O zoológico como questão sociocientífica
Ely Maués
Professor da Faculdade de Educação/UEMG.
E-mail: elymaues@gmail.com
Carla Maline
Professora da Rede Municipal de Belo Horizonte.
E-mail: carlamaline@yahoo.com.br
INTRODUÇÃO
Na educação dos pequenos é comum as professoras da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental realizarem visitas técnicas ao zoológico. De fato, desde os primeiros meses de vida, a criança estabelece uma relação muito próxima com os animais, uma vez que eles estão presentes nos primeiros brinquedos, livros, fábulas, desenhos animados, quadrinhos, programas de televisão e nas primeiras palavras. Nesses níveis de ensino, são frequentes os projetos que têm como tema os animais. No início do ano, por exemplo, é habitual que professoras e crianças escolham o nome da turma, muitas delas optando por nomes de animais. Isso é o suficiente para que seja provocada a organização de projetos de trabalho sobre o assunto. Afinal, qual professora nunca teve a turma do leão, da borboleta, do tatu-bolinha, do passarinho, da girafa? Nesses casos, a ida ao zoológico é quase que obrigatória.
No entanto, a visita ao zoológico, na maioria das vezes, é pouco refletida e planejada. Dificilmente pensamos no bem-estar dos animais. Ficamos felizes quando nasce um gorila ou outro animal selvagem, levamos as crianças para visitá-los, participamos de votações para escolher o nomes dos “novos moradores” do zoológico, mas não levamos em conta que esses “novos moradores” estão condenados a ficar presos para o resto da vida, alí, atrás dos cercados e grades. Do mesmo modo, pouco nos informamos sobre os projetos de conservação dos animais e de educação ambiental desenvolvidos pelo zoológico. Muitas vezes, não temos ideia de que grande quantidade dos espécimes estão lá por não terem condições de serem reintroduzidos na natureza, em função de maus-tratos sofridos e caça ilegal.
Neste trabalho, apresentamos uma sequência didática, realizada com estudantes do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Estado de Minas Gerais – UEMG –, de Belo Horizonte, que procura discutir o papel do zoológico em nossa sociedade por meio da questão sociocientífica: “o zoológico deveria existir?”
Em linhas gerais, as atividades têm por objetivo construir com as estudantes participantes uma posição mais fundamentada sobre o tema em questão. Não é esperado que, individualmente, essas estudantes tenham posição fechada, nem um consenso sobre os temas discutidos. No entanto, é importante que percebam a complexidade da temática, que envolve diversos pontos de vista e que busquem integrar as perspectivas morais, éticas, cientificas, econômicas, etc.
QUESTÕES SÓCIOCIENTÍFICAS
As questões sociocientíficas são questões sociais controversas, com ligações conceituais e / ou processuais com a ciência. Elas são problemas abertos, sem soluções claras. Essas soluções podem ser abordadas por princípios científicos, teorias e dados. No entanto, não podem ser completamente determinadas por elas. As questões sociocientíficas envolvem a formação de opiniões e a escolha de juízos pessoais e sociais; são necessariamente influenciadas por um conjunto de fatores sociais, que inclui política, economia e ética (SADLER, 2004).
Contudo, por que estudar o zoológico? Quais são as questões postas quando pensamos no papel do zoológico em nossa sociedade? Podemos colocar em xeque a existência dessa instituição?
Mullan e Marvin (1999) afirmam que ficaram surpresos com a pouca atenção dada pelas pesquisas em ciências humanas e sociais para a compreensão do zoológico, seja histórica, seja sociologicamente. Eles consideram que essa falta de interesse ocorre, pois “as pessoas consideram o zoológico uma instituição facilmente compreensível e essencialmente sem problemas, e a visita ao zoológico como um evento não problemático” (MULLAN; MARVIN, 1999, p. XVII). Acreditamos que essa concepção é comum para uma grande quantidade de docentes e para futuros professores.
A SEQUÊNCIA DE ENSINO: “O ZOOLÓGICO: CONSERVAÇÃO E PARADOXOS ÉTICOS”
A sequência de ensino é um conjunto organizado de atividades que envolve um certo número de aulas com conteúdos relacionados entre si. De acordo com Aguiar Jr. (2005), à medida que uma sequência de ensino se desenvolve, diferentes propósitos vão orientando as intervenções do professor e o modo como as atividades e os discursos são conduzidos na sala de aula. Nessa perspectiva, para o desenvolvimento do tema escolhido, elaboramos uma sequência de ensino que foi desenvolvida em dez aulas de 1h40 minutos. Os diferentes momentos do processo de compartilhamento de conhecimentos foram denominados em nossa sequência como fases de ensino. O Quadro 1 apresenta uma síntese da sequência.
Quadro 1 – Atividades realizadas na sequência didáticaFonte: elaborado pelos autores.
AVALIAÇÃO DA ATIVIDADE
Em nosso estudo, fizemos pequenas entrevistas com o objetivo de avaliar a sequência de ensino. As entrevistas não têm, pois, caráter científico no sentido de qualificar ou analisar os posicionamentos das estudantes em relação ao zoológico. Buscamos evidenciar as mudanças de posicionamento das estudantes durante o desenvolvimento da sequência de ensino para apresentar suas potencialidades de ensino e aprendizagem. Nas entrevistas, perguntamos: qual sua posição inicial sobre a existência do zoológico? Sua posição mudou depois das atividades? Se mudou, como?
Para analisar as mudanças ocorridas no posicionamento das estudantes em relação ao zoológico, utilizamos como referência o trabalho de Almeida (2008). Nessa pesquisa, a autora defende que os argumentos dos professores sobre a existência e utilização de jardins zoológicos são fundamentadas em três perspectivas: antropocêntrica, ecocêntrica e biocêntrica.
A perspectiva antropocêntrica, considera o zoológico como uma instituição que possibilita as pessoas entrarem em contato com a biodiversidade do planeta, contribuindo para a educação científica e a preservação de espécies em perigo de extinção. Além disso, os zoológicos são espaços de lazer e entretenimento, o que acarreta resultados positivos para o turismo das cidades (ALMEIDA, 2008).
Por outro lado, o ponto de vista ecocêntrico pondera que os zoológicos deveriam cumprir um papel central na redução dos impactos humanos na biodiversidade e nos ecossistemas, possibilitando uma melhor apreciação da diversidade biológica de seu país natal, em vez de dar destaque aos grandes mamíferos ou ao número e à raridade de espécies mantidas em cativeiro. Além disso, a visão ecocêntrica considera que só faz sentido a existência dos zoológicos se os benefícios dos programas de conservação e educação ambiental forem superiores ao custo, ao bem-estar dos animais cativos.
Finalmente, a perspectiva biocêntrica argumenta que os zoológicos “são instituições que servem a interesses estranhos aos animais que neles se encontram, já que restringem a sua liberdade e os seus comportamentos naturais” (ALMEIDA, 2008, p. 334). Portanto, segundo essa visão, o zoológico fornece um microcosmo de reconstrução artificial e preservação superficial da natureza, que falha em criticar as estruturas político-econômicas globais da exploração ambiental, reforçando a ilusão de espaço de conservação e educação ambiental enquanto a pilhagem global de habitats se intensifica.
Em nosso trabalho, realizamos quinze entrevistas com as estudantes do quarto período do curso de Pedagogia. A turma tinha um total de trinta e três estudantes. Na entrevista, analisamos as mudanças ocorridas no posicionamento das estudantes em relação ao zoológico e utilizamos nomes fictícios para garantir o anonimato das participantes. Começamos pelo relato da estudante Alice:
[Alice] – Minha posição inicial é de que, nos zoológicos os animais ficavam presos para o entretenimento humano. Mas os debates em sala de aula e a palestra no zoológico me fizeram mudar de posição. Na palestra, principalmente, eu vi que as pessoas que trabalham no zoológico têm muito cuidado com os animais, eles informaram que a grande maioria dos animais são oriundos do comércio ilegal e que eles não conseguem sobreviver soltos na natureza. Que existem estudos de reprodução de espécies ameaçadas em cativeiro e que se conheceu muito sobre esses animais porque eles estão no zoológico. Como eles falaram, o zoológico é um grande banco genético das espécies ameaçadas. Levando em conta esse papel que o zoológico exerce, hoje, eu sou a favor (Relato da estudante Alice).
Percebe-se no relato da estudante Alice que, inicialmente, ela apresentava uma argumentação mais próxima da perspectiva biocêntrica, mas, com a sequência de ensino, sua posição ficou mais próxima de uma perspectiva ecocêntrica.
Por outro lado, a aluna Helena inicialmente tinha uma posição antropocêntrica, mas, com as atividades, passa a uma posição biocêntrica:
[Helena] – Eu entendia o zoológico como um espaço de diversão, uma atração turística da cidade, gostava muito de ir lá quando era criança, mas, com as aulas, as leituras que tivemos e com as discussões com as colegas, minha posição mudou. Hoje eu acredito que o zoológico não deveria existir. Não vejo necessidade no zoológico, não gosto de ver os bichos sofrendo e, no zoológico, os animais não têm uma vida plena. Por melhor que sejam os recintos, os animais passam toda ou grande parte de suas vidas em cativeiro. Na visita que fizemos, me impressionou muito o chimpanzé. Ele me pareceu deprimido, estava em um canto, abatido e triste. Parecia uma pessoa muito deprimida. E aí, por mais que o pessoal do zoológico fale das pesquisas e dos projetos de conservação não acredito que a reintrodução de animais em cativeiro na natureza seja eficiente. Vimos que os resultados são duvidosos. Acredito que é mais uma desculpa para reproduzirem animais que na sua grande maioria irão ficar presos para o resto de suas vidas (Relato da estudante Helena).
A estudante Priscila também apresenta uma mudança da posição antropocêntrica para biocêntrica. Como se pode observar, o zoológico não era entendido como questão sociocientífica. A estudante só percebe as questões éticas, filosóficas e ambientais a partir do desenvolvimento da sequência didática. É importante notar que sua posição é biocêntrica, mesmo usando alguns argumentos ecocêntricos. Ela pondera:
[Priscila] – Quando começaram as aulas o zoológico, não era uma questão para mim. Eu não percebia como a questão era complexa. Com as aulas, isso mudou. Hoje tenho uma posição contra o zoológico. Acredito que deveriam existir santuários onde os animais pudessem ficar. Acho que, nos zoológicos, não deveriam ter animais de outros continentes. Se fosse para existir zoológicos, eles deveriam ter só animais do Brasil, os que não têm condições de voltar à natureza; e a visitação deveria ser bem controlada para não estressar os animais. Conversando com a acompanhante, ela falou que agora o zoológico está mudando o recinto das aves de rapina, pois elas ficavam em frente das outras aves. Imagina o estresse que essas aves ficavam vendo seu predador na frente dele (Relato da estudante Priscila).
Os relatos de algumas estudantes não demonstram mudança de posição, mas nos indicam posições mais fundamentadas após a realização da sequência didática. A estudante Isabela expressa essa situação, pois ela tinha uma posição mais próxima da visão biocêntrica e permanece na mesma posição:
[Isabela] – A minha posição como pessoa, na verdade, sempre foi a favor dos bichos. Acho que nenhum bicho tem que morrer para a gente se alimentar. Eu não como carne, sou vegetariana, nunca gostei de ver bicho sofrendo, e o fato deles estarem no zoológico, eles não estão no habitat natural [sic.] deles. Então, eu sempre tive meus questionamentos em relação ao zoológico, não tinha uma posição tão definida como pessoa, porque não tinha tanto conhecimento. Agora, depois dessa disciplina, só fez reforçar o que antes eu imaginava que não era certo. Apesar de todas as justificativas das pessoas que defendem o zoológico, eu não sou a favor dele, porque, para mim, cada animal tem que viver em seu habitat natural [sic.], minha posição é de que zoológico é cativeiro e nenhum ser vivo foi feito para viver em cativeiro. Eu, por isso, não vou ao zoológico e não levo meus filhos ao zoológico (Relato da estudante Isabela).
Por fim, o relato da estudante Renata expõe como a sequência de ensino possibilitou a mudança de posição várias vezes durante o andamento da disciplina. A discente parte de uma concepção antropocêntrica, muda para biocêntrica e, finalmente, termina em uma posição ecocêntrica, como podemos ver no relato a seguir:
[Renata] – Essa atividade do zoológico foi muito inquietante. Durante as aulas mudei de posição várias vezes. No início, tinha uma posição tão antropocêntrica, que pensava que não fazia sentido discutir o zoológico. Então teve aquele trabalho em grupo com as reportagens, percebi no debate com os colegas que a questão era polêmica. Nessa aula, fiquei sem saber se era contra ou a favor, depois teve o texto do Drummond e a aula sobre a evolução histórica do zoológico. Aí fiquei contra e, finalmente, a visita ao zoológico e a palestra da bióloga de lá e mudei de posição de novo. Hoje, eu penso que há zoológicos bons e zoológicos maus [sic.]. Têm zoológicos que têm todo um cuidado com os animais, que procuram trabalhar com preservação dos animais e a educação ambiental e têm outros zoológicos que apenas exploram e maltratam os animais. Assim, na minha posição, acredito que temos que conhecer o zoológico para dizer que somos a favor ou contra. Hoje sei que sou a favor do zoológico de Belo Horizonte (Relato da estudante Renata).
Consideramos, então, que, quando Renata afirma que “temos que conhecer o zoológico para dizer que somos a favor ou contra”, torna-se evidente sua posição ecocêntrica, uma vez que ela diz que a questão não é responder se é a favor ou contra a existência do zoológico, mas que essa resposta tem de ser embasada e discutida em relação a casos concretos. Nesse sentido, ela define uma posição pessoal quanto ao zoológico de Belo Horizonte, colocando que este seria um caso de zoológico ‘bom’.
É importante ressaltar que o trabalho não busca determinar ou rotular os posicionamentos finais das estudantes. Nessa análise, procuramos apresentar as mudanças ou permanências dos posicionamentos de estudantes sobre o tema com o objetivo de evidenciar o potencial didático da questão sociocientífica desenvolvida na sequência de ensino.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os zoológicos apresentam uma série de questões éticas, desde a questão básica da aceitabilidade moral de se manter animais em cativeiro até debates mais específicos como: as práticas de criação em cativeiro, o bem-estar animal, o potencial de educação ambiental e conservação dos zoológicos, a possibilidade de construção de banco genético de animais, a comercialização da vida selvagem, o mascaramento dos problemas ambientais, a exploração dos animais, entre outros. Tais pontos estão intimamente relacionados a nossas responsabilidades em relação aos animais em cativeiro, à conservação de espécies e à preservação dos ecossistemas. Nesse sentido, quando propomos o debate sobre o papel do zoológico em nossa sociedade e seus paradoxos éticos e científicos, estamos possibilitando, em sala de aula, a discussão sociocientífica, ou seja, como devemos nos comportar em relação aos parâmetros científicos e aos parâmetros éticos, ou mesmo, o que e como devemos opinar sobre esses parâmetros.
Refletindo sobre a atividade desenvolvida, inicialmente percebíamos basicamente duas posições majoritárias expressas pelas discentes. Um primeiro grupo via o zoológico como espaço de entretenimento e educação ambiental, não considerava as questões éticas, científicas e filosóficas envolvidas naquele espaço, não percebia os diversos “custos” para os animais em cativeiro. Frases como a de Priscila “Quando começaram as aulas, o zoológico não era uma questão para mim”, ou de Helena “Eu entendia o zoológico como um espaço de diversão, uma atração turística da cidade”, caracterizam esse grupo. Um segundo grupo, em menor número, apresentava uma posição crítica ao zoológico; as estudantes falaram do desconforto que sentiam quando visitavam um zoológico, vendo-os como locais de crueldade e maus-tratos, como podemos perceber nas afirmações de Isabela: “não vou ao zoológico e não levo meus filhos ao zoológico”, e Alice: “no início quando eu pensava no zoológico, o que me vinha em mente eram os maus-tratos com os animais”.
Acreditamos que o desenvolvimento da sequência de ensino possibilitou o desenvolvimento de uma questão complexa como tema central; o envolvimento de estudantes em processos de pensamento que explicitaram as dimensões científica, social, ambiental e ética e um processo de discussão e negociação que possibilitou o conhecimento ser compartilhado socialmente. A entrevistas mostram que os paradoxos éticos e científicos estão presentes nos discursos das estudantes. Frases como: “[…] o recinto do elefante, por exemplo, parece até grande, mas, na natureza um elefante anda quilômetros durante um dia”; “[…] o zoológico é um grande banco genético das espécies ameaçadas”; “[…] não acredito que a reintrodução de animais em cativeiro na natureza seja eficiente, vimos que os resultados são duvidosos”; e “Imagina o estresse que essas aves ficavam vendo seu predador na frente dele”, demonstram que para além das permanências e mudanças das estudantes, houve uma construção de argumentação que foi desenvolvida a partir das atividades. As discentes deram exemplos, ponderaram situações e se apropriaram das questões científicas, éticas em torno do zoológico. Por esse motivo, consideramos que tratar o zoológico como questão sociocientífica na formação inicial das futuras professoras da Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental pode potencializar ações de ensino e aprendizagem qualificadas e assertivas.
REFERÊNCIAS
AGUIAR JR., O. G. Módulo II: o planejamento do Ensino. In: MINAS GERAIS, SEE.
Projeto Escola Referência – Desenvolvimento Profissional de Professores, 27f. 2005.
ALMEIDA, A. Como se posicionam os professores perante a existência e utilização de jardins zoológicos e parques afins? Resultados de uma investigação. Educ. Pesquisa. São Paulo, v. 34, n. 2, p. 327-342, ago. 2008.
MULLAN, B.; MARVIN, G. Zoo Culture. Chicago: University of Ilinois Press, 1999.
SADLER, T. D. Informal reasoning regarding socioscientific issues: a critical review of research. Journal of Research in Science Teaching, Hoboken, v. 41, n. 5, p. 513-536, 2004.
Sou a Carla Da Silva, gostei muito do seu artigo tem muito
conteúdo de valor, parabéns nota 10.