta da 6ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa. Para a produção final de um documentário dentro do tema “O lugar onde vivo”, de até 5 minutos, que seria submetido à avaliação da banca deste concurso, foram propostas diferentes atividades na escola, organizadas pela equipe do PIBID. Acreditando na importância do projeto e na aprendizagem mútua, o grupo da E. E. Três Poderes se separou em duplas, que se encarregaram de desenvolver, cada uma delas em uma turma de primeiro ano do ensino médio, as oficinas e blocos do material da Olimpíada.

Torna-se importante ressaltar que o gênero documentário impôs grandes desafios à equipe, como o domínio das tecnologias específicas de gravação e edição, além de vários termos próprios do contexto cinematográfico. Foi preciso, então, que os bolsistas se dedicassem a estudar os materiais e que contassem ainda com estudantes de outras áreas para ajudar na preparação dos alunos. Nesse contexto, os alunos deveriam entender conceitos básicos da linguagem audiovisual (como corte, cena, plano, frame), além dos subgêneros, conceitos tratados nos materiais disponíveis ao professor no site da Olimpíada, assim divididos: situando o gênero documentário; a linguagem audiovisual; pré-produção de documentário; produção e pós-produção. Foi depois da introdução aos gêneros do discurso (feita pela professora supervisora) que as aulas sobre o documentário contaram com a participação da dupla com sua turma específica. Com encontros semanais, os bolsistas planejaram suas aulas e discutiram soluções para problemas encontrados nas atividades. Juntos, embasados no que haviam decidido nos encontros, os bolsistas abordaram a sinopse, o argumento, o roteiro e os subgêneros propriamente textuais exigidos para a participação na Olimpíada.

Ao longo do projeto, foi proposta uma sessão de cinema com o documentário Na missão, com Kadu, que tematiza os conflitos fundiários latino-americanos e, mais ainda, o processo de resistência da ocupação urbana Izidora em Belo Horizonte contra as truculentas investidas da Polícia Militar. Assim, além da aproximação pela territorialidade do filme, em que se contempla o tema “O lugar onde vivo”, os estudantes também tiveram a oportunidade de se acercar do roteirista e diretor do curta, que veio compor uma mesa de debate como convidado especial do PIBID. Aiano Bemfica, que percorreu festivais de cinema levando a função de denúncia social do comentário com Na missão, com Kadu, discutiu com os alunos sobre direitos autorais, representatividade, lugar de fala, falta de recursos, condução de entrevistas, dentre outros pontos levantados pelos próprios participantes da roda. Percebemos que a película, gravada em sua maior parte por uma câmera de celular de um não profissional de cinema, inspirou os estudantes em suas produções, demonstrando, a partir da potência de suas imagens e da série de prêmios com os quais foi reconhecido², que a falta de verba e a pouca técnica formal não são impeditivos para a produção de conteúdos impactantes. 

Imbricada às oficinas a partir do material da Olimpíada sobre linguagem audiovisual, conduziu-se a formação dos alunos a fim de ampliar a reflexão e leitura de textos multimodais e desenvolver estratégias de persuasão que serviriam às suas intenções na produção de seus documentários. Assim, a proximidade ou o distanciamento de câmera já não eram mais algo tão natural e inocente para os alunos.

Por fim, é chegado o momento de os alunos apresentarem para a turma a primeira filmagem, e as surpresas foram inúmeras. Moradores de rua, meninas que moram em abrigo e preconceito ao grupo LGBTQ+ são algumas das questões escolhidas para dar tom, ganhar voz e reflexão nas mãos dos alunos guiados pelo tema “O lugar onde vivo”. Os documentários foram assistidos em conjunto para que pudessem ser sugeridas modificações, possíveis edições ou até mesmo outra filmagem. A equipe de pibidianos, em conjunto com a equipe de professores e administração da escola, escolheu um documentário para representá-la no concurso da Olimpíada de Língua Portuguesa. O escolhido foi o documentário sobre as meninas que moram em abrigo, um dos vencedores da etapa municipal da seleção. Ao todo, foram cerca de quarenta documentários produzidos pelos alunos, os quais foram exibidos para toda a comunidade escolar no auditório de áudio e vídeo no dia 31 de agosto de 2019.

Já no segundo semestre, as atividades desenvolvidas seguiram uma temática comum às do primeiro no que se refere, sobretudo, aos eixos da identidade, do pertencimento e da memória. Para o novo trabalho a ser desenvolvido na escola com as seis turmas do primeiro ano do ensino médio, elegeu-se o livro Becos da Memória, de Conceição Evaristo, então homenageada da Olimpíada de Língua Portuguesa. Essa escolha esteve respaldada por um desejo de aproximar o texto literário da realidade dos alunos, não só enquanto vivências, mas uma aproximação linguística também e, assim, proporcionar uma experiência estética de maior engajamento, com foco na formação do leitor literário. Além disso, a escolha também foi orientada pela origem da autora, nascida em Belo Horizonte, que relata em seu romance o processo de desapropriação e desfavelamento do bairro Cruzeiro, atualmente zona nobre da capital mineira, sustentado pelo anterior diagnóstico de que esse tipo de proximidade desperta interesse e identificação por parte dos estudantes. Desse modo, buscou-se não só valorizar a prática de leitura identitária, como questionar os preceitos da tradição canônica, que privilegia a memória de determinado grupo social, ao passo que silencia a de tantos outros, como é o caso da vivência de uma mulher negra e de origem periférica, que, apesar de ter se tornado doutora e romancista mundialmente aclamada, ainda é rejeitada pela Academia Brasileira de Letras³.

Sob essa perspectiva, as atividades se iniciaram a partir da apropriação do espaço da biblioteca, então pouco utilizado, como relataram os próprios alunos. Essa atividade consistiu na leitura coletiva seguida de comentários e reflexões das páginas iniciais do livro. Com isso, objetivou-se despertar o gosto pela obra para que os alunos partissem para uma leitura individual. Verificou-se que os educandos demonstraram bastante interesse pela temática da obra, que gira em torno de um processo de desfavelamento. No livro, as histórias de diversos personagens são narradas e relacionam-se com temas bastante densos, muitas vezes vivenciados pelos próprios alunos. A leitura em voz alta foi também algo bastante significativo, uma vez que os alunos se mostraram muito solícitos a essa prática. 

Partindo, então, da leitura do livro, a equipe elencou cinco subtemas – escravização; racismo e lutas do movimento negro; Conceição Evaristo e suas obras; planejamento urbano; manifestações culturais periféricas e desigualdade social – presentes na obra, para que cada uma das turmas se dedicasse a estudá-los e a apresentar um trabalho final na Semana de Educação para a Vida, evento que ocorre anualmente na escola, no formato de feira. Esse trabalho foi desenvolvido em parceria com as disciplinas de Matemática, Geografia, História, Sociologia e Educação Física, tornando-se uma grande feira interdisciplinar, nomeada Diálogos entre memórias. O que buscamos dialogar com a feira foi justamente as diversas manifestações culturais, históricas e sociais que vêm à tona na obra da Conceição Evaristo e que atravessam a realidade dos alunos diariamente. 

Como parte do projeto, buscamos trazer para a feira manifestações artísticas das mais diversas, a fim de deslocar a ideia de arte marginal para um outro lugar. Assim, convidamos os grafiteiros Marcos Paulo Alvim e Adriano Rodrigues para a realização de um mural na parede de uma das quadras poliesportivas, em que foram retratadas Conceição Evaristo e Carolina Maria de Jesus, ícones de nossa literatura negra. Contamos também com a presença dos poetas Bim Oyoko e João para a apresentação de um sarau e com a animada performance de drag queen de Nickary Aycker, artista reconhecida na cena queer belorizontina.  

Considerações finais

Conclui-se que as atividades desenvolvidas graças ao PIBID contribuíram significativamente para a formação dos bolsistas de iniciação à docência, da coordenadora de área e dos supervisores, complementando a grade curricular da licenciatura, quando comparada às exigências profissionais dos professores feitas pela BNCC e pelo mercado de trabalho. O exercício da docência se concretiza no alinhamento entre teoria e prática, tantas vezes discutido nos encontros com o grupo. Se é pela teoria que se capacita para o ensino, é no seu entrelaçamento com a prática que se constrói um educador, alguém que coloca no centro de seu planejamento o sujeito-aluno. A partir de experiências dentro da escola e dentro da sala de aula, percebemos que os alunos não se sentem motivados por conteúdos descontextualizados da realidade deles e, tanto no projeto do documentário, na produção de fanfics quanto em discussões acerca de manifestações culturais periféricas, por exemplo, os alunos conseguiram interligar as aulas com vivências individuais, facilitando assim o processo de aprendizado e até mesmo de interesse no ambiente escolar. 

Referências

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  1. O perfil no Wattpad, que conta com quase 400 visualizações, está disponível em: https://www.wattpad.com/user/COLTEC-Fanfics.
  2. O filme estreou no 18 Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, no qual recebeu o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Oficial e também pelo Júri Popular. Foi exibido no IX Janela Internacional de Cinema do Recife, onde conquistou o Prêmio de Melhor Imagem, o Prêmio Especial da Fepec (Federação Pernambucana de Cineclubes) e a Menção Honrosa ABD/APECI. Seguiu ainda por outros festivais, alguns deles internacionais.
  3. Em 2018, a autora concorreu a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, ABL, mas recebeu apenas um voto, enquanto seu concorrente, Cacá Diegues, recebeu 22.

Imagem de destaque: Acervo PIBID Língua Portuguesa

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