Cinema decolonial e antirracista na escola com o filme “Uma história de amor e fúria”
Adriana Silvestrini Santos
Jornalista, filósofa e mestranda em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/IEL/Unicamp).
Contato: dri.silvestrini@gmail.com
Daniela Tonelli Manica
Antropóloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor), vinculado ao Núcleo de Desenvolvimento da Criatividade (Nudecri), da Unicamp. Professora do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural (IEL, Unicamp) e do Programa de Doutorado em Ciências Sociais (IFCH, Unicamp). Pesquisa temáticas relacionadas a corpo, gênero e tecnociências. Coordena o Labirinto e é coprodutora do podcast Mundaréu, dedicado à divulgação científica de Antropologia.
Contato: dtmanica@unicamp.br
Jacqueline de Campos Medeiros
Graduada em Comunicação Social – Rádio TV e Multimídia, e atualmente mestranda em Divulgação Científica e Cultural no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor/Unicamp).
Contato: jacquecamposfotografia@gmail.com
Kris Herik de Oliveira
Kris Herik de Oliveira é doutorando e licenciado em Ciências Sociais (IFCH/Unicamp), e integrante do LABIRINTO.
Contato: kris.h.oliveira@gmail.com
Como abordar, na educação básica, as histórias que constituem a formação do Brasil? O cinema pode oferecer, de uma maneira criativa e crítica, ferramentas para a compreensão da dinâmica sócio-histórica brasileira. Neste sentido, a proposta deste trabalho é pensar as diferentes narrativas sobre a independência do Brasil em diálogo com o filme de animação “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013). Buscamos problematizar as narrativas coloniais e racistas, bem como as desigualdades sociais que atravessam a formação do Brasil. E, pensando nas potencialidades do filme na escola, propomos algumas estratégias de intervenção didático-pedagógicas com os quatro tempos nos quais a trama se desenvolve: a colonização em Guanabara (1566), a Balaiada no Maranhão (1838), a ditadura civil-militar no Rio de Janeiro (1968-1980) e o futuro do Rio de Janeiro (2096).
Esta abordagem tem como pressuposto as noções de “pedagogia decolonial” e “interculturalidade crítica”, conforme formuladas por Catherine Walsh (2009). Em diálogo com a produção intelectual de Frantz Fanon e Paulo Freire, a pedagogia decolonial estabelece uma prática de resistência frente à valorização dos saberes dominantes (científicos e eurocentrados) em detrimento de outros saberes (tradicionais, mágicos). Para esses autores, o modo como vivemos em meio a tecnologias de saber e de poder permite a permanência e o fortalecimento das estruturas sociais estabelecidas.
De acordo com Fanon (2008), o racismo e o colonialismo precisam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver e habitar o mundo, que entrelaçam a linguagem, o político, o epistêmico e a existência racializada – um reconhecimento que passa pela educação. Como prática de resistência aos problemas estruturais, Freire (1987) propõe a prática do educar como ato político visando à emancipação e à elucidação da discriminação racial, de gênero e classe. É nesse sentido que Walsh (2009) sugere pensar a valorização das diferenças na perspectiva de uma interculturalidade crítica. Esta, por sua vez, propõe uma construção “desde baixo” com as pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização. Busca, portanto, promover o “pensar a partir de” e o “pensar com” modos de conhecimento não hegemônicos.
A interculturalidade crítica e a pedagogia decolonial são projetos, processos e lutas que se cruzam conceitualmente e pedagogicamente. A pedagogia decolonial que emerge desses encontros “permite considerar a construção de novos marcos epistemológicos que pluralizam, problematizam e desafiam a noção de um pensamento e conhecimento totalitários, únicos e universais” (WALSH, 2009, p. 25). Com isso, busca-se trazer outras intervenções intelectuais para ler criticamente o mundo, e para compreender, (re)aprender e atuar no presente. Trata-se de uma pedagogia que transborda a transmissão do saber, pois aposta no processo e na prática política de modo criativo e transformador. Isso só se constrói na relação com histórias, subjetividades e lutas localizadas. Por isso, a autora defende a importância do “re-existir” e do “re-viver” como processos de “re-criação”.
Tendo em vista esse horizonte de lutas, a proposta deste artigo incorpora o longo caminho de reivindicações dos movimentos negros e indígenas que deram origem à Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no sistema de ensino básico das esferas pública e privada. No ano de 2008, a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008 passou a determinar que o mesmo ocorresse com a história e a cultura dos povos indígenas do Brasil. Além dessas normativas que alteraram a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a Lei 13.006, de 26 de junho de 2014 estabeleceu que a exibição de filmes de produção nacional deveria constituir componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, 2 (duas) horas mensais.
Uma história de amor e fúria
O filme “Uma história de amor e fúria”, recomendado para o público juvenil a partir dos 12 anos (por conter cenas de violência), pode proporcionar uma experiência reflexiva, na sala de aula, sobre os acontecimentos ocorridos antes, durante e depois da independência do Brasil. O personagem principal e narrador (Selton Mello) é um homem que está vivo há 600 anos e passa por diferentes períodos da história do país. Ele é Abeguar, guerreiro do povo indígena tupinambá na Guanabara de 1566. Ele é Manuel Balaio no Maranhão de 1838. Ele é Cau (Carlos) no Rio de Janeiro de 1968 e 1980. Ele é JC no Rio de Janeiro distópico de 2096. Janaína (Camila Pitanga) é a personagem feminina que o acompanha em todos os períodos históricos.
O roteiro permite prender a atenção das(os) jovens sobre a história que está sendo contada. Ao questionar as(os) educandas(os) sobre o que é realidade e o que é ficção, o(a) professor(a) também abre novas possibilidades de entendimento e interpretações. A partir dos posicionamentos das(os) alunas(os), a sugestão é refletir em conjunto – com livros, periódicos, documentários, espaços de memória – sobre a realidade e a ficção contidas no longa-metragem. A proposta é articular o cinema com a educação por meio da ferramenta da ficção especulativa (SUPPIA, 2020b).
Figura 1- Capa do DVD do filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013)
Fonte: Buriti Filmes (2014).
#paratodesverem Capa do DVD do filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013), em tons de verde e preto, com textos em cor branca. Na parte superior da imagem, há uma cena do filme em que os indígenas Abeguar e Janaína se beijam sob uma cachoeira. À frente dessa imagem consta a indicação de que o filme foi vencedor do prêmio Annecy (Festival International du Film d’Animation d’Annecy), em 2013. Também há a descrição de produção por Buriti Filmes e Gullane e distribuição de Europa Filmes. Na parte inferior da imagem, há uma cena do filme retratando a estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, sem o braço esquerdo, com visão da cidade no horizonte. No canto inferior, há um qr code e a classificação indicativa do filme para 12 anos. Ao centro da imagem, há o título do filme em caixa alta. Acima do título, constam os nomes dos atores e dubladores das personagens Selton Mello, Camila Pitanga e Rodrigo Santoro. Abaixo do título, consta o nome do diretor Luiz Bolognesi.
Guanabara, 1566
“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”. A partir dessa frase enunciada pelo narrador logo no primeiro minuto do filme, somos convidados a olhar para a história do Brasil e mergulhar em outras narrativas possíveis. Então, entre os flashes de experiências vividas e o sobrevoo de um pássaro, deixamos a tensão de um cenário aparentemente futurista e nos vemos diante da imensidão de uma floresta. Será aqui o início desta jornada em território brasileiro, que se faz atravessada por amor e fúria.
Estamos em Guanabara, no ano de 1566, onde acompanhamos a história do Brasil na perspectiva dos indígenas tupinambás Abeguar e Janaína – personagens que nos colocam em contato com o modo de vida na aldeia e as tensões nas relações com colonizadores. Segundo o pajé, o grande deus Munhã teria escolhido Abeguar, o aspirante a guerreiro, para ser o líder do povo tupinambá e, por isso, havia lhe concedido a habilidade de voar. Mas, para que a experiência se repetisse, seria preciso aprender a lutar contra Anhangá, o espírito das sombras, sinônimo de dor, morte e destruição da floresta.
Figura 2 – Os indígenas tupinambás Abeguar e Janaína, personagens principais do filme
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme. De perfil, o indígena Abeguar olha atento à frente. Parte de seu corpo está pintado de vermelho-urucum (peito, ombro, antebraço, região dos olhos). Seus cabelos pretos estão raspados na parte frontal da cabeça. De olhos fechados, a indígena Janaína abraça Abeguar, na retaguarda. Ela possui cabelos pretos longos e pinturas vermelho-urucum na região dos braços. Ao fundo, há uma rocha acinzentada e vegetação verde-escura.
Na aldeia, o cacique Piatã (Rodrigo Santoro), outros guerreiros e um francês organizam-se para atacar os portugueses em Bertioga. Abeguar contrapõe-se, destacando que o francês estaria a serviço de Anhangá. Ele não é ouvido. No dia do confronto, Abeguar tenta impedi-los novamente, comunicando um aviso recebido em sonho de que isso geraria o ódio dos portugueses e a união dos tupiniquins contra eles. Mas, novamente, não é ouvido. Os tupinambás saem vitoriosos do confronto e se alimentam dos tupiniquins mais valentes. O gesto de devorar o inimigo ocorre porque é através da prática do canibalismo que se faz, de maneira antropofágica, a associação de todos os processos de vingança tupinambá (CARNEIRO DA CUNHA; VIVEIROS DE CASTRO, 1985).
Nos dias que seguem, os portugueses chegam do mar e atacam as naus francesas. Em terra, aliam-se aos tupiniquins para promover o extermínio dos tupinambás, incluindo o cacique. As flechas e lanças indígenas não tiveram chances contra as armas de fogo portuguesas. No lugar da aldeia tupinambá, foi levantada uma grande cruz e os portugueses fundaram uma vila batizada de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Figura 3 – Abeguar lamenta a guerra que dizimou o povo tupinambá
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme. De forma translúcida, o rosto de Abeguar preenche a imagem. A região de seus olhos castanhos, marejados, está pintada de vermelho-urucum. Ele chora a morte de seu povo, cujas cenas aparecem no plano ao fundo.
Abeguar reúne os sobreviventes em direção ao alto da serra, mas, durante uma pausa para descanso, ocorre um novo ataque dos portugueses, resultando nas mortes do pajé e de Janaína. Ele lamenta: “Eu desisti de tudo, pela primeira vez”. Então, recordando-se do corpo de Janaína coberto de sangue, se lança ao penhasco. Mas Munhã não o deixa morrer, pois o transforma em pássaro. E assim ele voa, incansavelmente, através dos tempos.
Maranhão, 1838
Abeguar consegue retomar a forma humana ao reencontrar Janaína em outra mulher. Renasce Manuel Balaio, homem negro, e com Janaína cria suas duas filhas em uma casa simples no interior do Maranhão. Vendiam balaios nas feiras de Caxias e, secretamente, apesar de muito pobres, ajudavam os escravos fugidos que se aquilombavam pelos arredores. No caminho para a feira, de charrete, Manuel conta para as filhas que a avó delas, mãe de Janaína, tinha sido escravizada, como eram as pessoas que elas viam trabalhar de sol a sol na colheita de algodão.
Ao encontrar oficiais do governo, Manuel sofre um primeiro episódio de violência policial: apropriam-se de seus balaios sem pagar por eles. Os policiais desconfiam que Manuel estivesse ajudando os “negros fugidos” e passam a intimidá-lo. Um dia, em uma das cenas mais violentas do filme, eles resolvem que o capitão tem “direito” à filha mais velha de Manuel. Vemos a cena da garota sendo levada pelo braço para dentro da sua própria casa, para ser estuprada.
Figura 4 – A filha de Manuel Balaio e Janaína sendo levada para ser estuprada pelo capitão
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme. Nela, vemos duas silhuetas de costas para nós, do capitão e da filha mais velha sendo levada pelo braço. Eles estão dentro da casa, completamente escura. A filha mais velha estende a mão em direção à porta, em busca da ajuda dos pais, que estão fora da casa, no único plano iluminado da imagem. Os guardas prendem Manuel e Janaína passando o braço pelo pescoço deles. Janaína está ajoelhada no chão e a filha menor se esconde atrás dela. Ao fundo, se vê a paisagem do interior do Maranhão, terra clara batida e alguns arbustos.
Manuel e Janaína se revoltam com a situação e decidem largar a casa e a roça, migrando para a capital São Luís. Lá, encontram outras pessoas que haviam sofrido as mesmas violências de Estado, e juntos resolvem reagir. Armam uma emboscada para os policiais na mata, e Balaio consegue assassinar o estuprador de sua filha, após lutar com ele. Três meses de batalhas se sucedem em Caxias, na insurreição popular que depois ficaria conhecida como “Balaiada”.
Figura 5 – Nos palácios imperiais, homens brancos preparam mais um massacre
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme. Ela mostra quatro homens brancos de terno que conversam em pé em volta de uma mesa de madeira retangular. Sobre ela, um mapa do Brasil, garrafas e quatro taças de vinho tinto cheias. Uma fruteira cheia também decora a mesa. Ao fundo, há uma janela iluminada pela luz externa, com cortinas entreabertas. Ao lado da janela, um quadro decora a parede.
No Sul, a elite é acionada para ajudar a “retomar o controle” dos brancos sobre a província. Eles temiam que o Maranhão “virasse um Haiti”, e passasse a ser controlado pelo povo explorado que se revoltava contra os desmandos, abusos de poder e violência a que estavam submetidos. Massacraram o movimento. O Coronel Luiz Alves de Lima e Silva perseguiu os grupos dispersos, e ganhou com isso o título de Barão de Caxias, futuro Duque de Caxias, o grande “herói pacificador”, “patrono do exército brasileiro”.
Balaio virou pássaro de novo. Ensurdecida pelos confrontos, Janaína foi presa e vendida como escrava, com as duas filhas. As três morreram de febre amarela e malária em poucos anos. Segundo a narrativa do filme, os insurgentes que sobreviveram formariam depois o movimento do cangaço.
Rio de Janeiro, 1968-1980
“Os militares tinham tomado o poder e iniciado uma ditadura. Não tinha liberdade. Quem não obedecia era preso, torturado e morto”. A frase é de Cau (Carlos), no turbulento Rio de Janeiro de 1968. Após 130 anos de procura, ele reencontrou novamente Janaína, agora uma estudante ativista, no meio de uma manifestação contra a Ditadura no centro da cidade fluminense. Cau descobre que ela integra a Ação Democrática, nome de um movimento de resistência dos estudantes. Para ficar perto dela, afinal a história tem amor, além de fúria, o rapaz entra para a mesma organização revolucionária.
A narrativa do filme segue mostrando as ações do grupo, que foi descoberto pelos militares. Escondidos e agindo como guerrilheiros, Cau e os demais integrantes do movimento invadem um banco e avisam que aquela ação “não é um assalto, é uma retomada revolucionária”. Poucos dias depois, a polícia prendeu o casal Cau e Janaína em um parque de diversões. Sob tortura, Cau entregou o paradeiro do grupo para salvar Janaína da violência policial. Com exceção dela, todos ficam presos. Segue a rotina do cárcere.
Figura 6 – Cau é torturado até entregar o paradeiro do grupo
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme em que o personagem Cau está sozinho em uma sala escura, de cabeça para baixo em um pau de arara, nome dado a um dos métodos de tortura usados durante a ditadura. Cau está nu e pendurado em uma barra de ferro, que passa entre os punhos amarrados e as dobras dos joelhos. A fisionomia de seu rosto expressa dor e resistência.
Após sete anos de prisão, Cau e os demais presos políticos são libertados por causa da Anistia. Ao sair da cadeia, Cau escolhe morar na favela porque pretende ficar ao lado de quem “vai continuar lutando por justiça e igualdade”. Nessa nova etapa de resistência, ele conta com a companhia do amigo Joselinton de Jesus, apelidado de Feijão, que conheceu na prisão. Na cela, Cau havia incentivado Feijão a ler seus livros de Maquiavel, Guimarães Rosa e Jorge Amado.
Figura 7 – Cau e Feijão discutem o livro de Maquiavel na prisão
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme em que, no pátio da prisão, no primeiro plano aparece Feijão segurando e lendo em voz alta trecho do livro de Maquiavel. Feijão tem um dos punhos cerrado erguido ao ar, simbolizando enfrentamento e resistência. Sentado ao seu lado está Cau, que o presenteou com o livro. Ao fundo da cena, há dois detentos em pé conversando.
No início dos anos 80, fora da cadeia, Feijão torna-se o novo cangaceiro, o Lampião da cidade. E Cau agora é o professor Cau, que leciona na comunidade. Um dia, do alto do morro, Feijão revela para Cau: “Tá vendo aquele prédio ali? Perto do vidro, do lado do branco. Tem um banco lá. A gente vai fazer uma retomada lá amanhã”.
O amanhã não chega para eles. Naquela mesma noite, Cau e Feijão são mortos pela polícia, que invadiu a comunidade em busca dos líderes da Falange Vermelha. Cau vira pássaro, de novo. Ele sobrevoa o corpo de Feijão, baleado, morto e estendido no chão. Se despede lamentando: “Meus heróis nunca viraram estátua. Morreram lutando contra os caras que viraram”.
Rio de Janeiro, 2096
Um dia, toda aquela água doce vista em abundância em meio às grandes árvores, plantas e animais fluindo em harmonia nas terras do povo tupinambá se deteriorou. Então, no lugar do verde, passou-se a ver o cinza. No lugar das grandes árvores, ergueram-se os arranha-céus. No lugar da abundância da água, imperou a escassez.
Figura 8 – Cidade do Rio de Janeiro com estátua do Cristo Redentor parcialmente destruída
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme em que aparece a cidade do Rio de Janeiro em 2096. Em primeiro plano, é possível ver o monumento do Cristo Redentor destruído, com o seu braço esquerdo quebrado. Em segundo plano, a cidade do Rio de Janeiro escura, com um céu cinzento, e repleto de prédios enormes e futuristas.
Rio de Janeiro, 2096. Somos levados em direção ao futuro. A tecnologia da cidade impressiona. Os mais ricos experienciam a vida no topo e com acesso a água. Os mais pobres sobrevivem no submundo da miséria e da pobreza, ingerindo água insalubre. Não há nada de bonito lá embaixo, toda beleza que havia já foi explorada e revertida em destruição. E quais são as pessoas que ocupam o submundo? Os mesmos povos que por séculos foram explorados. Milícias particulares controlam a cidade. Os guardas protegem os interesses apenas dos homens que monopolizaram a água. Eles atiram em crianças pelas costas. A violência continua. A guerra não acabou. A primeira sensação que nos toma é a de que Anhangá teria vencido.
Neste futuro, o protagonista encarna em JC, âncora de um importante telejornal da cidade. JC continuava sua luta em favor dos explorados e oprimidos, mas estava exausto de tanto esforço em vão. Garantir sua cota de água e o dinheiro para as noites de sexo com Janaína tinham se tornado suficiente para ele.
Janaína, por sua vez, não havia desistido de lutar. Trabalhando como prostituta de luxo na boate “Rio Sexo”, ela tinha acesso aos homens que controlam a cidade. Depois de terminar seu programa com o jornalista, ela atende o presidente da empresa “Aquabrás”. Como demonstração de seu poder, ele ostenta um aquário que sustentaria a cota mensal de água para trinta mil famílias. Entretanto, não demonstra nenhum tipo de arrependimento. Acredita ser dele tudo o que um dia pertenceu a todos.
Enquanto isso, o Presidente da República, o pastor Armando, pensando em sua reeleição, discursa para a imprensa dizendo que “somente a fé do povo pode trazer chuva novamente”. A cena do rallye em meio à seca da Amazônia denuncia a naturalização de um mundo caótico de destruição e desarmonia social e ambiental.
Em meio ao encontro, o figurão é surpreendido pelo grupo de guerrilheiros, que o rende. Janaína aproveitara a oportunidade do programa, em busca de justiça. Vendo pela TV que o embate está ocorrendo, JC vai em busca de Janaína, para resgatar tudo aquilo que um dia ficou sufocado em suas tantas vidas de lutas, desencontros, mortes e desigualdades. Mais uma vez sem saída diante da força de Anhangá, nesse contexto altamente armado com tecnologias de visualização e extermínio, JC decide pular do prédio, com Janaína em suas costas. E assim consegue, finalmente, entre tantas vidas “voar como um homem”.
Figura 9 – JC e Janaína
Fonte: Filme “Uma história de amor e fúria”, de Luiz Bolognesi (2013).
#paratodesverem A figura mostra uma cena do filme que, em primeiro plano, faz a junção de JC e Janaína. As cores, azul e rosa, do giroflex dos policiais, e dos helicópteros, refletem em seus semblantes. Ambos aparentam estar preocupados. Janaína de olhos fechados e JC com olhos distantes, eles se preparam para o último salto.
Independência para quem? Abordagens didático-pedagógicas com o filme
A primeira parte do filme (Guanabara, 1566) oferece às(aos) educadoras(es) um rico material sobre o processo de colonização portuguesa, na perspectiva tupinambá. Dessa forma, desenvolve uma contranarrativa ao seguinte discurso colonial hegemônico que forjou a história do Brasil: de um lado, os colonizadores europeus como figuras pacíficas e civilizadas; de outro, os povos indígenas como selvagens. A partir desse conteúdo, é possível construir com (as)os alunas(os) problemas e diálogos sobre antropologia e história do Brasil. Afinal, como a narrativa apresentada pelo filme destoa da narrativa colonial hegemônica? De modo complementar, uma atividade pode ser desdobrada visando à experimentação de novas produções narrativas na perspectiva indígena.
A Revolta da Balaiada (Maranhão, 1838) eclodiu em um momento de grande instabilidade política, econômica e social do Período Regencial, datado de 1831 a 1840. Essa seção do filme possibilita problematizar a historiografia oficial da República, que situa como heróis aqueles que venceram a disputa. Conhecemos o nome de Duque de Caxias, mas pouco os Manueis Balaios e outros líderes da resistência à escravidão e à exploração da população negra e indígena no Brasil. Vale ver, por exemplo, a discussão levantada com o caso do monumento de Borba Gato incendiado em São Paulo. O filme traz um deslocamento de perspectiva importante, ao nos afetarmos pelas violências de Estado às quais essas populações foram, e continuam sendo, submetidas.
Para entender melhor quem foi Duque de Caxias e os líderes da resistência, seria interessante abordar, junto aos estudantes, o significado do samba-enredo “História pra ninar gente grande” da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, vencedora do Carnaval carioca de 2019. O enredo mostra heróis “esquecidos” da história e as lutas de negros, indígenas e mulheres ao longo dos séculos após o “descobrimento” do Brasil pelos europeus. Um dos carros alegóricos apresenta o Duque de Caxias pisando em corpos ensanguentados. O material “Meus Heróis Não Viraram Estátua” (2012), de Luiz Bolognesi e o historiador Pedro Puntoni, pode contribuir com a discussão ao convidar a pensar sobre os grandes heróis oficiais brasileiros.
A terceira parte do filme, que aborda o regime de repressão e censura imposto pela Ditadura civil-militar no Brasil (Rio de Janeiro, 1968/1980), oferece um ponto de partida para debates acerca do passado, presente e futuro do regime democrático no país. É importante citar que no dia 13 de dezembro de 1968, o governo militar de Artur Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5, conhecido como AI-5. É entendido como o marco que inaugurou o período mais sombrio da ditadura brasileira. Para essa discussão, podem ser apresentados como documentos complementares o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, instituída pela Lei nº 12.528/2011, e o site “Memórias da Ditadura”.
A quarta e última seção do filme (Rio de Janeiro, 2096) permite explorar o conceito de ficção científica, estabelecendo diálogos especulativos sobre um futuro que se constrói na relação com o passado. Nesse sentido, é possível abordar o conceito de “afrofuturismo”, cunhado em 1994 por Mark Dery, cuja proposta busca a (re)construção da história negra através de uma nova estética cultural, filosófica da ciência e da história. A partir dessas possibilidades narrativas, caberia indagar os alunos e as alunas sobre qual futuro se pretende construir, convidando à experimentação de uma narrativa afrofuturista. Em seu blog, o escritor Fábio Kabral aborda o conceito e sugere algumas atividades didáticas.
Considerações finais
A frase “Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”, que ecoa durante toda a trama de “Uma história de amor e fúria”, se aproxima do conceito africano de Sankofa. O provérbio dos povos Akan da África Ocidental, originários de territórios hoje conhecidos como Gana e Costa do Marfim, menciona: “nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás” (DRAVET; OLIVEIRA, 2017, p. 14). A proposta do filme vai ao encontro dessa ideia, uma vez que se dedica a resgatar o passado para compreender o presente e especular sobre o futuro.
De acordo com Alfredo Suppia (2020a, p. 204), “o filme problematiza a vocação histórica do Brasil para o autoritarismo, seja em contexto monárquico/colonial (Balaiada), militar (anos 60), ou de parceria pública e privada (futuro especulativo)”. E, embora os recortes historiográficos possam parecer pouco aprofundados, convidam ao desenvolvimento de um olhar crítico sobre as figuras de heróis e vilões defendidas por narrativas hegemônicas sobre a nação. Dessa forma, o filme também abre espaço para a reflexão sobre a materialidade dessas narrativas nas cidades e nas instituições públicas, a exemplo das estátuas e das homenagens feitas a exploradores e torturadores.
Acreditamos que a escola é um espaço privilegiado para o resgate e a construção de histórias do Brasil, em sua multiplicidade. É no contato com diferentes modos de vida que se dá a partilha de experiências, conhecimentos e a reflexão das violências históricas. Uma pedagogia decolonial, em diálogo com o cinema, oferece possibilidades para construir sociedades mais igualitárias, democráticas, inclusivas, não violentas, antirracistas, antiLGBT-fóbicas, antissexicistas, antifascistas, anticapacitistas e laicas.
Referências
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 17 maio 2022.
BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União. Brasília, DF, Brasília, 11 de mar. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 17 maio 2022.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 10 jan. 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 17 maio 2022.
BRASIL. Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8º ao art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 27 jun. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L13006.htm#art1. Acesso em: 17 maio 2022.
BURITI FILMES. Uma história de amor e fúria. 2014. Disponível em: http://www.buritifilmes.com.br/filmes.php?cat=filme&mostra_filme=4. Acesso em: 17 maio 2022.
CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Vingança e temporalidade: os Tupinamba. Journal de la Société des américanistes, v. 71, p. 191-208, 1985.
COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Mortos e desaparecidos políticos. Brasília: CNV, 2014.
DRAVET, Florence Marie; OLIVEIRA, Alan Santos de. Relações entre oralidade e escrita na comunicação: Sankofa, um provérbio africano. Disponível em: <http://seer.assis.unesp.br/index.php/miscelanea/article/view/8>. Acesso em: 10 nov. 2021
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008 [1952].
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Imagem de destaque: Cena do filme Uma história de amor e fúria.