Editorial |

FORMAR PROFESSORAS DE EDUCAÇÃO INFANTIL EM TEMPOS DE DESMONTE DE POLÍTICAS PÚBLICAS

Darcy Ribeiro, importante antropólogo brasileiro, em toda sua extensa vida acadêmica e política, nunca foi tão citado como nos tempos atuais. Mesmo quem nunca leu uma linha sequer de sua obra, na atualidade, o tem convocado para analisar a desordem no sistema carcerário – que se conforma apenas como um dos reflexos do caos político e administrativo que paira sobre nossa nação. Dizia ele, em tom quase profético, em uma conferência realizada em 1982 que “se os governadores não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios”. Parece que suas apocalípticas palavras preludiavam, além da crise do sistema carcerário, o colapso político e moral que nossa jovem, frágil e indefesa democracia sofre em tempos atuais. As palavras do antropólogo brasileiro são inspiradoras e também nos ajudam a compreender um pouco melhor a atual conjuntura política e seus efeitos, não muito benéficos, sobre a formação inicial e continuada de professores, em especial das professoras[1] de Educação Infantil. Não bastasse o pouco cuidado dedicado por nossos governantes à escola pública (em especial às instituições de Educação Infantil), menor ainda tem sido a atenção dispensada à formação de professoras que atuam na primeira etapa da Educação Básica pelo atual governo, cuja gestão é marcada muito mais por desgovernos do que por atos de gestão da res publica.

Num país onde se investe mais em presídios do que em escolas, formar professores – seja no âmbito da formação inicial ou continuada – sempre foi (e continua sendo) um grande desafio. Contudo, esse desafio se agrava ainda mais em tempos infaustos de desmonte de políticas públicas, que entre tantos outros setores da sociedade incidem diretamente sobre a qualidade da oferta de educação e cuidados destinados às meninas e aos meninos de até seis anos de idade em creches e pré-escolas.

A Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB), em parceria com o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Infância e Educação Infantil (Nepei) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), tem o prazer de apresentar este número especial dedicado à reflexão sobre os desafios da formação continuada de professoras de Educação Infantil em tempos de desmonte de políticas públicas.

No momento que observamos um enorme retrocesso em função da quebra da normalidade institucional que se instaurou no país com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, diferentes políticas públicas são esfaceladas por golpes, cada vez mais severos, do atual governo. Desse modo, é necessário reiterar que políticas consistentes de formação continuada não podem ser interrompidas. Nesse sentido, a apresentação deste número especial da RBEB, tratando especificamente dos desafios da formação continuada de professoras de Educação Infantil, conforma-se como estratégia de resistência aos desmandos do atual governo, que, entre inúmeras dimensões da vida social, insiste em sucatear, cada vez mais, a educação pública de nosso país.

É importante esclarecer a posição estratégica que o Ministério da Educação assumiu em gestões anteriores no que concerne à formação inicial e continuada de professores da Educação Básica e, nesse contexto, destacamos a relevância das ações do ministério no âmbito da formação de profissionais de Educação Infantil – área que historicamente foi ocupada por profissionais leigas, sem formação adequada e cuja identidade profissional nem sempre foi construída em consonância com o momento do desenvolvimento que as crianças vivenciam até os seis anos de idade (CAMPOS, 2008).

A título de exemplo, dentre as inúmeras ações de formação continuada que tiveram efeitos benéficos para a área da educação da criança de zero a seis anos promovidas pela gestão anterior do Ministério da Educação, cabe relembrar o curso de Especialização em Docência na Educação Infantil (DOCEI). Fruto das demandas e das reivindicações da Rede Nacional de Formação Docente Continuada da Educação junto ao Ministério da Educação, o curso foi desenvolvido por meio de uma parceria entre a Coordenação Geral da Educação Infantil da Secretaria da Educação Básica (SEB) do ME (na gestão do governo Dilma Rousseff) e diversas universidades públicas brasileiras, que se mobilizaram no sentido de garantir o direito das professoras de creches e pré-escolas a uma Política Nacional de Formação para os Profissionais de Educação Infantil, nas modalidades de Extensão, Aperfeiçoamento e Especialização, o que concomitantemente ratifica o direito das crianças de até seis anos de idade à educação pública e de qualidade.

A Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) definem e reconhecem a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica e direito das crianças de até seis anos de idade. Para que esse princípio legal seja efetivado, fez-se necessário a implementação de políticas públicas voltadas para a formação dos profissionais da área, nas quais o DOCEI se insere. Esse curso, promovido pelo Programa Nacional de Formação de Professores, da SEB, em parceria com vinte e oito Instituições Federais de Ensino Superior, assumiu importante papel na qualificação das professoras que atuam na Educação Infantil. O curso se inseriu no âmbito da Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, conforme o Decreto nº. 6.755/2009 (Id., 2009) e na Meta 16 do Plano Nacional de Educação (PNE) (Id., 2014, p. 12), que prevê formação de 50% dos profissionais em nível de pós-graduação na área específica em que atuam.

Nesta edição especial da RBEB, apresentamos um conjunto de artigos resultantes dos Trabalhos de Conclusão de Curso das professoras-cursistas da segunda edição do DOCEI da FaE/UFMG, realizado entre os anos de 2014 e 2015. Esses textos foram escritos por elas em parceria com seus/suas orientadores/as e, em certo sentido, refletem os efeitos dessa formação em diferentes dimensões das práticas de cuidados e educação destinadas às crianças de até seis anos de idade, seja na organização dos tempos e dos espaços de creches e pré-escolas, no respeito à diversidade no âmbito das instituições de Educação Infantil, no campo do reconhecimento do direito das crianças ao acesso à leitura e à escrita, no reconhecimento das especificidades da prática pedagógica com bebês e crianças pequenas ou, ainda, na implementação de políticas públicas de Educação Infantil nos âmbitos de alguns dos municípios envolvidos.

Também apresentamos uma esclarecedora entrevista com Rita Coelho – à época de realização do curso, uma das principais responsáveis pela gestão dessa política de formação de professoras de Educação Infantil –, na qual ela pontua os atuais desafios postos à formação continuada de professores que atuam em creches e pré-escolas país a fora. Apresentamos também um artigo de autoria de Marcia Aparecida Gobbi e Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento, no qual as autoras expõem importantes reflexões sobre o fechamento de creches universitárias, com atenção especial no caso das creches da USP, abrindo novas interpretações sobre o atual desmonte das políticas educacionais com foco no sucateamento das universidades públicas. Maria Cristina Soares de Gouvêa faz um convite à leitura no qual apresenta boas razões para as profissionais e pesquisadores da área da Educação Infantil conhecerem o livro Crianças, professoras e famílias: olhares sobre a Educação Infantil, organizado por Isabel de Oliveira e Silva, Iza Rodrigues da Luz e Maria Inês Mafra Goulart. Por último e não menos importante, na seção “Vídeo”, apresentamos uma produção fílmica de Ana Luisa Viana Pacheco intitulada Formação Continuada de Professoras da Educação Infantil: Proposta metodológica de formação colaborativa compartilhada em instituições de Educação Infantil, que, como o próprio nome já anuncia, traz importantes elementos para a organização de projetos de formação continuada, compartilhada e em serviço de profissionais que atuam em creches e pré-escolas. Importante destacar que o vídeo é um produto do mestrado profissional defendido pela autora no início deste ano e, nesse sentido, para além da qualidade do material por ela produzido, há que celebrar o avanço na trajetória dessa professora que, no plano simbólico, representa também uma conquista para área da educação infantil, pois conforme sugere a Pesquisa Trabalho Docente na Educação Básica Brasileira (OLIVEIRA e VIEIRA, 2010), a Educação Infantil concentra o maior número de docentes nas piores condições de exercício da profissão (baixo salários, jornadas mais extensas, fragilidade quanto ao vínculo empregatício e formas de contratação, etc.). Dito de outro modo, as professoras de Educação Infantil ainda possuem as carreiras menos estruturadas e piores condições de trabalho e salários.

Assim, para além do registro do processo de formação continuada vivenciado pelas professoras-cursistas no DOCEI, o conjunto dos textos que compõem esta edição da RBEB expressa nossa preocupação com a manutenção e a ampliação de ações e programas de formação continuada que atendam às especificidades da docência da e na Educação Infantil. Nesse sentido, compreendemos que: i) a Política Nacional de Formação Continuada para Docentes na Educação Básica, no que se refere à Educação Infantil, precisa manter cursos de Especialização na modalidade presencial, considerando que a Educação Infantil ainda possui o menor número de especialistas, quando comparado com as outras etapas da Educação Básica; ii) a Política Nacional de Formação Continuada para Docentes na Educação Básica, no que se refere à Educação Infantil, precisa manter outras ações em nível de aperfeiçoamento e extensão, abrangendo não apenas os docentes, mas também os demais profissionais que atuam na Educação Infantil, em prol da qualidade do atendimento às crianças; e iii) a Rede Nacional de Formação Docente Continuada da Educação Infantil necessita ter uma participação ativa na elaboração, na execução, no acompanhamento e na avaliação da Política Nacional de Formação, restabelecendo, de forma frequente e sistemática, a realização de reuniões técnicas e de Seminários Nacionais, a exemplo do que ocorreu em março de 2012, com agenda ainda em 2015.

Em suma, esperamos que a leitura desta edição da RBEB possa fomentar, em todos e todas, o desejo de lutar contra os desmontes descabidos das políticas públicas de educação, principalmente aquelas direcionadas às crianças e às instituições de Educação Infantil e suas profissionais, pois, do contrário, continuaremos a ter mais gastos com presídios do que com escolas, como sabiamente Darcy Ribeiro profetizou na década de 1980.

Boa leitura a todos e todas.

Ademilson de Sousa Soares

Sandro Vinicius Sales dos Santos

Editores convidados

 

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <https://goo.gl/oGldO6>. Acesso em: 20 abr. 2017.

______. Decreto nº 6.755, de 29 de janeiro de 2009. Institui a Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica, disciplina a atuação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES no fomento a programas de formação inicial e continuada, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 30 jan. 2009. Seção 1, p. 1.

______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez. 1996. Seção 1, p. 27833.

______. Ministério da Educação. Planejando a próxima década: conhecendo as 20 metas do Plano Nacional de Educação. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/pgoA0M>. Acesso em: 20 abr. 2017.

CAMPOS, M. M. Educar crianças pequenas: em busca de um novo perfil de professor. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 2, n. 2-3, p. 121-131, jan./dez. 2008.

CERISARA, A. B. Professoras de Educação Infantil: entre o feminino e o profissional. São Paulo: Cortez, 1996. (Coleção Questões da Nossa Época).

OLIVEIRA, Dalila Andrade de; VIEIRA, Lívia Maria Fraga. Tra¬balho docente na educação básica no Brasil. Belo Horizonte: GESTRADO/UFMG, 2010. (Relatório de pesquisa). Disponível em: http://www.gestrado.net.br/images/pesquisas/5/SinopseSurveyNacional_TDEBB_

Gestrado.pdf . Acesso em novembro de 2015.

[1]Usaremos o substantivo no feminino para evidenciar a dimensão de gênero que atravessa a docência da Educação Infantil (CERISARA, 1996).

This Post Has 2 Comments
  1. Parabéns, galera!
    Que revista bonita!!! Quanta coisa boa para ler!!!
    Parabéns à equipe inteira! Vou lê-la com muito gosto e prazer!

    Abraços,

    Joaquim

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