Educação em tempos de Pandemia

Betim, 11 de maio de 2020

Caros colegas da escola Aristides, companheiros educadores da rede municipal de Betim,

Vivemos um momento histórico absolutamente inusitado, complexo e muito desafiador. Enfrentamos, cada um numa proporção e contexto, dificuldades diversas para atravessá-lo, preservando o mínimo da nossa saúde física e emocional.

Mais do que nunca avalio que, além dos cuidados recomendados pela OMS, precisamos zelar incondicionalmente para nos manter com consciência de unidade, coletividade e fraternidade e, mesmo distantes fisicamente, não soltar a mão de ninguém.

Tendo em vista as discussões referentes ao cumprimento do ano letivo 2020 e as medidas paliativas para a condução do trabalho educacional remoto nesse momento de Pandemia, em que nos aproximamos do 60º dia de suspensão das aulas, gostaria de me posicionar no intuito de contribuir de alguma forma para a reflexão e encaminhamentos necessários.

Sou professora nessa rede há 25 anos e já tive oportunidade de ocupar lugares diferentes nessa jornada que me permitiram perspectivas múltiplas sobre a educação pública de Betim. Já atuei como professora do 1° ano à EJA, como pedagoga de todos os ciclos/anos, como vice-diretora, diretora sindical, gestora da Secretaria de Educação, conselheira e presidente do Conselho Municipal de Educação. Enfim, essas experiências acabam por nos agregar mais maturidade profissional para opinar com empatia em relação a diversos pontos de vista, mas com consciência de querer ficar num lugar de menos ilusão e mais sentido.

Por isso compartilho a seguir alguns pensamentos gerados também pelo convite do diretor para que eu manifestasse opinião sobre a conjuntura atual e a proposta de implementação do Ensino Remoto Emergencial (ERE) na Rede Pública Municipal de Betim.

Precisamos acolher o presente como é (divergente da expectativa e do planejamento do passado) e soltar as perdas já estabelecidas.
Penso que a discussão precisa assumir esse nível de aceitação, pois essa negação em primeiro plano de qualquer discussão é o que gera mais angústia e equívocos para novos planejamentos e encaminhamentos.

Sempre fui defensora do cumprimento do ano letivo e dos direitos dos alunos em primeira instância, principalmente prezando por mais qualidade nessa oferta. Contudo não vou lidar de forma hipócrita e infantil nessa discussão, por isso parto do reconhecimento de que o ano letivo de 2020 nos moldes e padrões legais existentes já não cabe mais dentro do ano civil vigente, não cabem os 200 dias já flexibilizados pelo CNE nem as 800 horas mínimas esperadas, que nos induzirão a criar jornadas fakes. Então, repensemos a nossa relação expectativa x realidade. Essa é uma circunstância absolutamente extraordinária, proveniente de fatores externos fora do nosso controle.

É fato que a escola/sistema educacional, com seus gestores e instituições democráticas organizadas para fiscalização e manutenção dos direitos, precisa administrar os danos e se reorganizar, com o pé no chão, com responsabilidade e senso de realidade.

Estamos falando, nesse momento, de educação, mas acima de tudo da manutenção e preservação da vida dos meus, dos seus, dos nossos. Falamos de emoções, de saúde mental, sustento básico, dignidade e humanidade.

Esse é também um momento oportuno para quebrar e superar PARADIGMAS, para acolhermos o convite de repensar o modelo educacional vigente há séculos, sistema entre todos que mais resiste à evolução. Coloco-me a desejar mais do que nunca mudanças, mas mudanças que façam sentido e justiça e não o contrário, ampliando desigualdades e consolidando automatismos e modismos.

Vamos conhecer, pensar, saber, SENTIR para colocar um RE na frente dos verbos/ações que precisaremos assumir de agora em diante: REconstruir, REestruturar, REplanejar, REfazer e RESPEITAR ACIMA DE TUDO.

É fato que, enquanto Sistema Público de Educação (nem sistema municipal somos ainda, o que comprova nosso atraso) não estávamos nem estamos preparados financeiramente e tecnicamente para ofertar EAD, ERE, educação remota, virtual, nem o nome que queiram dar.

Estávamos, na verdade, nos reinventando na escola todos os dias para ofertar presencialmente uma educação com mais sentido e articulada com as demandas dos nossos alunos, que, sem sombra de dúvida, são muito maiores do que a educação formal. Temos nos desdobrado para tornar interessantes conhecimentos e formação acadêmica que, a curto prazo, não matam a fome, não curam os alunos nem os libertam das violências, carências, ausências, desigualdades sociais que os afetam todo “santo” dia, letivo e não letivo.

Por isso, nesse momento, meu coração clama e olha pra essas informações “invisíveis” que o vírus irremediavelmente arremessa na nossa cara e que também, por puro sentimento de impotência e dor, excluímos sumariamente.

Outra prova do tamanho do desafio é que nem as instituições privadas, com muito mais recursos, estão dando conta desse modelo “EAD”, “ensino remoto” não programado, o qual é abusivo tanto para os educadores quanto para os educandos e, na maior parte do tempo, é pro forma, não faz sentido e tem causado desgastes intensos com os alunos/filhos e pais. Tenho testemunhado isso como mãe e inclusive mensuro o verdadeiro prejuízo desse movimento: o desgosto e a destruição da relação afetiva dos alunos com a escola. E principalmente o sentido do currículo na vida. Penso que esse sentido deve ser nossa busca constante no processo educativo de agora e sempre.

Pois bem, até aqui dissertei mais retóricas de lamentos e críticas. Imagino que muitos estejam perguntando: E DAÍ? O QUE FAZER?

Sinto dizer que não tenho também respostas e soluções prontas.

O que posso elencar e compartilhar fraternalmente são mais algumas sugestões pelas quais me disponho integralmente a também me responsabilizar.

1° – ANO LETIVO:

Reitero: Tenhamos calma e bom senso. A urgência e a ansiedade para a resolução desses problemas pautadas na ilusão só nos fará “meter os pés pelas mãos”. Os trabalhadores em Educação da Rede Municipal de Betim estão em regime de férias excepcionalmente modificadas de período em função da Pandemia. Nesse sentido, avalio como precipitado pressionar os diretores para fazer consulta virtual, debater e construir com seus coletivos uma proposição e “solução”, mesmo que paliativa, em menos de uma semana. Apesar das dificuldades conhecidas por todos nós de interlocução da categoria com o governo, sempre prezamos e nos organizamos para nos posicionar enquanto coletivo por meio da nossa organização sindical (Sindute) e não acho prudente fazer diferente agora. Reforço que avalio como salutar o debate interno (mesmo que virtual) nos coletivos das escolas em relação a essas proposições, contudo somos uma rede e vejo como extremamente precipitadas e perigosas conclusões/deliberações individuais por escola e, ainda pior, por uma minoria que conseguir se articular com a direção, o que pode gerar “calendários” e “currículos” divergentes na mesma rede, ferindo o nosso Estatuto Municipal de Educação e diretrizes democráticas até aqui conquistadas. Por isso, mais uma vez: CALMA.

Acredito que todos estamos bem intencionados e desejamos que tudo passe logo da melhor forma, mas somos os adultos da história e estamos escrevendo-a, então consciência e autorresponsabilidade acima de tudo devem ser o nosso lema.

Sugestão: Soltar e aceitar que não podemos resolver AGORA, matematicamente, o problema do cumprimento do ano letivo padrão talvez seja um grande e importante passo para isso. Exercício de humildade – NAO PODEMOS, NAO TEMOS ESSE CONTROLE.

Podemos confortar um pouco nossa angústia, para isso e muito mais, assumindo a lógica da redução de danos, parâmetro de escolha pelo menor dano, considerando o caráter da excepcionalidade do momento histórico.

Após a definição do relaxamento do isolamento e da volta às aulas (que NÃO fazemos a menor ideia segura de quando será), os Conselhos Municipais, Estadual e Nacional de Educação, junto aos órgãos executivos e sindicatos, apresentarão estudo (responsável) do que é possível fazer, e assim faremos. Mas, no meu ponto de vista, essa resolução não deve ocorrer agora (a não ser que a Pandemia esteja controlada, o isolamento esteja suspenso e eu não esteja sabendo).

Amigos, precisamos quebrar e ressignificar PARADIGMAS muito incorporados em nós e no nosso sistema educacional até aqui, como, por exemplo, “ano letivo de 200 dias”, “tempo x qualidade x quantidade”, “currículo programático x currículo real x currículo oculto”. Isso é urgente!!!

Para esse debate, podemos, nesse processo de médio e longo prazo, abrir fóruns diversos em tantas instâncias, como conferências, simpósios, congressos, assembleias, no poder executivo e legislativo. Sejamos perseverantes!!!

2° – CURRÍCULO

Sobre a disponibilização virtual de atividades/aulas/assessoria pedagógica para os estudantes e famílias:

Avalio que possam, sim, ser disponibilizados conteúdos significativos e diversos em plataformas virtuais diferentes. Poderão ser construídos e enviados pelos educadores, se assim consentido, após o período de férias cumpridas (18/05). Contudo essa ação precisa estar fundamentada essencialmente em três princípios, no meu ponto de vista:

a) Para ser justo e contar com o trabalho para elaboração e disponibilização de todos os professores, é inegociável o retorno do pagamento dos professores que flexibilizam. Não é ético nem legal, em hipótese alguma, que os professores efetivos e contratados que estão recebendo façam o trabalho para os que estão com salários cortados/flex. Penso ser esse ponto prioritário no debate e na negociação.

b) Não é possível cobrar a obrigatoriedade de acesso e realização dessas atividades, por vários motivos por nós conhecidos, principalmente a falta de recursos materiais e intelectuais das famílias para tal. Sendo assim, penso que podemos incentivar, divulgar, enviar, mas entendendo que o acesso é livre e não poderá ser cobrado de forma sumária posteriormente em processos avaliativos e programáticos. Isso seria uma grande hipocrisia e ilusão, porque sabemos que, mesmo presencialmente, sob intensa cobrança todos os dias, muitos alunos não realizam atividades em casa, também por vários motivos principalmente sociais. Não acho justo e legítimo também demandar das famílias, essencialmente mulheres mães que estão batalhando para o sustento dos seus filhos, a garantia desse acompanhamento pedagógico. É a conhecida relação da expectativa x realidade.

c) A disponibilização de material físico na escola (xerox, livros didáticos e literários) pode até ser uma possibilidade desde que pensada, planejada e executada com todos os cuidados de prevenção e preservação da saúde dos envolvidos.

Ainda sobre o conteúdo virtual a ser disponibilizado, sugiro focarmos mais em linguagens lúdicas e artísticas, que exerçam atração sobre crianças e adolescentes, como, por exemplo, músicas, filmes, literatura e jogos.

Sei que muitos de nós não têm habilidade nem formação em TI e precisaremos da assessoria de profissionais habilitados para a produção virtual (pode ser a equipe de tecnologia educacional da SEMED, bem como voluntários). Disponibilizo-me a enviar posteriormente um documento somente com links e materiais com sugestões. Podemos inclusive criar documentos no Google drive para serem construídos coletivamente.

3° – SITUAÇÃO SOCIAL

Como alguns sabem, desde 2018 venho desenvolvendo um projeto pedagógico/social na escola Aristides chamado “Mude Sua Mente, Mude o Mundo”. Esse trabalho atende prioritariamente alunos/adolescentes em situação de alta vulnerabilidade social, moradores da região do Jardim Teresópolis, com o objetivo de desenvolver, em período de extensão de jornada formal, atividades integrativas e terapêuticas integradas aos conteúdos transversais para auxiliá-los na superação de traumas pessoais por violências diversas sofridas, manifestos em transtornos psicológicos, como depressão e ansiedade, principalmente, que, na maioria das vezes, também geram altíssimos índices de defasagem de aprendizagem e reprovação. Essa experiência em especial, em meio a uma jornada de 25 anos de trabalho educacional em periferia, me trouxe um choque de realidade e me fez perceber como somos muitas vezes arrogantes e ingênuos na crença de que os valores da educação formal são caros para esses jovens como são pra nós, e, no automatismo da lógica da meritocracia, tendemos a julgá-los como “folgados”, “preguiçosos”, “incapazes”, “atrasados”, “indisciplinados”, etc. Conto essa experiência, porque essa leitura tem me sido muito inspiradora e também libertadora de crenças limitantes.

Conseguimos, nesse curto espaço de tempo, mensurar resultados de acelerado desenvolvimento com alunos (de 12 anos, que ainda não sabiam ler, por exemplo), por meio de práticas e ferramentas diversas, predominantemente de acolhimento afetivo. Observamos que bloqueios e dificuldades de aprendizagens são mantidas ou superadas de acordo com a abordagem psicopedagógica. Trago essa contextualização também para argumentar sobre a importância de se disponibilizar apoio emocional e estrutural no atendimento às comunidades escolares, especialmente as das periferias, em tempos de Pandemia.

Estou me referindo também à sugestão de criação, pelo Governo Municipal, de medidas emergenciais para apoio alimentar aos alunos que, na maioria dos casos, têm a merenda escolar como principal fonte de alimentação. Acredito que o município, a exemplo de Belo Horizonte e de outras cidades, poderia converter os estoques de merenda em cestas para distribuição às famílias que estão em situação de total vulnerabilidade e que, no caso de Betim, até onde eu sei, estavam recebendo 59 reais, que não conseguem suprir quase nada.

Concluindo, sugiro que as escolas e os profissionais da Educação poderiam incluir no seu pacote de medidas emergenciais, na medida do possível, interlocução via WhatsApp ou telefone com os estudantes e suas famílias para fortalecer vínculos e oferecer apoio emocional. Podemos também fazer campanhas e fomentar ajuda extra para os grupos em maior vulnerabilidade social nesse período, observar e denunciar suspeita de violências contra crianças e adolescentes, promover vídeos com depoimentos e mensagens de apoio dos educadores aos alunos (como muitas escolas já têm feito). A Prefeitura Municipal de Betim poderia também criar um canal/oferta de apoio psicológico institucionalizado para todos os profissionais da educação que demandarem esse atendimento nessa fase.

4º – ISOLAMENTO/PREVENÇÃO CONVID

Em relação a esse ponto, não me delongarei, por acreditar ser necessário somente reiterar as recomendações dos órgãos de saúde já divulgadas amplamente pelos meios de comunicação, sobretudo a OMS. Que mantenhamos a tranquilidade e aceitação de que os espaços educacionais devem ser os últimos a retomarem normalmente seu funcionamento, considerando o grau/risco de transmissão entre crianças, o volume de pessoas que circulam nesses espaços diariamente e a ainda precária estruturação de recursos preventivos, diagnóstico e tratamento na área de saúde de Betim, de Minas Gerais e do Brasil.

Sem mais por ora, agradeço imensamente sua leitura até aqui, coloco-me integralmente à disposição para conversar e continuar o debate e deixo meu abraço fraterno e melhores vibrações para que eu, você, nossas famílias e as de todos os nossos alunos se mantenham bem e que possamos evoluir com toda essa experiência.

Fabiana Vilas Boas Borges

Pedagoga e professora

Escola Municipal Aristides José da Silva

“O correr da vida embrulha tudo; a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.” (Guimarães Rosa)
foto fabiana

Fabiana Vilas Boas Borges

Professora e Pedagoga da Rede Municipal de Betim

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