Independência ou morte (1972) em sala de aula
Danilo Mendonça
Graduando em História na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador no Centro de Humanidades Digitais IFCH-Unicamp (CHD)
Contato: danilomendonca999@gmail.com
O ano de 1972 representava um marcante momento vivido pela Ditadura militar brasileira, dados os recentes feitos do país como nação com o notável crescimento econômico representado pelo milagre, a interiorização do país com maior integração com a região Norte e a conquista do tricampeonato da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1970, no México. Apesar do bom momento financeiro, a ditadura também vivia um forte momento de repressão, torturas e restrições das liberdades políticas.
Não sendo um ano comum na história brasileira, o ano de 1972 marcou o sesquicentenário da independência do Brasil, quando, após mais de três séculos, o país conseguiu garantir a independência de Portugal. Aproveitando-se da data, o regime ditatorial promoveu comemorações sob a tutela do Estado, visando colher os louros, assim como na conquista da Copa de 70.
Como citado pela historiadora Janaína Martins Cordeiro em seu livro A ditadura em tempos de milagre: comemorações, orgulho e consentimento, publicado pela Editora da Fundação Getúlio Vargas em 2015, o regime passou a buscar a associação da sua imagem com a comemoração. A ossada de D. Pedro I foi trazida de Portugal e percorreu diversos estados até ser enterrada em São Paulo e festas oficiais passaram a ser organizadas, buscando fazer com que a população se sentisse parte das celebrações e criando um apelo sentimental entre o povo, a construção histórica do país e o então regime vigente.
Esse clima de celebração dado pela chegada da data do sesquicentenário chegou a outros âmbitos, impactando o cinema brasileiro. Aproveitando-se da data de festividades, o cineasta Carlos Coimbra idealizou o filme Independência ou Morte, visando expor os sentimentos patrióticos nas telas de cinema. Para os papéis de protagonistas do filme, foram escalados os atores Tarcísio Meira e Glória Menezes. Nesse contexto, os atores da Rede Globo eram considerados dois dos principais nomes da teledramaturgia brasileira, tendo estrelado folhetins como Irmãos coragem e Sangue e areia, ambos trabalhos escritos por Janete Clair. Além da presença na televisão, os atores formavam um dos casais públicos mais notórios do país e estampavam capas de revista de grande circulação no país, como O Cruzeiro, Ilusão e TV Sul.
Figura 1. Independência ou morte (1972)
Fonte: IMDB
No longa-metragem, Tarcísio interpreta D. Pedro I e Glória a Marquesa de Santos, caso extraconjugal de D. Pedro enquanto casado com a Imperatriz Leopoldina. Além dos protagonistas, outros nomes consagrados da vida pública brasileira participaram das gravações do filme, como o apresentador Carlos Imperial e o radialista e também apresentador Manuel de Nóbrega.
Com o longa marcado pela presença de nomes conhecidos do grande público e um sentimento patriótico institucionalizado pelo regime militar, o filme, que estreou no ano de 1972, alcançou a marca de mais de dois milhões de espectadores – mais precisamente 2 924 494 de pagantes, segundo dados da Embrafilme – sendo o suficiente para consolidar-se como principal atração nacional do cinema naquele ano.
O filme tornou-se um documento de grande expressão na cultura brasileira e participa do imaginário popular de toda uma geração que foi para os cinemas acompanhar o filme na década de 1970, porém, possui limites que podem e devem ser debatidos em sala de aula por profissionais da História. Dados o tamanho e a importância do filme, algumas construções ficaram enraizadas no imaginário social da população.
Como dito pela professora e pesquisadora Darcy Viglus sobre o uso de recursos cinematográficos em sala de aula:
[…]a utilização do filme como recurso didático deve facilitar a aprendizagem, fazendo com que o aluno encontre uma nova maneira de pensar e entender a história, uma opção interessante e motivadora, que não seja meramente ilustrativa e nem substitua o professor, mas, que seja um momento crítico e reflexivo de aprofundamento da história. (VIGLUS, 2009, p. 4)
Considerando a fala de Viglus, as produções audiovisuais podem servir para exemplificar um momento histórico e “dar vida” a momentos do passado, porém não substituem a importância do professor para engajar o debate e pontuar os problemas da construção do referido momento. O ato de contestar a fonte documental, que os alunos da graduação de História são orientados a fazer ao longo de sua formação intelectual, é um ato de emancipação e de entendimento do papel do historiador enquanto profissional. Despertar nos estudantes da Educação Básica o olhar crítico do cinema é, de certa maneira, transpor os conhecimentos adquiridos como profissional ao público escolar. Como já dito por Maurice Tardif, “aprender a ver cinema é realizar esse rito de passagem do espectador passivo para o espectador crítico” (TARDIF, 2002).
Na linha do discurso de Tardif, pode-se ainda citar a pesquisadora Sylvia Elisabeth de Paula Alencar, que também atenta para a função do historiador de ensinar o questionamento do documento em sala de aula:
[…] já deixamos claro sobre a superação do livro didático como único documento a ser utilizado nas aulas de história e fortalecemos a necessidade do uso de outros tipos de documento, com ênfase para o cinema, por várias razões já colocadas. Uma delas é o desenvolvimento de um alfabetismo crítico diante da mídia. (ALENCAR, 2007, p. 109)
Atentando-se ao filme de Coimbra, ao construir uma narrativa ficcional do passado, o filme busca uma representação da figura do herói em torno de D. Pedro I em situações como a do grito do Ipiranga, seguindo a tradição de construção do pensamento historiográfico brasileiro. Como exemplo dessa tendência, podemos citar o quadro de autoria de Pedro Américo, em que é colocado D. Pedro de forma imponente em cima de um cavalo às margens do rio Ipiranga vestido com roupas de gala, liderando o motim contrário a Portugal. Apesar dessa imagem de representação de Américo – presumimos graças a trabalhos como o do historiador Marcos Costa – que a cena é muito romantizada, mas D. Pedro estava na verdade sentado em uma mula, durante o retorno de uma viagem, com poucos correligionários, vestimentas de viagem e com um congestionamento intestinal (COSTA, 2016). O debate sobre a representação mitificada de Pedro Américo construída no imaginário popular deve ser exposto em sala de aula e problematizadas devem ser questões como a fundação da narrativa da independência nessa roupagem e os limites de uma obra de arte como representação do passado. Um dos trechos do filme dirigido por Coimbra, que bebe da fonte de Américo, dá vivacidade para essa cena imortalizada no quadro, e portanto pode abrir uma série de questões e debates numa sala de aula no ensino fundamental e médio.
Dialogando com leituras mais tradicionais e caricatas, o filme ainda aborda a imagem de D. João VI, interpretado por Manuel da Nóbrega, como uma persona pouco ilustrada e com falta de modos à mesa, num processo de diminuição da imagem de D. João VI, leitura já superada pela atual historiografia, que reconhece os louros pela retirada da família da Europa e transferência para o Brasil, tornando-se um dos poucos reinos que não foram destronados por Napoleão na Europa (FERREIRA, 2021). Cabe ao profissional questionar essa estereotipização da imagem de D. João VI, muito enraizada na visão do povo brasileiro e repetida ao longo do filme, e atentar para a estratégia geopolítica de D. João VI, num contexto de alta turbulência no velho continente.
Vale ressaltar que o filme também é ousado em algumas cenas e contestador, colocando em xeque algumas visões mais heroicas da história presentes no imaginário do grande público. Uma cena em que D. Pedro II brinca com garotos negros, filhos de escravos que serviam a realeza, a Imperatriz Leopoldina ordena que um Padre separe o garoto dos filhos dos cativos dizendo que um filho da realeza não podia se misturar e isso, de alguma maneira, poderia colocar em xeque a reputação de seu pai. Em tempos de negacionismo científico e histórico, o debate sobre o papel do negro na sociedade brasileira e como o Império esteve atrelado à escravidão como seu pilar de sustentação econômico deve ser discutido e explorado, colocando o quanto a escravidão foi fundamental na sustentação da economia brasileira.
Outra questão que pode ser debatida durante a execução do filme é o esquecimento do negro durante boa parte do longa. Apesar da cena citada anteriormente, que expõe o racismo explícito na sociedade imperial, o aspecto do negro é pouco trabalhado no filme. Os negros que aparecem no longa não possuem falas e estão sempre nos papéis de seu trabalho, seja realizando afazeres domésticos ou carregando os senhores em liteiras. Esse apagamento do negro no longa esvazia uma das principais características do Brasil como nação e o regime imperial: a escravidão e como ela é determinante para formação econômica, social e histórica do país. Essa tentativa de esquecimento do papel do negro na sociedade brasileira e as excrescências da sociedade escravista devem ser debatidas em sala de aula. Esse apagamento do filme demonstra como boa parte da elite econômica brasileira sempre viu os negros subalternizados em nossa sociedade. Contra isso, vale lembrar a lei 10639/2003, promulgada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que visa à obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nos anos escolares. O filme como suporte demonstra o apagamento do processo escravocrata e do negro na história brasileira, colocando em ênfase a questão de como o negro foi retratado no longa e das escolhas do diretor sobre o tema.
O filme acompanha a história nacional até o momento de abdicação do trono em que D. Pedro I proclama seu filho, D. Pedro II, Imperador do Brasil com apenas cinco anos de idade e retorna para Portugal, procurando extinguir a forte resistência de políticos e da população local causada pelo desgaste de seu reinado. Na cena final, D. Pedro I despede-se de alguns membros de sua família e parte dos burocratas pertencentes ao Estado brasileiro. Apesar de participar de um momento de consolidação do espírito ufanista na Ditadura, Coimbra não é apático em relação ao desordenamento de D. Pedro I, seus arrojos autoritários e sua vida adúltera.
O incômodo com sua visão machista, adúltera e a relação extraconjugal com a Marquesa de Santos estão expressas no filme – exibindo-se até uma discussão entre a Imperatriz Leopoldina e D. Pedro I, em que ele quase chega a agredi-la fisicamente. Porém, a última cena acompanhada da despedida de D. Pedro I, após o ato de abdicação, com o Hino da Independência e os créditos do filme sendo exibidos, dão ares de que o imperador nada mais foi que um grande estrategista político e que conseguiu sufocar sua oposição. Essa construção de herói durante o filme deve ser debatida e pode até reconhecer os preconceitos da sociedade brasileira impregnada na visão do mundo do país na década de 1970.
Além disso, anterior à cena final, mostra-se uma conversa de José Bonifácio de Andrada e Silva com Gonçalves Ledo, em que os dois exaltam os feitos de D. Pedro I e que prepara a cena final:
[…] (Gonçalves Ledo): Curiosa a figura de D. Pedro I, cheia de contradições. Um liberal que se tornou absolutista. Um dinasta que renunciou a dois tronos. Um pai amoroso, um marido infiel. (José Bonifácio de Andrada e Silva): Se pararmos, o fiel da balança penderá a favor de D. Pedro I, ele nos garantiu a consolidação desse vasto império. Impediu a volta do Brasil à condição de colônia de Portugal. E acima de tudo, deu-nos a Independência.
A fundação de narrativas e a construção de anti-herói no longa-metragem deve ser debatida. A conversa entre Andrada e Ledo e o fim ao som do Hino da Independência do Brasil ajudaram na mistificação de D. Pedro I e, de certa maneira, atenuaram os problemas das políticas de Estado do Império, que manteve a escravidão e suprimiu a oposição. Mitificações e mistificações estão atreladas à construção do imaginário histórico de qualquer país, como os Founding Father of the United States em relação à fundação dos Estados Unidos e as disputas dos herdeiros do peronismo na Argentina. Tais fatos demonstram que há uma disputa eterna pela construção da memória de um povo.
O longa de Carlos Coimbra também entra nessa disputa ao criar um documento visto por mais de dois milhões de espectadores e, de certa maneira, corrobora essa criação imagética de D. Pedro I como herói – apesar de questionamentos ao longo do filme. Como visto ao longo do texto, o professor deve estimular o debate entre os alunos e criar o espírito crítico neles.
Corroborando a lei 19639/2003 e o fato de o assunto da Independência do Brasil ser um tema tão importante para a formação intelectual de um aluno de História, além de um dos principais momentos da vida política brasileira, o filme “Independência ou Morte” é um excelente estímulo audiovisual para se trabalhar em sala de aula e apresenta muito potencial de uso nesses espaços, até mesmo pelos limites e problemas apresentados ao longo do filme. Mais do que uma exibição passiva, em que os alunos não debatem e apenas assistem ao filme, com a formação intelectual acumulada nos bancos da graduação de História, é possível realizar uma discussão entre os alunos, devido ao grande panorama abordado pelo filme e pelas inúmeras questões abordadas no trabalho de Carlos Coimbra.
Referências bibliográficas:
ALENCAR, Sylvia E. de P. O cinema na sala de aula: uma aprendizagem dialógica da disciplina história. 2007. 156 f. 2007. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Fortaleza.
COSTA, Marcos. A história do Brasil para quem tem pressa: Dos bastidores do descobrimento à crise de 2015 em 200 páginas!. Lisboa: Valentina, 2016.
FERREIRA, Armando Seixas. 1821: O Regresso do Rei. Lisboa: Planeta Portugal, 2021. 320p.
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.
PEREIRA, Camila Konrath. Pra frente Brasil: ditadura militar, identidade e Copa de 70. 2012. 15 f. Monografia (Especialização em Jornalismo Esportivo) – Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.
VIGLUS, Darcy. O filme na sala de aula: um aprendizado prazeroso. Rede Estadual de Ensino do Estado do Paraná do Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), 2009.
MENDONÇA, Danilo. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 6, Número Especial Bicentenário da Independência,setembro,2022, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
Imagem de destaque: Revista de História da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro: SABIN) 7 (74). ISSN 18084001. Domínio Público da Commoms
Boa Tarde…
Como consigo ouvir esta história sobre a Independência do Brasil.
OBRIGADO
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