Saberes necessários às práticas educativas em tempos de quarentena
Atualmente atores plurais do campo da educação vêm matutando sobre as possibilidades e desafios da oferta de educação escolarizada em tempo de pandemia. Neste contexto, com a paralisação das aulas e implementação do ensino remoto, vemos acontecer uma série de iniciativas e tentativas para garantir essa oferta e, ao mesmo tempo, diferentes esforços para reduzir a distância entre professores e estudantes, escola e território educativo, dentre outros, que mobilizam para uma ação-reflexão de uma educação contextualizada.
Durante este período, a educação como “intervenção no mundo” tem sido demandada a uma reorganização de sua ação político-pedagógica. E, pelo que se percebe, essa reorganização passaria não apenas pelas discussões institucionais, mas também pelas representações construídas pelas comunidades, pelos meios de comunicação e a sociedade de modo geral. Então, essa reestruturação surge de uma condição herdada, bem como da emergência de eventos do cotidiano, requerendo novas posições de educadores, da comunidade escolar, de gestores públicos e atores políticos.
Aqui apresentamos duas dessas demandas que estariam em pauta. Uma delas diz respeito à perspectiva de confronto com uma tradição pedagógica, numa problematização de sua práxis, geralmente atrelada a um exercício conteudista, disciplinar e tecnicista, capturada e denunciada nas lutas pelo direito à educação. E a outra tem a ver com as latências e necessidade de respostas em contextos de crise. Apesar de essas condições serem indissociáveis– históricas e eventuais –, elas são distintas para nós. Assim, possuem bases comuns, mas resultam em estratégias e respostas diferenciadas, isso pelas temporalidades e oportunidades em que estão envolvidas.
Sobre a primeira dimensão, da crítica à tradição pedagógica, é sabido que vivemos uma necessária ressignificação dessa tradição que “insiste em limitar o pedagógico à sala de aula, à relação professor aluno”, conforme elucidado por Gadotti (1979). No entanto, essa demanda convoca os atores educacionais para o desenvolvimento de novas habilidades de ensino e a praticar processos de qualificação da aprendizagem, para superação de desigualdades educacionais; além de um reestabelecimento do “padrão” curricular, numa sociedade que tem tido a informação como centralidade.
Apesar de o sistema educacional ainda não dar conta da garantida universalidade da educação, nem oferecer condições para que os diferentes sujeitos sejam reconhecidos e para que estejam como centro das decisões das ações educativas, esse imperativo tem batido novamente à nossa porta. Sobretudo, no chamado a uma educação que proporcione mais informação que o “saber”. Mas, diante dessa conjuntura, como relacionar o saber docente (o saber que se tem), sua formação profissional (o saber que foi ofertado) às ações emergentes de uma nova forma de ensinar-aprender (um saber que precisa ser adquirido)?
É notório que não há técnicas neutras e que podem ser transplantadas de um contexto a outro, pois, uma educação contextualizada exige posicionamento diante dos projetos pedagógicos e diante de contextos de crise. E essas demandas, como no caso da pandemia, “não se tratam apenas de desenvolver competências técnicas novas”, como aborda Charlot (2013), mas também de lidar com os direitos básicos para aumentar o desenvolvimento social e ampliar oportunidades de melhores condições de vida para a população em situações muito específicas.
Assim, precisamos olhar mais criticamente para a realidade e superar consciências ingênuas, por exemplo, para distinguir o que seria próprio do tempo escolar e do tempo social. E, por mais difícil que seja, essa realidade tem exigido mais engajamento nesta realidade. Por outro lado, é importante reconhecer que esse debate não é novo, não esteve adormecido, nem estava apagado dos contextos atuais. Porém, ganha hoje novos contornos e sugere atenção aos feixes e lacunas deste novo/contínuo movimento. Não apenas, como mencionado por Freire, quanto mais nos capacitamos e aprendemos, mais aumenta a nossa responsabilidade com as pessoas.
Decerto, a partir de algumas reflexões de Bell Hooks, é sabido que “a escola precisa ser um lugar de entusiasmo e não de tédio”. Entretanto, para que essa aprendizagem seja empolgante e munida de entusiasmo, isso não será exequível diante de conteúdos e relações frias, duras e enrijecidas. Esses entusiasmos surgem de uma pedagogia radical num reconhecimento de todos como importantes e como partícipes fundamentais para o ato de ensinar e aprender. Por isso, é necessária a existência de uma comunidade aberta ao aprendizado, em que o entusiasmo surja do esforço coletivo. Somente através de uma pedagogia engajada será possível superar esses desafios. Nesta concepção, uma pedagogia engajada evita vozes fixas e absolutas, já que “mudar é difícil, mas é possível”, e o mundo está em movimento requerendo novos frontes.
Não é novidade que muitos estudantes vão à escola buscando apenas aprovação ao fim do ano, sem encontrar nela sentido e prazer (bell hooks). Mas, a escola não produz apenas representações negativas, já que numa mesma experiência também são reverberados sentimentos de afetos, encontros, saudade, sonhos, cheiros ou cores no contexto da cultura escolarizada. Neste momento isso pode ser observado, por exemplo, nas redes sociais e nas interações (possíveis) dos atores da educação durante esta quarentena, o que confirma que as relações presencial e de sociabilidade nos espaços educativos têm sido apostas assertivas, relações desejadas, significativas e, portanto, insubstituíveis.
Nessas apostas assumir uma “posição “é uma condição inerente. E por essa necessidade de posição, o “correr o risco para mudança sempre foi um fardo carregado por educadores” (Bell Hooks). Em contraste, os que estão na linha de frente, no chão da escola e que possuem importantes leituras são muitas vezes silenciados ou negligenciados na busca de respostas ou colaboração das decisões que orientarão suas práticas. Logo, vemos que esses sujeitos não apenas possuem narrativas válidas, mas trazem o poder de produzir fissuras e contranarrativas numa condicionalidade hegemônica, trazem fluxos e contrafluxos que estão para além da própria institucionalidade da educação. Contudo, para que essa almejada mudança do ensino aconteça, seria necessário um procedimento democrático, permitindo que essas pessoas sintam que realmente podem contribuir para uma efetiva mudança.
Por vezes, professores passam por uma perversa condição de “sonhar em transmitir saberes e formar jovens, mas vivem dando notas aos estudantes” como desenvolve Charlot (2013). Essa situação elucida que não apenas os atores diretos precisam se engajar, o que aliás já é bem rotineiro, mas também precisam de apoio e suporte para que as significativas alterações no sistema de educação aconteçam, na colheita de uma prática que contribua para a autonomia e a liberdade da população.
Da mesma forma, é consenso que educadores precisam lidar com esse engajamento e também enfrentar essa demanda das novas tecnologias, mas precisam ter acesso e condições. Isso não tem a ver apenas com um tempo que requer atualização e produção de informação, e sim um retorno à dimensão importante da relação dos sujeitos com os “saberes”. De modo geral, essas são contradições importantes e que são motores para a história, frente a uma nova possibilidade que acaba de se abrir.
Por analogia, as desigualdades educacionais afincam-se ainda mais neste momento, com uma nítida prática de educação como transmissão de conhecimento. Aliás, um modelo de educação sonhado pela burguesia, ou seja, uma educação classista, que não chega a todos por economia financeira, que não amplia possibilidades de acessar direitos, que reforça a concorrência como mote de suas práticas, que incentiva uma relação sem direito ao contraditório e sem interatividade com os mais pobres. Um encaixe perfeito! Inegavelmente essa ideologia governamental instituída no país, que desfavorece a aprendizagem e exclui sujeitos da educação, não é fruto da pandemia, pois já pré-existia. Porém, agora se agrava, sobretudo aos enumeráveis e invisíveis sujeitos no contexto dessa institucionalidade.
Por isso, a mercantilização da educação precisa ser indagada. O acirramento, a aposta na concorrência, a desqualificação da relação presencial precisam estar em voga. Igualmente, essas “diferenças precisam ser confrontadas e essas discussões precisam estar abertas para que surjam intervenções úteis”, conforme acredita Fanon (2008). Em suma, diante dessas desigualdades, precisamos reconhecer que “Somos uma sociedade racista, pois se não compreendermos essa evidência, deixaremos de lado muitos problemas”.
Sabemos que, em tempos de quarentena, atores plurais da educação já vêm encarando individualmente uma disputa por um currículo vivo, inclusivo, dialógico. Porém, essa luta precisa ser reconhecida, mapeada e sistematizada, porque ensina-nos sobre novas condições, novas precariedades, novas resistências, novas conexões e interações e revelam-se, portanto, como potências educativas.
Existe muita resistência que vem nessa contramão. Mas também uma concreta dispersão das lutas sociais, como nas dificuldades em construir alianças e com nocautes intensos dos últimos anos (não vai passar, passou! Não vai ter golpe. Teve. Nada de nós sem nós! O “Nós” desapareceu), fatores esses que igualmente desanimam para ação coletiva. Todavia, esse contexto de “leitura de mundo” pode ser de sua “re-escrita”, numa máxima freiriana, que mobiliza para o não conformismo, para uma inquietude do saber, numa curiosidade munida de afeto e de transformação democrática e transformadora da educação brasileira. Portanto, de modo geral, esses caminhos precisam nos levar a “um ensino que permita as transgressões e que transforme a educação na prática da liberdade”, como sugerido por Bell Hooks. E, nessas condições, a pandemia que tem nos assolado também têm nos encorajado a assumir uma oferta de aprendizagem sem reforçar os sistemas de dominação existentes.
Por fim, a educação sistêmica e escolarizada, ainda que tenha que se qualificar em seu sentido político-pedagógico, é um caminho fecundo que colabora para a qualidade de vida da população e para o desenvolvimento do bem comum. Esta precisa estar na contramão de uma sociedade simplista da informação. Com este propósito, visto que “a educação não é somente humanização e subjetivação, mas também socialização”, há uma necessidade de obter estruturas e relações, para além das novas tecnologias de informação, como indagado por Charlot(ANO, PÁG).
Em resumo, no âmbito desta discussão, o que se percebe é um risco de enquadramento de uma condição que vinha sendo problematizada, sobre uma necessária mudança na forma de ensino, sobretudo na luta por inclusão de “Outros sujeitos” na escola e nas universidades, com outras demandas e processos efervescentes neste novo cenário, da propagação do vírus COVID-19. Essa realidade tem sido um convite ao diagnóstico e à escuta. Assim, não descarta um debate contextualizado, substituindo uma relação por outra, como se o que viesse antes não prestasse, nem que a forma como está não devesse ser alterada, mas reconhece que essa eventualidade suscita rapidez e bom-senso nas respostas, especialmente com atenção aos sujeitos mais vulneráveis que estão em experiências concretas que os subjugam. De forma geral, precisamos equilibrar uma perspectiva ideal frente a novas aberturas, aprendizados e adesões.
Sebastião Everton, Educador Social e Doutorando em Educação na FAE/UFMG
PARA CONTINUAR A PROSA
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. Cortez editora. 2013.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA. 2008.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo. Paz. 1996.
GADOTTI, Moacir; MARTIN, Lilian. Educação e mudança/ Paulo Freire. Rio de Janeiro, paz e Terra, 1979.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Sebastião Everton
Educador Social e Doutorando em Educação na FAE/UFMG