Entrevista | Raniere Almeida
A escola de Ensino Médio em Tempo Integral Simão Ângelo, localizada na cidade de Penaforte, Cariri cearense, realiza investigações dentro do ambiente escolar conduzidas pelo professor Raniere de Carvalho Almeida e pelos estudantes da mesma instituição.
Sabemos que são muitos os desafios do registro, circulação das investigações e reflexões dos professores, entre eles a falta de tempo, as condições institucionais e a formação em relação aos modos de divulgação científica.
Entretanto, o professor Raniere Almeida, um dos autores do texto “Sustentabilidade na escola: um estudo situacional”, bem como do texto “Esportes de aventura na escola: análise de sua viabilidade“, publicado na edição anterior, vem realizando investigações na escola, com outros professores e com os estudantes.
Nessa entrevista com o professor Raniere Almeida, vamos conhecer os modos de fazer investigação, socializar experiências, dialogar com pares e contribuir para o debate de questões importantes, como a sustentabilidade por meio da escola.
RBEB: Professor Raniere Almeida, como foi conduzida a investigação da produção de índices de sustentabilidade para as escolas contempladas no estudo durante o período de isolamento social?
Raniere Almeida: Como professor pesquisador, confesso que me senti desafiado e ao mesmo tempo motivado. O processo de investigação e construção da pesquisa científica no âmbito escolar surgiu da necessidade de avaliar em conjunto com os estudantes/orientandos o nível de sustentabilidade ambiental da instituição em que estudam (Escola Estadual Simão Ângelo), além de compará-la a uma escola pertencente à rede municipal de ensino (Joaquim Pereira Lima), onde os mesmos discentes estudaram o ensino fundamental e atua o prof.º Ricardo de Macedo Machado, coautor da pesquisa. A ideia da investigação científica surgiu em meio à pandemia da covid-19, que suscitou uma maior preocupação da sociedade com as questões ambientais, inclusive no meio escolar, que diariamente concentra um expressivo número de sujeitos de diferentes territórios, culturas e identidades. Penaforte, por ser um município fronteiriço, recebe diariamente discentes e docentes de várias localidades rurais e urbanas da região Sul do Cariri cearense e Sertão pernambucano.
Inicialmente, realizamos reuniões online com o suporte do Google Meet e WhatsApp, a fim de definirmos o objeto da pesquisa, seus objetivos, a metodologia e o cronograma. Em seguida, buscamos fontes bibliográfico-documentais de acesso público em repositórios virtuais como o Google Scholar, a fim de embasarmos seu referencial teórico, os resultados e discussão. Esses materiais foram analisados e selecionados em reuniões virtuais com a participação dos orientandos. Estabelecemos um conjunto de 11 indicadores relacionados a questões ambientais na escola, assim como uma escala alfanumérica com 5 níveis, validada por docentes. O questionário de opinião foi aplicado online com o suporte do Google Forms, sendo o link compartilhado com 20 pessoas (discentes, docentes, gestores e funcionários) das duas escolas pesquisadas. Já os registros fotográficos foram realizados presencialmente, seguindo os protocolos de biossegurança (máscara, álcool gel, etc), com a autorização dos diretores.
As tecnologias digitais de informação e comunicação foram ferramentas essenciais no processo de investigação científica, entre elas, as aplicações do G-Suite. Os sujeitos convidados a participar da pesquisa de opinião foram contatados previamente pelos orientandos via WhatsApp, sendo informados sobre seu propósito e procedimento metodológico. Estes aceitaram participar voluntariamente, sendo preservada sua identidade, respeitando-se os preceitos éticos contidos no Art. 1º, parágrafo único, da Resolução CNS/MS 510/2016. A construção dos indicadores de sustentabilidade tomou como base aspectos ambientais comuns nas escolas, que integram sua rotina. Já a escala adotou o modelo Likert, indo de 0 a 100%, possibilitando mensurar/atestar o nível de sustentabilidade de cada instituição a partir das respostas dos participantes, seu cruzamento com fontes que abordam a temática e análise exploratório-descritiva básica. Após concluído o estudo, seus resultados foram socializados em e-banner junto à comunidade escolar.
RBEB: No artigo, você considera o trabalho inédito por fazer dialogar o “plano micro (escolar) ao macro (municipal), servindo como subsídio para outras pesquisas que contemplem o mesmo objeto, referente à sustentabilidade ecológica na escola”. Eu acrescentaria que o artigo pode contribuir para o debate público sobre sustentabilidade no estado do Ceará e no país.
Qual é a sua concepção do papel da escola sobre temas debatidos na esfera pública como sustentabilidade?
Raniere Almeida: Tenho a certeza de que a escola, enquanto instituição educacional e comunidade de aprendizagem, detém, entre seus papeis fundantes, a construção e difusão do conhecimento diluído em competências e habilidades como pressuposto para a mudança atitudinal dos sujeitos que a compõem: discentes, pais/responsáveis, professores, funcionários, gestores e a sociedade civil como um todo no que tange aos diferentes aspectos e fenômenos societários, a exemplo da questão ambiental que a envolve/cerca, estando imbricada no centro da sociedade e suas discussões, tendo alcançado visível notoriedade mundial, tanto pelos desastres ambientais recorrentes no planeta quanto pelo alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). O fazer científico no “chão da escola” suscita discussões em diferentes esferas como a pública, auxiliando na definição de políticas destinadas à coletividade.
O tema sustentabilidade, além de relevante do ponto de vista socioambiental e educacional, está contido nos principais documentos que norteiam a construção do currículo escolar e as práticas pedagógicas de modo transversal e interdisciplinar no âmbito da educação básica brasileira, entre eles a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tanto nas escolas públicas quanto privadas das redes federal, estadual e municipal, devendo as instituições de ensino e a sociedade reconhecerem sua importância para a manutenção da vida enquanto bem comum. A escola pode e deve encabeçar o debate sobre sustentabilidade. Ao sensibilizar seus atores sociais, torna-os capazes de resistir/insurgir sobre o sistema neoliberal, que preza pelo capital em detrimento da vida.
O artigo em evidência reconhece o papel da sustentabilidade, que traduz em poucas palavras a manutenção de todo e qualquer processo, não só ambiental como educacional, cultural, econômico, entre outros. Muitos sujeitos concebem-na de forma errônea, limitando sua abrangência a questões ambientais, apesar de haver forte relação. Ser sustentável é respeitar os limites da natureza, seus recursos e processos humanos, sobretudo o direito das gerações atuais e futuras a uma vida digna. Sem sustentabilidade não há continuidade ou permanência. Portanto, é algo relevante que deve ser visto com bons olhos, especialmente pelo poder governamental, principal promotor das políticas públicas. O trabalho de iniciação científica sobre sustentabilidade na escola tende a suscitar novas discussões não só no plano micro, incentivando, por exemplo, a criação de políticas de estado.
RBEB: O artigo publicado nesta edição conta com a coautoria e participação de estudantes e de um professor de outra instituição, Ricardo de Macedo Machado, professor na Escola Joaquim Pereira da mesma cidade. Entretanto, um dos desafios do fazer científico é justamente dialogar com pares de um campo de conhecimento, fazer ciência cidadã e com a comunidade.
O que você considera importante para que possamos fazer ciência também na escola, com diálogo entre pares e contribuindo para o debate público?
Raniere Almeida: Considero que o fazer científico é um dos pressupostos da educação integral e integrada em uma perspectiva libertadora, promotora da cidadania, que valorize os sujeitos, suas experiências/vivências e o contexto situacional em que estão inseridos, favorecendo seu protagonismo. A escola é vista como um campo propício e ao mesmo tempo fértil para a construção de saberes e fazeres arraigados de significância política, promovendo um diálogo crítico e constante entre seus atores e a sociedade nos planos micro e macro com o intuito de transformar a realidade social através da educação. A inter-relação dialógica e interdisciplinar entre o professor pesquisador, seus pares (colegas) e os sujeitos envolvidos no estudo é o primeiro passo para o sucesso da investigação científica, pois onde há diálogo pairam ideias, dúvidas, questões e hipóteses, que culminam como o ponto de partida da pesquisa.
A união de indivíduos com distintos pensamentos é um atributo que fortalece o fazer científico na escola, tornando colaborativa e participativa a construção do conhecimento. Na Escola Simão Ângelo, os docentes buscam dialogar sobre suas práticas, além de compartilharem experiências dentro e fora da sala de aula com seus pares, que, por sua vez, atuam – em sua maioria – em outras instituições, a exemplo da Escola Joaquim Pereira Lima. Esse intercâmbio didático-pedagógico não só favorece o processo de ensino-aprendizagem, como a produção intelectual (científica) e o debate público sobre temas como meio ambiente, educação ambiental e sustentabilidade, contribuindo para um fazer científico engajado, comprometido com o social em sintonia com a realidade e contexto em que estão inseridas as instituições e os sujeitos. O diálogo proximal entre docentes, discentes e toda comunidade escolar faz germinar a semente da aprendizagem significativa, cidadã, libertadora.
A escola é um campo de debates e embates, existência e resistência, por despertar a pluralidade de concepções e ideias, quer sejam antagônicas e/ou complementares, arraigadas de saberes, culturas e identidades. O diálogo entre os mestres tende a aproximá-los, buscando-se um denominador comum, a exemplo do fazer científico, onde todas as inspirações se convergem em conhecimento, alcançando o “estado da arte”. Esse processo dialógico deve permear o ensino-aprendizagem, que culmina com o fazer científico, não se limitando a uma área do conhecimento, mas abrangendo todas que mantenham relação quanto à temática estudada, gerando a interdisciplinaridade. Esta caracteriza-se como um desafio para a educação básica e também superior, que ainda mantém um “abismo” entre o que se prega e pratica em sala. O tema sustentabilidade, por exemplo, é reduzido por muitos docentes à área de Ciências Naturais, quando na verdade dialoga/interage com todas, um fato recorrente que exige maior debate público.
RBEB: Por fim, você gostaria de contribuir para que outras professoras e professores realizem ciência? O que considera importante para que a escola seja um espaço de investigação, diálogo e reflexão conduzida por professores?
Raniere Almeida: Não só gostaria de contribuir para que outros/as professores/as realizem ciência, como tenho feito isto há cinco anos, desde que ingressei no mestrado multidisciplinar em Desenvolvimento Regional Sustentável (PRODER/UFCA) e participei de eventos científicos como o Seminário DoCEntes e Ceará Científico promovidos pela Secretaria da Educação (SEDUC-CE). Na Escola Simão Ângelo, coordeno e oriento projetos de pesquisa e acompanho colegas docentes, incentivando-os a fazerem ciência junto aos seus estudantes, tendo a sala de aula como locus e sua prática o ponto de partida, valorizando o conhecimento e as experiências desses sujeitos, tornando-os protagonistas da sua existência. Comumente divulgo eventos, cursos e capacitações na área científica, além de prestar apoio àqueles que desejarem enveredar por esse caminho. Percebo que é possível e necessário superar a visão do ensino pelo ensino, tornando docentes e discentes construtores do conhecimento.
A escola deve ser um espaço político, inclusivo e aberto ao novo, onde a reflexão-ação esteja presente em seus processos, enxergando os estudantes como protagonistas, não meros expectadores. O diálogo permanente entre os sujeitos que a compõem deve nortear seu fazer pedagógico, tornando-o prazeroso e, sobretudo, válido, despertando interesse e sentido. A investigação é um dos pressupostos facilitadores da aprendizagem e do fazer científico, que deve integrar o currículo e planejamento escolar, indo além dos seus muros, contextualizando a realidade em uma ação de “mão dupla”, onde haja cooperação, colaboração e alternância. As diretrizes educacionais apontam para práticas pedagógicas de caráter reflexivo, que despertem nos educandos o gosto pelos estudos, sobretudo a pesquisa. A escola precisa ter uma visão holística, tornando-se uma incubadora de jovens pesquisadores, que venham a contribuir com a ciência e humanidade, sob a égide dos pilares da educação: aprender a conhecer, fazer, conviver e ser.
O despertar da ciência surge de insights aliados à curiosidade, tanto do professor quanto do estudante em situações cotidianas como uma discussão na sala de aula, a socialização de algum trabalho, realização de atividade extraclasse, dentre outras. A escola pode/deve incentivar a pesquisa, reconhecendo seu papel educacional, oferecendo aos seus docentes suporte para que orientem e sejam orientados, pois estes são eternos aprendizes em constante formação. A SEDUC-CE tem valorizado a iniciação científica na educação básica, realizando eventos e mantendo dois periódicos, podendo avançar ainda mais nesse sentido. Fazer ciência na escola requer interesse investigativo, motivação e também o conhecimento teórico-metodológico, pois além de conhecer ou aprofundar-se em determinado tema/objeto, o pesquisador e seus orientandos precisam conhecer métodos de pesquisa, seus tipos, natureza e objetivo, assim como técnicas de coleta e análise de dados, recursos essenciais para o desenvolvimento de estudos qualificados.
RBEB: Gostaria de acrescentar algo a mais?
Raniere Almeida: Sim!
Defendo que o fazer científico não se restrinja aos muros da academia, pois o conhecimento surge em diferentes situações, tempos e contextos. Durante séculos as escolas eram vistas apenas como socializadoras de saberes livrescos, prontos e acabados, não tendo os seus atores, sobretudo professores e estudantes, o reconhecimento como “produtores”, mesmo boa parte das teorias científicas emergindo dos espaços escolares/formais. Uma situação ainda não superada é a distância entre a escola básica e a universidade. Enquanto esta baseia-se no tripé: ensino-pesquisa-extensão, a escola tem buscado fazer ciência diante de um cenário conflitante com limitações estruturais e financeiras, desconstruindo a visão de reprodutora do conhecimento. Com a iniciação científica na educação básica, essa visão retrógrada tende a ser revista, demonstrando que no ensino-aprendizagem emerge ciência.
A escola é um território plural, inter/multicultural, que concentra e difunde saberes em forma de competências e habilidades, as quais advém do fazer científico, ratificando sua capacidade e potencial investigativo, exploratório. O professor pesquisador é capaz de empoderar jovens estudantes, tornando-os protagonistas através da iniciação científica, que os motiva a descobrir e ter contato com o novo, despertando-lhes a curiosidade. Essa ação potencializa o processo de ensino-aprendizagem, favorecendo a produção de novos saberes ou o aprofundamento daqueles já existentes, ampliando o conhecimento acadêmico. Docentes e discentes envolvidos no fazer científico deixam de ser atores passivos, tornando-se produtores potenciais. O resultado desse trabalho conjunto ao ser publicizado em eventos e/ou periódicos servirá de base não só para eles, mas sobretudo para outros sujeitos e suas redes de ensino, significando o ato educativo.
A pedagogia de projetos é um caminho viável para a iniciação científica. Porém, ainda não percorrido por todas as escolas brasileiras, apesar da sua relevância socioeducacional, incluindo-se também nesse escopo a educação contextualizada e a pedagogia da alternância. Estes processos metodológicos atuais envolvem mais os professores e estudantes que os tradicionais, por despertar sua curiosidade, senso criativo e investigativo, protagonismo juvenil, enfim, um novo olhar sobre si e o mundo que os circunda. Cabe às redes de ensino e seus profissionais avaliarem permanentemente sua prática, buscando evoluí-la para “práxis”, tornando o fazer pedagógico e científico cada vez mais qualificado, instruído e engajado. Uma proposta é a formação continuada, a partir da oferta gratuita de programas de capacitação/especialização com enfoque na produção e difusão do conhecimento científico, considerando suas nuances com o popular/empírico, não-formal e outros trazidos pelos discentes à escola.
Expresso aqui minha gratidão à equipe da Revista Brasileira de Educação Básica, vinculada à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pelo convite para participar desta entrevista sobre o fazer científico na escola, tendo como base minha experiência como professor pesquisador na rede estadual do Ceará. Coloco-me à disposição para eventuais dúvidas, assim como novas participações nesse consagrado periódico. Cordial abraço!
Conheça o autor:
Raniere de Carvalho Almeida
É professor na Escola de Ensino Médio em Tempo Integral Simão Angelo (Penaforte-CE), atualmente, na função de coordenador escolar. É graduado em Educação Física (UNIVASF), Letras (FACHUSC) e Serviço Social (UNITINS), especialista em Educação Física (UECE), Língua Portuguesa, Literatura e Gestão Escolar (FINOM) e Gestão em Saúde (UNIVASF). Possui mestrado em Desenvolvimento Regional Sustentável (UFCA). Pesquisa temáticas interdisciplinares ligadas à área de Linguagens e Códigos, Ciências Humanas, Sociais e suas Tecnologias.
Contato: raniere.almeida@prof.ce.gov.br