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O acervo da laje: por um Ensino de História emancipador e decolonial

Carolina de Oliveira Silva Othero – Isabela Lemos

Carolina de Oliveira Silva Othero

Escola Estadual Afonsa Pena

Contato: carol_othero@yahoo.com.br

Isabela Lemos – Isabela Lemos

Isabela Lemos Coelho Ribeiro

Professora de história no ensino fundamental na rede municipal de Belo Horizonte e doutoranda em História no Programa de Pós-Graduação em História da UFMG (PPGH-UFMG).

Contato: isalemos.coelho@gmail.com

Janeiro de 2022, Salvador. Era uma manhã quente. Entrávamos em um “uber” em direção ao Acervo da Laje, museu-escola-casa localizado no subúrbio ferroviário da cidade. Esse poderia ser mais um dos nossos muitos deslocamentos como turistas por Salvador. No entanto, o potencial emancipador, disruptivo e descolonizador do Acervo da Laje como espaço educativo e museográfico foi tamanho que nos fez questionar as nossas concepções de museu, as possibilidades educativas que atribuíamos à arte e até mesmo as nossas vivências como turistas em “cidades históricas”. É essa nossa experiência que gostaríamos de compartilhar nesse texto. Experiência de duas mulheres, professoras de História que, em meio a uma viagem, puderam conhecer formas de narrar o passado e de construir identidades coletivas que as afetaram, pessoal e profissionalmente. Sabemos bem como as vivências fora da sala de aula podem impactar e reestruturar as nossas percepções de ensino e de História. Esse impacto, no entanto, é potencializado pelo registro, pelo narrar-se e apoderar-se da própria experiência. Nesse sentido, esse texto é também um esforço de apropriação da beleza do Acervo da Laje. Esperamos que seu potencial emancipador possa reverberar em nossas práticas educativas, em nossas salas de aulas e, quem sabe, afetar também você, leitor.   

Sujeitos e narrativas no Acervo da Laje

Nas andanças por Salvador, a chegada ao Acervo da Laje nos fez ampliar os sentidos de cidade, muito além daquilo que os roteiros turísticos, em geral, chamam a atenção, do Pelourinho ao Farol da Barra. Esses deslocamentos nos fizeram questionar uma ideia de preservação do passado muito presente nas chamadas “cidades históricas” e marcada por uma tentativa de cristalização da história, que nega as fissuras e os conflitos das experiências históricas e dos processos de patrimonialização. As tintas patrimoniais que buscam preservar o passado podem também embranquecê-lo e apagar perigosamente as marcas de sangue desses espaços (MAGALHÃES; AGUIAR, 2021). Em muitos sentidos, essa vivência da história ocorre no Pelourinho e nos centros históricos de cidades como Mariana e Ouro Preto: apropriados por uma indústria do turismo, eles podem funcionar como um cenário, agradável esteticamente para o turista, mas que em quase nada lhe faz rememorar as barbáries e as violências da escravidão, ou então as vivências e lutas das populações que habitavam e construíram aqueles espaços. Pode haver apagamentos e silenciamentos que diminuem o poder desses patrimônios de tensionar o presente e evidenciar as violências do passado escravista e colonial que permanecem.  

Estávamos já habitadas por esses incômodos no dia em que fomos até o Acervo da Laje, o que aumentou ainda mais o potencial da visita de nos fazer pensar outras práticas possíveis de musealização e patrimonialização. Mesmo o trajeto até o museu foi permeado por experiências interessantes. O motorista do “uber” espantou-se por estarmos indo para um lugar tão longe, fora do circuito turístico, que acaba por funcionar como um dos muitos discursos e dispositivos que hierarquizam as cidades e seus bairros. Ao chegarmos no bairro São João do Cabrito, as ruas se estreitaram e ficamos perdidos. O lugar que o GPS havia indicado como sendo o museu era uma casa e estava fechada. Não havia nenhuma placa sinalizando a localização do Acervo da Laje, sintoma da dificuldade do poder público em reconhecer, promover e divulgar espaços de conhecimento e de arte fora das áreas mais centrais das cidades. Perguntamos a algumas pessoas que andavam na rua se poderiam nos indicar a localização do museu e rapidamente conseguirmos chegar com a ajuda dos moradores. O fato de muitos conhecerem o espaço foi um primeiro indício da presença e da importância do museu na vida daquela comunidade.  

Ao chegarmos, nos deparamos com um casarão de três andares, com uma laje com vista para o mar. O Acervo da Laje foi idealizado pelo casal José Eduardo Ferreira Santos e Vilma Santos, ambos nascidos no Subúrbio Ferroviário de Salvador. Ele, formado em Pedagogia, ela, professora. No site do museu, lemos que o Acervo da Laje é um “espaço de memória artística, cultural e de pesquisa sobre o Subúrbio Ferroviário de Salvador”. São duas as casas que abrigam “bibliotecas, hemerotecas, coleções de CDs, discos, manuscritos, croquis, conchas, tijolos, azulejos e porcelanas antigas, artefatos históricos, quadros, esculturas em madeira e alumínio, fotografias e objetos que contam a história do Subúrbio Ferroviário de Salvador”. Ali conhecemos obras de pintores já reconhecidos, como Reinaldo Eckenberger, argentino que passou a viver na Bahia a partir de 1965, mas também de artistas baianos pouco conhecidos e mesmo de moradores da comunidade (ACERVO DA LAJE). Essas peças são adquiridas por meio de compras e de doações. Ou mesmo no lixo. A criação do museu foi inspirada por uma provocação que José Eduardo recebeu em sua banca de doutorado em Saúde Pública. Um dos professores o incentivou a pesquisar a beleza do subúrbio, após uma tese que enfatizava a violência que, por vezes, atravessa a vida de seus moradores. A partir daí, ele saiu em busca de artefatos que ressignificassem o subúrbio, construindo uma coleção hoje formada por mais de trezentas peças. 

Vilma e José Eduardo contam com orgulho a trajetória do Acervo da Laje, criado quando os dois decidem abrir sua casa para o público. Essa história nos dá pistas sobre alguns dos distanciamentos em relação a uma determinada ideia de museu. Quem nos recebe na entrada do Acervo é Vilma, que nos guia em uma visita marcada pelo afeto em relação à casa, à comunidade, mas também ao sonho de mostrar a beleza do subúrbio através de um espaço educativo. “Aqui é um museu diferente”: essa foi uma das primeiras falas de Vilma ao nos convidar a adentrar a casa. Uma frase repetida algumas vezes ao longo da visita, e havia razão para isso. Já na entrada da casa, fomos surpreendidas por uma escada toda tomada por azulejos. Na parede de pedra ao lado, espelhos e peças emolduradas. As pinturas, máscaras e esculturas estavam dispostas nas paredes e nos móveis dos diferentes cômodos. Realmente, aquele parecia um museu diferente. Mas onde residia essa diferença?  

Começamos a perceber que ela começava no vínculo que ligava os moradores do bairro ao Acervo. Ao longo da visita, rapidamente entendemos o motivo pelo qual as pessoas que andavam nas ruas do bairro souberam indicar precisamente a direção para o museu. Aquele era, de fato, um espaço comunitário: a comunidade participava e interferia na própria construção do acervo, criando com ele um senso de pertencimento. Como os anfitriões ressaltam, os usos para o Acervo são definidos também a partir de demandas dos próprios habitantes do Subúrbio Ferroviário. Assim, os artistas e pesquisadores visitantes do espaço estabelecem parcerias na criação de projetos realizados em conjunto com a comunidade, como oficinas de fotografia, de azulejaria, de pintura, ou mesmo aulas de reforço escolar para as crianças do bairro, que Vilma faz questão de enfatizar como um dos usos primordiais daquela casa. A partir dessas apropriações, o conjunto do acervo se renova a todo momento, com os achados de José Eduardo, mas também com aquilo que os próprios moradores produzem, que adentram o Acervo da Laje para ali se tornarem fotógrafos, pintores, contadores de estórias… 

O diálogo entre a comunidade e o museu promove novos olhares sobre o bairro e a cidade, ressignificados a partir daquilo que é criado nos projetos que chegam ao Acervo da Laje. Afloram ali novas narrativas sobre o passado, através dos artefatos espalhados pelos vários cômodos da casa, mas também das diferentes obras de arte que surgem quando crianças e jovens ocupam o Acervo. Nas palavras de José Eduardo: “Esse espaço nasce da inquietação de quem não está conformado com aquilo que é escrito sobre nós. É um ato de amor conosco e com a cidade” (DIAS, 2018).  

Um ato de amor também por sua dimensão educativa, ao promover a aprendizagem de novos sentidos para a cidade e para o bairro, por meio de uma “curiosidade crítica, insatisfeita, indócil” (FREIRE, 2019). O museu se torna um espaço para a educação ao instigar, através de um olhar de estranhamento para as ruas em seu entorno, uma ressignificação do mundo que também colabora para a construção de subjetividades. Afinal, o que está em jogo ali é uma disputa em torno do “que é escrito sobre nós”, um questionar que implica também na reivindicação de um senso de pertencimento a partir de um olhar sensível para o lugar onde se vive. É o que vimos nas muitas pinturas recebidas ou descobertas por José Eduardo, produzidas por artistas locais, mas também nos vários projetos coletivos abrigados no Acervo da Laje. Na possibilidade de uma identificação com os personagens retratados nessas obras, ou mesmo na participação da criação artística, entendemos que no museu se configura um processo de democratização da arte. Ele nos ensina: no Subúrbio Ferroviário também temos histórias, temos beleza, temos dores, alegrias, afetos. Temos artistas. Ele nos ensina que a arte não está restrita ao centro de uma cidade, mas está em todos os seus cantos. 

Para nós, dois projetos específicos desenvolvidos no Acervo da Laje revelaram como o espaço permite essa ressignificação do cotidiano dos moradores da comunidade a partir da arte e da construção de novas narrativas coletivas. O primeiro projeto foi a exposição coletiva temporária “A beleza do subúrbio”, realizada em dezembro de 2013 e que se encontra disponível também na Galeria virtual no site do museu. As fotografias são de autoria de alunos de São João do Cabrito e Itacaranha, que participaram de oficinas no Acervo da Laje e “registraram cenas cotidianas e aspectos físicos do local: natureza, espaços urbanos, arquitetura, ruínas, a linha do trem em diferentes ângulos e cenas, além de fotos com cenários criados com diferentes elementos (brinquedos, búzios, etc.)” (ACERVO DA LAJE). Uma das características da linguagem fotográfica é sua capacidade de surpreender com a beleza muitas vezes não percebida e que se revela por ângulos e enquadramentos específicos. Ao permitirem aos alunos se apropriarem dessa linguagem, as oficinas podem também ser vistas como um convite para um olhar investigativo, sensível e curioso para o bairro, capaz de representar a beleza da história, das relações humanas e da cultura daquela comunidade. Por fim, ao reunir essas produções fotográficas numa exposição, o Acervo valoriza a capacidade criativa dos educandos que se veem como sujeitos capazes de construir sentidos para si e para o mundo em que vivem. 

Um segundo projeto que nos chamou muito atenção foi a construção, pela Associação Cultural Acervo da Laje (ACAL), de uma hemeroteca física e virtual do subúrbio ferroviário, financiada pelo Ministério Público da Bahia. A hemeroteca física está localizada na biblioteca do Acervo, no segunda andar da casa, e a digital, no site do museu. Em nossa visita, Vilma mostrou algumas das pastas que continham recortes de jornais sobre os bairros da região e nos contou da realização de oficinas através das quais os adolescentes e jovens da comunidade participaram da produção desse arquivo. Esse projeto foi intitulado “Educação Patrimonial e a Construção Coletiva de um Museu” e teve por objetivo “inserir mais jovens negros e de comunidades periféricas no trabalho e autoria de ações culturais realizadas em um museu”. Nas oficinas, os educandos tiveram acesso “a estudos teóricos e práticos sobre atividades nos ramos da Museologia, Urbanismo, Arquitetura e Arquivologia” (ACERVO DA LAJE).  

A construção coletiva da hemeroteca por esses jovens nos pareceu uma experiência muito relevante de educação histórica: ao construírem o acervo, eles puderam compreender em profundidade as condições de possibilidade e as características do conhecimento histórico. Além disso, a hemeroteca se torna um dos muitos recursos educativos do museu, permitindo que alunos, visitantes e pesquisadores do Acervo da Laje se apropriem dos métodos e procedimentos da história científica para construir novas narrativas sobre os diferentes bairros do subúrbio ferroviário. Ela é um convite para a comunidade narrar-se e descobrir-se a partir dos vestígios do passado presentes naquele arquivo. Os recortes de jornais selecionados pela equipe do Acervo estão repletos de denúncias de desigualdades, de histórias de greves, de mobilizações e de lutas por conquista de direitos e de justiça. O arquivo possibilita, assim, a criação de uma memória comunitária mais ampla, de formas variadas de relação com o passado daquele local, que rompam os estereótipos e reducionismos acerca dos subúrbios. Mais uma vez, podemos ver em ação no museu a desnaturalização de hierarquias urbanas, raciais e de classe que caracterizam o subúrbio e os seus moradores apenas pelo signo da falta e da precariedade.  

A partir dessas experiências educativas e da maneira democrática e plural sob a qual o acervo do museu foi sendo construído, consideramos que, no Acervo da Laje, o compromisso com uma educação libertária e transgressora se aproxima também de debates acerca de uma dimensão ética cara ao ensino de História. Uma educação libertária, como lembra Paulo Freire, é aquela que, visando à construção de uma sociedade democrática, vê o aluno/a/e como sujeito do conhecimento (FREIRE, 2019). Nela, o ato educativo não é visto como uma transferência de saberes, mas sim como a criação de condições de possibilidade para o próprio educando produzir e recriar os conhecimentos. Esse tipo de aprendizagem propicia um reinventar a si mesmo e ao mundo. Por isso, ela também se torna transgressora, cultivando e permitindo um olhar crítico para as estruturas opressoras socialmente naturalizadas, como as desigualdades sociais, o racismo e o sexismo (hooks, 2013, p. 20). Na visita ao Acervo da Laje, sentimos de forma latente essa atenção à dimensão ética, ao se questionar as finalidades desses espaços museológicos, assim como o diálogo constante e necessário com a comunidade que os cercam.  

Assim, o Acervo da Laje suscitou em nós, duas professoras, algumas inquietações, ligadas à nossa própria visão sobre o ensino de História: em quais regiões de uma cidade espera-se encontrar um museu? O que ele deve guardar/preservar? Quais públicos normalmente o frequentam? Quais narrativas sobre o passado encontramos nos museus, mas também em nossas aulas? Quem são os sujeitos que habitam esse passado? O que essas escolhas dizem sobre as reivindicações do nosso presente? Refletir sobre esses pontos implica pensar na necessidade de “narrar histórias outras, narrar a vida e as experiências”, a partir de uma perspectiva decolonial (ANTONI; PAIM; ARAÚJO, 2021, p. 35). Sob esse viés, as obras de arte do Acervo inspiram distanciamentos em relação a uma narrativa historiográfica tradicional ainda presente em muitos livros didáticos que privilegiam uma história política pouco atenta à pluralidade das lutas de indivíduos e grupos. Para refletirmos sobre esse distanciamento, vamos compartilhar com vocês, leitores, duas obras de arte que nos afetaram e que, metaforicamente, revelam muito sobre o potencial emancipador e descolonizador do museu.

Fragmentos do acervo  

A primeira obra de arte é uma pintura a óleo do artista soteropolitano Zaca Oliveira, morador da Vila Rui Barbosa. Como outras obras do Acervo, essa não tem um título direcionando o olhar do visitante. Nela, vemos um homem negro ajoelhado que observa seu reflexo na água. Qual a natureza desse olhar? Parece um olhar curioso, permeado pelo desejo de se descobrir, bastante investigativo. O homem parece alguém que se enxerga pela primeira vez e, no estranhamento desse olhar, busca um entendimento e um encontro. Se o estranhamento em relação ao mundo e a produção de um novo olhar sobre ele é uma importante função educativa da arte. No entanto, as produções artísticas podem também uma maneira de reconhecermos nossas ideias e sentimentos, de tomarmos consciência das histórias das quais fazemos parte e dos conflitos sociais que permeiam nosso mundo. Esse reconhecimento, nos mais diversos produtos culturais, faz parte da construção de identidades coletivas e pode ser especialmente emancipador quando permite que populações por muito tempo silenciadas possam se enxergar de modo amoroso, criativo e potente.  

A construção de subjetividades negras é radicalmente afetada pelo racismo estrutural, que desumaniza mulheres e homens ao negar-lhes sua beleza, sua ancestralidade e sua história, mas também ao silenciar vozes, por tantas gerações (MUNANGA, 2015). Muita luta foi necessária para que o movimento negro se contrapusesse a essa desumanização e, como movimento educador, pudesse construir outras narrativas e identidades (GOMES, 2017). Mesmo depois de importantes conquistas, como a Lei 10.639/11.645, os nossos livros didáticos e o cânone artístico contam, em grande medida, uma história colonial, que estereotipa as populações negras e suas experiências. A obra de Zaca pode ser lida como uma oposição a isso: é um convite para um olhar amoroso e curioso em relação às histórias e identidades que foram tão subalternizadas. E essa também nos parece a proposta do Acervo da Laje: uma aposta na construção de um museu na qual as populações do subúrbio possam construir obras de arte e narrativas nas quais se reconheçam mais e possam falar de si; um descobrir-se que possa se contrapor à força ainda hegemônica de narrativas coloniais e desumanizadoras que circulam em nossa sociedade.    

A segunda obra do Acervo é uma série de três telas da artista e professora de arte da rede pública de ensino de Salvador, Ana Elisa Improta. Produzidas com a técnica do pastel oleoso, elas mostram as rotinas de jovens negras em seus trajetos no transporte público da cidade de Salvador (ACERVO DA LAJE). Em uma tela, vemos algumas pessoas entrando num ônibus, em cujo letreiro há o número “1888” e a palavra “negreiro”. Em outra, são representadas duas mulheres negras. Uma delas tem um olhar cansado e aflito, mas que não é capaz, no entanto, de tirar a beleza do rosto da jovem, que tem os cabelos com dread presos. Na terceira, vemos passageiros com roupas, estilos e cabelos bem diversos, mas igualmente espremidos no exíguo espaço do ônibus. Essa série de telas permite um diálogo profícuo entre temporalidades, no qual experiências passadas e presentes dialogam e se questionam mutuamente. As heranças escravistas são explicitadas pela capacidade da arte de criar imagens poderosas para representar ideias e sentimentos. Somos afetados pela presença desse passado doloroso que se atualiza no sofrimento cotidiano das populações, em sua maioria negras, no transporte público, pensado como um “negreiro” contemporâneo. Por outro lado, as representações parecem indicar que tais situações de violência não são capazes de desumanizar, tirar a expressão, a beleza e o poder dessas populações. Para nós, de muitas maneiras, essas telas da artista Ana Elisa Improta expressam bem como as obras do Acervo são artefatos capazes de criar narrativas históricas potentes e que permitem uma relação complexa e crítica com as diferentes temporalidades.

Conclusões  

Nessa pequena reflexão sobre algumas das muitas oficinas e obras que compõem o museu, tentamos desvelar um pouco do encantamento que o Acervo da Laje produziu sobre nós. A obra de Zaca é um bom exemplo das potencialidades que esse espaço traz para a construção de narrativas contra-hegemônicas. Isso porque, ao mostrar a beleza do subúrbio por meio da arte e das ações elaboradas em conjunto com a comunidade local, também o passado é ressignificado. Uma das possibilidades do ensino de História é justamente essa desnaturalização da realidade social. Uma “função lúdica de brincarmos de sair do presente” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012) que nos permite imaginar outros tempos, outros modos de viver e de sentir, outras visões de futuro.  

Nesse sentido, o Acervo da Laje colabora também para que novas histórias sejam escritas, a partir de perspectivas críticas a uma historiografia pouco atenta às pluralidades. Nesse 2022, ano de comemoração do bicentenário da Independência, temos a chance de refletirmos não só sobre os eventos, os conflitos e os interesses que culminaram na separação do Brasil de Portugal naquele 1822, mas também sobre os projetos emancipatórios em disputa no presente. Sob esse viés, a casa de Vilma e José Eduardo, como um espaço educativo instalado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, instiga o germinar e a concretização de outras independências, protagonizadas pelos jovens e crianças do bairro e pelos artistas locais. Emergem ali histórias de “Brasis” que buscam a ruptura com as heranças do passado colonial e, ao mesmo tempo, se comprometem com a luta por uma sociedade mais democrática e menos desigual. Além disso, o museu contribui para a formação de indivíduos autônomos, autores e leitores do mundo, de modo a atribuir centralidade a sujeitos historicamente excluídos da produção do conhecimento.           

Nosso esforço em relatar aqui a visita ao Acervo da Laje foi suscitado, portanto, por questões que nos levaram a refletir, entre tantas coisas, sobre uma educação possível e sobre o ensino de História no qual acreditamos e buscamos praticar como professoras. Vivenciamos ali uma experiência, entendida como um acontecimento que produz afetos, deixa marcas, impacta nossas certezas e convicções (BONDÍA, 2002, p. 21). Uma aparentemente simples ida ao museu provocou questões que, ao serem compartilhadas entre duas amigas, professoras de História, produziu também o desejo de uma construção coletiva. Por mais que cada uma de nós elaborássemos sentidos próprios para aquele momento, acreditamos que a tentativa de narrá-lo seria mais rica e congruente quando feita em comum. Assim, se uma das riquezas do Acervo da Laje está nas possibilidades de ressignificação da realidade, vendo beleza no subúrbio, também em nós ele produziu deslocamentos e reflexões em nosso “ser professoras”.

Referências bibliográficas:

ACERVO DA LAJE. Site do Acervo da Laje. Disponível em: https://www.acervodalaje.com.br/ 

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz. “Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, M. A. et. al. (orgs.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: FGV, 2012. E-book.

ANTONI, Edson; PAIM, E. Antonio; ARAÚJO, H. M. Marques. “Insurgências no ensino de história: narrativas e saberes decoloniais”. In: CESCO, Susana et. al. (orgs.). Ensino de História: reflexões e práticas decoloniais. Porto Alegre (RS): Letral, 2021.

BONDÍA, J. Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 19, 2002. 

DIAS, G. Soares. “Acervo da Laje é casa, escola e museu”. Revista Trip. Disponível em: 

https://revistatrip.uol.com.br/trip/acervo-da-laje-residencia-escola-e-museu. Acesso em: 31 mar 2022.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador. Petrópolis (RJ): Vozes, 2017. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2019.

hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

MAGALHÃES, Aline Montenegro; COSTA, Carina Martins. “Pedagogia do fragmento no ensino de história. Ou como aprender com os escombros?” In: CESCO, Susana et. al. (orgs.). Ensino de História: reflexões e práticas decoloniais. Porto Alegre (RS): Letral, 2021.

MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 62, p. 20–31, dez. 2015.

RIBEIROS, Isabela Lemos Coelho; OTHERO, Carolina de Oliveira Silva. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 6, Número Especial Bicentenário da Independência,setembro,2022, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Imagem de Ro Ma por Pixabay

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