Diversidade cultural no livro didático utilizado em uma Escola quilombola
Wesley Santos de Matos
Professor de História da Rede Estadual de Ensino da Bahia. Mestrando em Relações Étnicas e Contemporaneidade- UESB
wsleyxdmattos@hotmail.com
Benedito Eugenio
Doutor em Educação (UNICAMP). Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
beneditoeugenio@bol.com.br
Introdução
Neste artigo tecemos uma discussão acerca da diversidade cultural presente no livro didático empregado em uma escola quilombola localizada na área rural do município de Wenceslau Guimarães (BA). Os livros didáticos utilizados nos anos iniciais fazem parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) Campo. O artigo é resultado de uma pesquisa exploratória. Aqui apresentamos a análise de um desses livros empregados na escola quilombola estudada.
Apresentando a obra analisada
O livro didático desempenha papel importante no currículo da escola brasileira, conforme demonstram, dentre outros, Eugenio e Correia (2016), Silva (2011), Almeida (2013). Foi analisado o livro Culturas e Regiões do Brasil, livro regional, e que abrange Arte, Cultura, História e Geografia, cujos autores são Kátia da Silva Santos; Livia Lima Paiva e Roberto Brait Júnior. Esse livro foi selecionado para as escolas do campo por meio do PNLD, campo para o triênio 2016-2018.
A obra em foco está organizada em seis capítulos. O capítulo 1, intitulado “Quilombolas do vale da Ribeira”, traz a discussão sobre algumas comunidades quilombolas paulistas. As imagens retratadas no livro mostram os quilombos ainda como comunidades isoladas da sociedade, além de não discutirem as diversidades de tais comunidades existentes no Brasil.
O livro ainda contém inúmeros silenciamentos quando deixa de mencionar as expropriações pelas quais os quilombolas foram e ainda estão submetidos; os problemas com os grandes latifundiários; as demarcações que sempre encontram entraves nos órgãos estatais; a falta de condições mínimas necessárias para o desenvolvimento, mesmo tendo nos últimos anos crescido a quantidade de políticas públicas voltadas para essas comunidades. Os quilombolas são apresentados de forma romantizada, vivendo em regime de cooperação no seu espaço, como se não houvessem conflitos e embates pela manutenção do território e de seus modos de vida.
O capítulo 2 da obra trata dos povos indígenas do parque indígena do Xingu. Os povos indígenas são tratados de forma homogênea, pois o livro não deixa evidente para os estudantes a diversidade de grupos indígenas existentes no Brasil; mostra o índio de forma caricato e isolado do contexto, um índio romantizado e ainda vivendo em regime de isolamento do mundo exterior.
Retrata os costumes desse povo e o trato com a terra, mas não evidencia que na atualidade temos povos indígenas vivendo próximos ou até mesmo nos centros urbanos. Detectamos um material que não articula as situações de descaso e abandono pelas quais os indígenas vêm sofrendo no Brasil, tais como os grileiros que ameaçam seus territórios e sua sobrevivência.
O livro didático foca sua atenção nos povos indígenas da região centro-oeste brasileiro e com isso fecha as possibilidades para que os educandos conheçam as histórias de outros povos indígenas de várias regiões do país e, em particular, do Nordeste do Brasil. É preciso informar aos estudantes que comunidades indígenas estão presentes em diferentes Estados da Federação.
O capítulo 3 retrata o sertanejo brasileiro sob o viés dos estereótipos, a sua luta incansável contra a seca e os problemas enfrentados em decorrência da seca. Entendemos que mostrar as dificuldades é algo positivo, no entanto, é preciso atentar-se para que imagens e textos não induzam o estudante a construir uma representação negativa do homem nordestino.
Para Santomé (1995), as instituições educacionais são um dos lugares mais importantes de legitimação dos conhecimentos, procedimentos, destrezas e ideias de uma sociedade ou, ao menos, das classes e dos grupos sociais que possuem parcelas decisivas de poder, assim sendo nos parece que o material em tela caminha neste sentido.
As festas culturais ganham um enfoque que beira o folclore. Fica evidente nas imagens a constante vida de miséria do sertanejo, imagem que de forma subliminar o livro didático reforça a todo o momento. A obra traz algumas imagens que mostram avanços no combate à seca e à escassez de alimentos, mas esses avanços, quando são discutidos no livro, carregam consigo o agronegócio como promotor do desenvolvimento do sertão. Posto como está, o livro retira o protagonismo do sertanejo como homem trabalhador, que trava todos os dias suas lutas e vive seus dilemas, assim como o papel dos movimentos sociais do campo na luta contra o agronegócio e a grilagem.
A imagem projetada por Euclides da Cunha acerca do sertanejo, ou seja, “um retardado, um homem atrasado em relação ao relógio que marcava o tempo da civilização” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007, p. 65), ainda encontra-se presente no imaginário e no discurso, construindo a imagem do caipira que se perpetua na escola por meio do livro didático.
Ao tratar dos caiçaras e jangadeiros, são tratadas algumas dificuldades dos pescadores, contudo, não se problematiza as questões enfrentadas por esse coletivo, como a pesca industrial e a pesca predatória. As imagens ainda permanecem dando um enfoque folclorizado e permeado de estigmas, camuflando os reais problemas enfrentados pelos caiçaras e jangadeiros. Assim como nos capítulos anteriores, as discussões se restringem ao nível da superficialidade, praticamente inexistindo o questionamento dos reais problemas enfrentados por esses grupos minoritários.
As imagens que enfocam o homem do campo estão carregadas de preconceitos, retratando esta população como inerte no tempo, com o fogão a lenha; figura um caipira que vive no campo descontextualizado, enquanto que na outra ponta mostra uma agricultura moderna, revitalizada, em que o agronegócio é a mola propulsora do desenvolvimento.
As imagens e textos são produtores de discursos e representações, sendo fundamentais para propiciar ao estudante possibilidades variadas de leituras. Assim, é importante que as imagens não sejam apenas apêndices no livro didático, mas contribuam com a produção do conhecimento nas diferentes disciplinas curriculares.
Texto e imagens assumem posições opostas em quase toda a obra, se por um lado o texto sai na defesa, ainda que tímida, dos grupos subalternizados, as imagens reforçam os interesses dos grupos dominantes, além de reforçar os conceitos e preconceitos cristalizados na sociedade vigente, desse modo “o conhecimento se legitima como instrumento de justificação de um discurso de poder” (PEREZ GOMEZ, 2001, p. 140).
Encontramos no capítulo 6 do livro didático em análise a confirmação dos estereótipos acerca dos coletivos minoritários. O discurso presente nas imagens dos ribeirinhos e do produtor rural podem contribuir para uma interpretação desses sujeitos como parados no tempo, como alguém “atrasado”. Apesar de abordar os problemas enfrentados pelos constantes desmatamentos na Amazônia, o livro não aborda os desdobramentos e os impactos desses fatores sobre essas comunidades. Novamente percebemos que a superficialidade permeia os conteúdos em questão.
Parece-nos que o livro traz essas temáticas mais com o caráter informativo. No entanto, entendemos que para além da informação, é necessário a contextualização e o debate dos reais problemas que essas comunidades enfrentam todos os dias.
Dessa forma, percebemos que o material aqui analisado procura evidenciar uma educação diferenciada, mas ainda não aborda com o devido rigor conceitual a heterogeneidade dos grupos sociais retratados. Assim, a análise do livro didático continua a nos fornecer elementos importantes para discutir a diversidade cultural no espaço da escola.
Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as fronteiras da discórdia. São Paulo: Cortez, 2007.
ALMEIDA, Livia J. “Velhos problemas, novas questões”: uma análise dos discursos raciais na política nacional do livro didático. 2013, 180p. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação. Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2013.
EUGENIO, Benedito; CORREIA, Marisonia F. Os usos do livro didático no currículo praticado na alfabetização. Revista de Ensino, Educação e Ciências Humanas, Maringá, v. 17, n. 2, pp.186-193, 2016.
PÉREZ GÓMEZ, A I. A cultura escolar na sociedade neoliberal. Porto alegre: ARTMED Editora, 2001.
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