Brincar De Sonoridade RBEB N03

Brincar de sonoridade com bebês: Gesto, corpo e improviso

Cecília Vieira do Nascimento

Cecília Vieira do Nascimento

Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2001), Mestre em Educação pela Faculdade de Educação de Minas Gerais FaE/UFMG (2004) e Doutora em Educação pela FaE/UFMG (2011). É professora efetiva do Centro Pedagógico da Escola de Educação Básica e Profissional da UFMG desde 2011. Tem experiência nos anos iniciais do Ensino Fundamental e, como pesquisadora, vem se dedicando aos estudos sobre escolas de aplicação, gênero, infância e leitura.

E-mail: ceciliavinas@gmail.com

Daniela Lacerda Vitório Araújo

Daniela Lacerda Vitório Araújo

Graduada em Pedagogia pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC (2009) e Pós-graduada em Docência na Educação Infantil pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (2015). Professora efetiva da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, MG, desde 1992, atualmente é Referência Técnica da Regional Pedagógica de Educação Infantil da Rede Pública. Tem experiência em coordenação pedagógica e direção pedagógica na Educação Infantil.

E-mail: dany.lacerda@hotmail.com

A musicalização tem sido amplamente utilizada na escola como objeto lúdico e expressivo, e também por representar um meio de estabelecer vínculos interpessoais e fomentar a socialização.

Gardner (2002) define que a inteligência musical é a primeira inteligência humana demonstrada na vida social, pois todas as crianças, inclusive as com algum problema no desenvolvimento auditivo, ao saírem do útero materno descobrem o mundo por meio de ruídos e sons do ambiente em que vivem a partir das vozes da mãe e demais familiares. Em função disso, a educação apresenta a música como maneira de desenvolver habilidades e competências humanas, com devidos cuidados em relação às crianças com alguma deficiência auditiva.

Partindo desse entendimento, foi desenvolvido um estudo a partir do desejo de ampliar práticas de trabalho com sonorização com crianças de 0 a 1 ano no berçário da UMEI São João Batista, em Belo Horizonte (MG),  que teve como objetivo enriquecer o universo do trabalho utilizando sonoridades com essas crianças, bem como observar e compreender como os bebês se relacionam com propostas que envolvam sonoridades, e identificar formas de trabalho com sonorização/musicalização para crianças de 0 a 1 ano.

Para realizar os encontros e entender os processos investigativos foram necessários alguns instrumentos, como o exercício de agachamento, que, segundo Machado (2010), significa agachar-se para compreender a criança em seu ponto de vista; produção de registros em um diário de bordo e criação de um mapa interpretativo.

O mapa interpretativo foi elaborado a partir do estudo do mapa do brincar (MACHADO, 2010). Machado criou o desenho “A flor da vida”, em que cada pétala foi construída pelos chamados “existenciais”, que são: outridade (relação criança-outro); corporalidade (relação criança-corpo); linguisticidade (relação criança-língua); temporalidade (relação criança-tempo); espacialidade (relação criança-espaço); e mundaniedade (relação criança-mundo). Com esses termos, Machado (2010) criou um mapa do brincar, que serviu de base para a elaboração do mapa da sonoridade de zero a um ano, reproduzido na Figura 1.

Figura 1– Mapa da sonoridade de zero a um ano

 

 Fonte: Elaborado pela autora Emanuela Bonutti.

O mapa da sonoridade de zero a um ano foi construído a partir das anotações registradas no diário de bordo. A redação processual das atividades realizadas com as crianças possibilitou a leitura e releitura dos encontros, que viabilizou a análise e compreensão de como os bebês se relacionaram com propostas que envolviam sonoridades.

Para ir além de um processo mecânico, a sequência didática sobre sonoridade/musicalidade realizada em oito encontros na turma do berçário teve como suporte o curso Música na Escola Regular, Projeto Integrado do Centro de Musicalização Infantil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Conforme visto no curso, é importante que o professor que trabalhará com musicalização seja capaz de compreender os parâmetros musicais – altura (grave-agudo); duração (curto/longo); timbre (particularidades específicas do som) e intensidade (som que se define mais forte ou mais fraco) ao iniciar os estudos musicais.

Os oito encontros tiveram como sequência didática atividades de pintura no tecido acompanhada de música, dança com uso do lençol, circuito com pufes e tapetes, potinhos de iogurte com objetos formando pares sonoros, brincadeira de estátua, sons de animais e natureza com uso de um dado com imagens destes, instrumentos musicais, como o pandeiro pastoril, surdo mor, surdo grande, castanhola, afoxé, agogô, chocalho, sino, manzá e maracá. Todos os encontros foram realizados com auxílio de músicas instrumentais do álbum O carnaval dos animais, de Camille Saint-Saëns (1996) e do CD do Grupo Serelepe, da Escola de Belas Artes da UFMG.

Os registros no diário de bordo, estudos sobre mapa interpretativo e a produção do mapa da sonoridade possibilitaram a reflexão e elaboração de três categorias: concepções da infância e seus reflexos na educação musical; brincar e dançar na primeira infância; os balbucios típicos dos bebês.

CONCEPÇÕES DA INFÂNCIA E SEUS REFLEXOS NA EDUCAÇÃO MUSICAL

A Infância é uma etapa muito importante na formação como um todo, a noção de infância nessa perspectiva vem sendo construída historicamente e tem mudado em diferentes sociedades ao longo do tempo. Como discutido no Referencial Curricular Nacional para Educação Infantil (RCNEI) (BRASIL, 1998a), acreditava-se que a criança não tinha voz, não sabia se expressar, era um ser incompleto, versão em miniatura do adulto, ou apenas um futuro adulto.

Atualmente, as crianças estão inseridas na sociedade, com sua organização e cultura já definidas. O RCNEI (BRASIL, 1998a) aborda que é nesse meio social que elas se desenvolvem e se tornam protagonistas, atuando na sociedade e recriando-a a todo momento.

Compreendendo a criança nessa perspectiva, entendemos a necessidade da estruturação de um contexto favorável a seu desenvolvimento e sua aprendizagem, com profissionais da educação que se encarreguem de propor intervenções pedagógicas que reconheçam na criança sua capacidade de atuar e colaborar na configuração das atividades cotidianas. Isso não é diferente nas intervenções pedagógicas voltadas para a linguagem das sonoridades e da musicalização.

No processo educativo dos bebês, podendo ser também o processo musical, Ramos e Rosa (2012) enfatiza que o educador tem um papel importante em promover atividades desafiadoras que possam

ao mesmo tempo investigar e registrar os vários aspectos da trajetória das crianças, para contribuir na resolução de diversas situações-problema que se apresentam no cotidiano, promovendo avanços e aprendizagens cada vez mais complexas. (Ibid., p. 91)

Os estímulos sonoros ajudam e influenciam também o desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo. Como as crianças de 0 a 1 ano de vida ainda não possuem código de fala, os movimentos do corpo e emoções são importantes para o entendimento do professor sobre como os alunos estão interagindo consigo, com os materiais e com outras crianças, como pode ser visualizado na Figura 2.

Figura 2: Brincando com os sons

Fonte: Registros feitos pela autora Emanuela Bonutti.

É importante pensar na criança como sujeito ativo, construtor de suas relações sociais, tendo a infância como uma experiência principiante aberta à novidade, criação, aberta à transformação de si mesma e das relações que se estabelecem na experiência coletiva. Na educação musical, o bebê se envolve no aprendizado mediado pelo adulto, bastando para isso que se organizem e possibilitem situações capazes de mobilizar seu interesse, o que leva ao surgimento de um ambiente agradável e convidativo à exploração.

BRINCAR E DANÇAR NA PRIMEIRA INFÂNCIA

Através da elaboração e análise do Mapa da sonoridade de zero a um ano, foi possível perceber a importância de explorar e brincar com sons, ouvir músicas, realizar brincadeiras com ritmose movimentar o corpo. Além de ser muito prazeroso, isso pode despertar na criança o gosto pela música. Para isso, a brincadeira é fundamental.

Brincar é uma das atividades fundamentais para o desenvolvimento da identidade e da autonomia. O fato de a criança, desde muito cedo, poder se comunicar por meio de gestos, sons, e mais tarde representar determinado papel na brincadeira faz com que ela desenvolva sua imaginação. Nas brincadeiras as crianças podem desenvolver algumas capacidades importantes, tais como a atenção, a imitação, a memória, a imaginação. (BRASIL, 1998a, p. 22)

Se observarmos uma criança enquanto brinca, certamente a entenderemos melhor, entraremos em sua realidade, pois a brincadeira é seu momento de grande expressão. A criança também agrega às brincadeiras sons, músicas e manuseio de objetos sonoros. A pré-produção, ou seja, o planejamento de como será desenvolvida a atividade escolar, além da preparação dos materiais necessários, é importante e não pode ser diferente com crianças pequenas, principalmente bebês.

A vivência musical/sonora e lúdica através de brincadeiras é uma maneira de oportunizar às crianças a expressão de suas ideias e sentimentos. O processo de musicalização dos bebês começa com ações espontâneas, e é por meio do contato com toda a variedade de sons do cotidiano que bebês vivenciam este processo.

Momentos prazerosos para os bebês puderam ser percebidos nos sorrisos, batidas de palmas, olhares curiosos, e balançar do corpo. As interações foram intensas, cada um sentiu e participou a sua maneira, percebendo a música e brincando com curiosidade voltada aos sons, uns com os outros e com objetos, como ilustrado na Figura 3.

 Figura 3: Grandes momentos

 

Fonte: Registros feitos pela autora Emanuela Bonutti.

Um fator importante está relacionado ao cuidado com a forma de falar com bebês ao convidá-los para brincar com sons, pois como afirma Parizzi (2006), através da forma como falamos com bebês compartilhamos com eles o que a autora chama de alfabeto pré-linguístico, utilizando alterações de timbres, altura e contornos melódicos, mudanças de intensidade e de acentuações; padrões temporais e rítmicos específicos (Ibid., p. 41). Esses recursos, que são próprios da música, são utilizados em nossas falas dirigidas aos bebês como também nos sons vocais produzidos por eles.

OS BALBUCIOS TÍPICOS DOS BEBÊS

Não há aqui o objetivo de discutir a questão das deficiências auditivas. Isso exigiria maior aprofundamento da pesquisa. Nas atividades desenvolvidas os bebês escolheram explorar os sons vocais como se estivessem se preparando para o exercício da fala. Tomando como base os estudos de Parizzi (2006), há três níveis de especialidades vocais, os quais a autora chama de expertise vocal, e que surgem no desenvolvimento pré-verbal dos bebês.

O primeiro é observado a partir dos dois meses de vida.  É o nível de modulação melódica, ou seja, variação de tonalidade de qualquer som. A vocalização do bebê depende de sua respiração, eles emitem vogais como seus primeiros sons melódicos vocais. Esses sons são importantes nas brincadeiras vocais das crianças, incentivadas pelos adultos. Durante seu crescimento, irá representar vocalizações diferentes da fala, que são consideradas canções (Ibid.).

O segundo nível se inicia em torno dos quatro meses de vida, como uma sonda, ou investigação vocal. O bebê brinca com a voz utilizando-se de variações dos parâmetros sonoros (timbres, alturas e intensidades). De acordo com Parizzi (2006, p. 15), o balbucio musical comum nessa fase está relacionado ao fascínio da criança pelo som, ao prazer de dominá-lo e controlá-lo. Como o bebê gosta de brincar com sua voz, ele é capaz de repetir ou modificar sons descobertos.

Essa investigação vocal atinge o auge por volta do sexto e sétimo mês de vida, seguindo o crescimento e desenvolvimento da aquisição da fala e também da capacidade de cantar. Ainda nesta fase, Parizzi (2006) explica que o comportamento do bebê com a intenção de chamar atenção do adulto pode ser considerado uma primeira forma de manifestação de sua identidade social como membro de um grupo.

O terceiro e último nível, segundo Hanus e Papousek (apud PARIZZI, 2006, p. 42) se define como balbucios cacônicos, e caracterizam-se pela repetição de sílabas como presenciado nos balbucios de ALI, “bubu, bubu, bubu”, no oitavo encontro da sequência didática. Para Parizzi (2006) essa etapa é considerada de grande importância no desenvolvimento da fala, que se inicia por volta dos sete a onze meses de idade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sonoridades e músicas fazem parte da nossa vida, estamos rodeados por uma infinidade de sons intercalados com o silêncio. Estes se tornam significativos à medida que impulsionam nossas experiências, convivência e interação com o meio. Os primeiros contatos com os sons são o ponto de partida para a linguagem musical:

A música é a linguagem que se traduz em formas sonoras capazes de expressar e comunicar sensações, sentimentos e pensamentos por meio da organização e relacionamento expressivo entre o som e o silêncio. (BRASIL, 1998b, p. 45)

De acordo com o RCNEI (BRASIL, 1998b), a sonoridade/musicalização possibilita o envolvimento, vivência, experimentação, expressão, imitação, criação e imaginação da criança pequena, inclusive de crianças que apresentam necessidades especiais. A escola é um espaço privilegiado para a promoção dessas experiências, e o professor pode atuar como estimulador e parceiro da criança frente ao universo de possibilidades chamado Educação Musical.

Uma forma de trabalho com sonorização/musicalização para e com crianças de 0 a 1 ano na UMEI São João Batista foi por meio do corpo e movimento, algo que influenciou no aprendizado sobre ritmo. As atividades permitiram aos bebês terem experiências com brincadeiras de imitação e criação, escuta de canções de diversos sons, produção de sons, manuseamento de objetos sonoros e instrumentos musicais e o uso da voz;  momentos ricos que ocorreram em um espaço amplo e na própria sala de aula, garantindo a locomoção e a expressão do corpo com liberdade, possibilitando o manuseio de instrumentos musicais e a expressão corporal de bebês e crianças, promovendo prazer e educação musical.

Um grande aprendizado desse trabalho partiu do fato de que conhecer um bebê é ter curiosidade sobre ele.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Aprendizagem. In: ______. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998a. v. 2. p. 21-26.

______. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Música. In: ______. Referencial curricular nacional para a educação infantil. Brasília, DF: MEC/SEF, 1998b. v. 3. p. 43-82.

GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artmed, 2002.

GRUPO SERELEPE. CD Locotoco. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da UFMG, 2014. 1 disco.

MACHADO, M. M. Implicações do pensamento merleau-pointiano no âmbito da educação infantil. In: ______. Merleau-ponty e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

PARIZZI, M. B. O canto espontâneo da criança de zero a seis anos: dos balbucios às canções transcendentes. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 14, n. 15, p. 39-48, 2006.

RAMOS, T. K. G.; ROSA, E. C. S. Os saberes e as falas de bebês e suas professoras. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SAINT-SAËNS, C. Os grandes clássicos: sinfonia n°3 O carnaval dos animais.[EDICIONES DEL PRADO], 1996. 1 CD. Orquestra

ARAÚJO, Daniela Lacerda Vitório, NASCIMENTO, Cecília Vieira. Construção de instrumentos de avaliação na Educação Infantil. (Belo Horizonte, online) [online]. 2017, vol.2, n.3. ISSN 2526-1126. http://pensaraeducacao.com.br/rbeducacaobasica/wp-content/uploads/sites/5/2019/05/3-CONSTRUÇÃO-DE-INSTRUMENTOS-DE-AVALIAÇÃO-NA-EDUCAÇÃO-INFANTIL.pdf

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