Sexta Divertida

Sexta divertida: uma prática pedagógica coletiva da EMEI Maria Sales Ferreira

Agnes Alves Melgaco

Agnes Alves Melgaço

Sou Educadora Infantil da rede municipal de Belo Horizonte, graduada em normal superior; UFMG, e Pós-Graduada em Educação Especial e psicomotricidade. Participei do CEALE e PNAIC (alfabetização e letramento) realizado pela UFMG. 

Contato: agnes.marinques@edu.pbh.gov.br

Prof. Andréia Oliveira – Andréia Oliveira

Andréia Shirley Taciana de Oliveira

Sou professora na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais, tenho Especialização em Gestão Escolar, Metodologias para o Ensino Superior e Linguagem e Tecnologia pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Sou Mestra e Doutora em Linguagens pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais. Atuo no grupo de pesquisas Tecnopoéticas e pesquiso sobre livro, literatura e poesia digitais. 

Contato: astoliveira@edu.pbh.gov.br

Introdução 

Nisso que o menino contava a estória da rã na frase 
Entrou uma Dona de nome Lógica da Razão.
A Dona usava bengala e salto alto. 
De ouvir o conto da rã na frase a Dona falou: 
Isso é Língua de brincar e é idiotice de criança 
Pois frases são letras sonhadas, não têm peso, nem
consistência de corda para aguentar uma rã em cima dela. 
Isso é língua de Raiz – continuou 
É língua de Faz-de-conta 
É língua de brincar!
(Manoel de Barros, 2019, p. 18-23)

O sujeito criança sempre existiu, independentemente das concepções elaboradas sobre ele. Durante a Idade Média, as crianças eram consideradas seres biológicos, sem estatuto social, nem identidade específica. Ao longo do tempo, esse conceito foi mudando e hoje a criança é concebida como sujeito sócio-histórico capaz de construir seu próprio mundo inserido num mundo maior. 

É na infância que acontece o surgimento da linguagem, uma característica essencialmente humana, que possibilita à criança constituir-se para si, para o outro e para o mundo da cultura. No âmbito da educação, conforme proposto pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil — DCNEI — (Brasil, 2009):  

A criança é um sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas  que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina,  fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói  sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura (BRASIL, 2009, p.  28). 

Isso significa que é na infância e por meio da linguagem que a criança estabelece relações e se comunica com o mundo físico e social, utilizando-se do seu corpo como um todo para experienciar, narrar, criar e produzir cultura. 

A educação infantil é uma das etapas da educação básica definida pela Constituição Federal (1998), pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDBEN (BRASIL, 1996) e reafirmada pela Base Nacional Comum Curricular — BNCC (Brasil, 2017). Essas leis reconhecem a criança como sendo sujeito de direito e estabelecem a educação infantil como espaço e tempo de assegurar os direitos de aprendizagem desses indivíduos, garantindo-lhes o desenvolvimento de diversas competências e habilidades. Nesse sentido, a BNCC preconiza seis direitos de aprendizagem que devem ser garantidos às crianças na educação infantil, considerando-se diferentes maneiras pelas quais bebês e crianças aprendem e constroem sentidos sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. São eles: conviver; brincar; participar;explorar; expressar e conhecer-se.

Para que sejam contemplados, a BNCC estruturou as aprendizagens a serem alcançadas em todo o segmento da educação infantil, entrelaçando as situações e as experiências cotidianas da criança e seus saberes aos conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural, artístico, científico e tecnológico, por meio dos campos de experiências, a saber: o eu, o outro e o nós; corpo, gestos e movimentos; traços, sons, cores e formas; escuta, fala, pensamento e imaginação; espaços, tempos, quantidades, relações e  transformações. 

A partir do exposto, legalmente, temos que toda criança tem direito à educação, de conviver e brincar com outras crianças e adultos, de participar das atividades propostas pela professora, de explorar os diversos ambientes escolares e de expressar suas opiniões e desejos para conhecer-se enquanto sujeito do seu processo de aprendizagem.  

A Sexta Divertida na prática 

A brincadeira é uma atividade indispensável para a constituição subjetiva. Por meio do brincar, a criança desenvolve importantes habilidades cognitivas, mas também aprende a lidar com seus conflitos emocionais, a criar, imaginar, sonhar, comunicar, a respeitar as regras sociais e a se relacionar. Isso porque, brincar é uma experiência complexa de vivências, comunicação e inserção social, por meio da qual os seres, independentemente da idade, se humanizam e podem experimentar continuamente sua condição humana. É um modo de se construir conhecimentos sociais, de compartilhamento entre sujeitos — principalmente entre pares de idade —, de suas significações, explorações e ações. Garantir o direito de brincar e estimular a brincadeira são atitudes essenciais para que a criança vá se tornando sujeito.

Baseada na importância do brincar é que se fundamenta a proposta da Sexta Divertida. Em consonância com a legislação brasileira vigente, sobretudo na BNCC (2017), essa prática pedagógica está embasada nas Proposições Curriculares para a Educação Infantil da Prefeitura de Belo Horizonte (2014) e na concepção benjaminiana de que a criança é um sujeito da cultura, e não apenas objeto dela. Para Walter Benjamin (2002), filósofo e sociólogo alemão, as crianças constroem para si um mundo próprio, porém inserido num mundo maior. Por essa razão, nas mais diversas situações, elas lidam de forma diferente daquela como os adultos lidam, isso porque o fazem a partir dos elementos que elas têm ao seu dispor e também considerando as suas experiências de vida. É no brincar, linguagem que lhes é própria, que as crianças lançam mão de suas visões de mundo, das interpretações do mundo social, das relações e negociações necessárias para a existência e para a sustentação da brincadeira. Logo, esse modo próprio de a criança estar no mundo não pode ser ignorado ao se pensar sobre ela num processo de aprendizagem. 

Inspirada no documentário: “Caramba Carambola, o Brincar tá na Escola”, do projeto Brincar, produzido no Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária — CENPEC, a Sexta Divertida é desenvolvida na EMEI Maria Sales Ferreira desde o ano de 2016. Acontece uma vez por mês e tem como objetivo ampliar as possibilidades de interação e do brincar no espaço escolar; promover o desenvolvimento da autonomia, da interação e da participação das crianças; além de aguçar sua criatividade e a aprendizagem significativa. Geralmente, essa atividade acontece no quintal encantado — local onde ficam o parquinho, o campinho de futebol, a casinha de brincar, a arena de teatro e os quiosques indígena e africano da escola — e apresenta propostas diversas, como brincadeiras com o ar, com água, com terra, com panos, com canos, com panelas e utensílios domésticos usados, limpos e doados para a brincadeira, com diferentes tipos e tamanhos de latas, caixas e/ou outros tipos de materiais não estruturados. 

Prevista no Projeto Político Pedagógico da escola (2021, p. 94), a Sexta Divertida é planejada e organizada por grupos de professoras em cada turno, que se revezam mensalmente. Com antecedência, o planejamento do que será proposto no dia é repassado à coordenação e à direção, que se encarregam de comprar e/ou organizar os materiais que são solicitados. 

A Sexta Divertida inicia-se com uma apresentação no teatro de arena para todas as turmas de cada turno da escola, organizada pela equipe de professoras responsável de cada mês. O tema da peça teatral tem a ver com a proposta de brincadeiras que será realizada. Na imagem abaixo, cuja proposta era “brincadeiras com materiais não estruturados”, as professoras apresentaram uma encenação do livro “O homem que amava caixas”, de Stephen Michael King. Vejamos:

Imagem 1: apresentação das professoras no teatro de arena

Fonte: Acervo Pessoal das autoras, 2022 

Após a apresentação teatral, a equipe de professoras responsável pela Sexta Divertida explica às crianças como e onde serão desenvolvidas as brincadeiras ao longo das três horas da atividade. Cada professora da equipe responsável pela Sexta Divertida fica encarregada de administrar o espaço de cada brincadeira e de orientar as crianças no sentido de evitar situações que comprometam a interação entre elas. Cabe ressaltar que a interação entre as crianças de diversas turmas e idades é uma marca registrada nesta prática pedagógica orientada pelos adultos envolvidos, posto que permite que elas exerçam a livre escolha e promovam, de fato, o seu protagonismo. 

Para melhor entendimento e por identificarmos que essa atividade possui momentos distintos e importantes, optamos por dividi-los da seguinte maneira: momentos de interação, de experienciação e de criação. É importante ressaltar que esses momentos não ocorrem necessariamente nessa ordem, o que não influencia o desenvolvimento da atividade. A criança tanto pode experienciar e criar um brinquedo para depois interagir com as outras, quanto pode interagir com um determinado grupo e criar um brinquedo ou iniciar outra brincadeira a partir do que esteja proposto. Vejamos cada um desses momentos:  

Momentos de interação 

A formação dos seres humanos está intrinsecamente relacionada às interações sociais que se estabelecem ao longo da vida. As trocas relacionais da criança com os outros são fundamentais para o desenvolvimento da sua subjetividade. Toda e qualquer experiência de interação constitui-se como uma relação de alteridade e implica a crescente percepção de que se trata sempre de um outro, diverso, diferente, com o qual podemos, também, encontrar identificações. Nesse sentido, compreende-se que é na relação com os outros que as crianças se constituem como sujeitos singulares e sociais, no mesmo movimento em que se reconhecem na história e na cultura do seu grupo.

Imagens 2, 3, 4 e 5: crianças brincando e interagindo durante a Sexta Divertida

Fonte: Acervo Pessoal das autoras, 2022

É importante ressaltar que, durante a Sexta Divertida, todas as turmas da escola brincam no espaço destinado e previamente informado à coordenação pela equipe de professoras responsável pela sua realização. Distintamente, em cada turno (manhã ou tarde), todas as crianças brincam no mesmo espaço. As maiores cuidam das menores e todas podem escolher, dentre as opções disponibilizadas pela equipe de professoras responsável pela Sexta Divertida, a brincadeira e os materiais que desejam para brincar e/ou construir o seu brinquedo. A partir daí, as crianças brincam sozinhas ou em grupos sob o olhar das professoras e coordenadoras de cada turno.  

Portanto, para a criança, brincar cotidianamente de diversas formas, em diferentes espaços e tempos e com diferentes parceiros (crianças e adultos) é importante para ampliar e diversificar seu acesso a produções culturais, seus conhecimentos, sua imaginação, sua criatividade e as suas experiências emocionais, corporais, sensoriais, expressivas, cognitivas, sociais e relacionais.

Momentos de experienciação

Kishimoto (1994), com base em Piaget, nomeia as brincadeiras de faz de conta de brincadeiras simbólicas ou jogos simbólicos. Durante a Sexta Divertida, as brincadeiras de faz de conta são muito exploradas pelas crianças que constroem modalidades particulares de brincar. Pode ser de mamãe, princesa, fada, policial, astronauta, doceira, motorista de caminhão, bailarina, boiadeiro e tudo mais que a imaginação permitir.

É brincando de faz de conta que as crianças transformam um pedaço de tecido em uma cabana, um galho vira espada, uma caixa se transforma num carrinho, uma garrafa vazia vira leme de navio e água com terra pode ser uma comida deliciosa. Na brincadeira de faz de conta, tudo se transforma. É só usar a imaginação.  

Imagens 6, 7, 8 e 9: crianças experienciando os materiais não estruturados 

 Fonte: Acervo Pessoal das autoras, 2022

Como podemos observar nas imagens acima, durante a Sexta Divertida, as crianças brincam e brincam muito. Elas transformam os materiais disponibilizados em diferentes brinquedos e brincam juntas independentemente da idade ou do gênero, o que contribui para um brincar inclusivo, com diversidade, respeito, criatividade e diversão. 

Momentos de criação  

Na Educação Infantil, as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem das crianças têm estreita relação com a riqueza das experiências que lhes são proporcionadas. O brincar como direito e forma de aprender é privilegiado na ação pedagógica da EMEI Maria Sales Ferreira.  

O espaço educativo, tal como os materiais que o constituem, são igualmente importantes. Estes devem ser pensados considerando as necessidades e interesses das crianças. Esse momento está interligado ao momento de experienciação, pois primeiro a criança experiência os objetos, manuseando-os, para depois criar com eles, segundo a sua imaginação, como podemos observar nas imagens abaixo, em que elas, após escolheram os materiais não estruturados, passam a criar seus brinquedos. Assim, além de brincar, a criança também cria seu próprio brinquedo, desenvolvendo a sua imaginação e criatividade. 

Imagens 10 e 11: crianças brincando com os brinquedos que criaram

Fonte: Acervo Pessoal das autoras, 2022

A partir dessas imagens, podemos considerar que brincar é uma das mais importantes atividades na educação infantil, mesmo não estando diretamente ligada à aprendizagem de disciplinas formais. A brincadeira guarda relação com a comunicação e a interpretação. Além disso, ela também envolve escolhas: a criança toma a decisão de entrar na brincadeira e também constrói modalidades particulares de brincar.

Considerações finais  

Considerar a criança hoje como sujeito de direitos é o marco principal de toda  mudança legal conquistada ao longo do tempo: não são mais os pais que têm direito a uma instituição de educação infantil para seus filhos, mas sim a criança que tem direito a uma educação formal que vai além da educação da família. 

A EMEI Maria Sales Ferreira cria e organiza intencionalmente, tempos, espaços e condições materiais que favorecem as interações entre as crianças, entre elas e os adultos e entre elas e os elementos culturais do mundo que as rodeia. A organização do trabalho pedagógico que considera as interações como eixo estruturador está pautada no respeito incondicional à criança como sujeito social e de direitos. 

Um respeito profundo às crianças e suas famílias é explicitado por meio do acolhimento, da atenção, do interesse, do olhar, da escuta, dos gestos, da fala, da observação, do planejamento, da organização do ambiente, dos materiais e do tempo destinado a cada atividade proposta. 

O ato de brincar possibilita o processo de aprendizagem da criança, pois facilita a construção da reflexão, da autonomia e da criatividade, estabelecendo, desta forma, uma relação estreita entre jogo e aprendizagem. Nesse contexto, a Sexta Divertida é um momento mágico em que as crianças soltam a imaginação através dos materiais e objetos que ficam dispostos pelo espaço escolar para que escolham com o que mais se identificam para brincar. 

Por fim, é importante destacar que, durante essa atividade coletiva, cabe aos  profissionais da EMEI Maria Sales Ferreira estabelecerem a escuta atenta e o olhar minucioso para perceberem quais são os tipos de interações que esses momentos de  brincadeira estão proporcionando, orientando, sempre que necessário, para a ampliação de diferentes experiências e aprendizagens diversas para as crianças. 

Referências

BARROS, Manoel. Poeminha em língua de brincar. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019. p. 18-23.

BELO HORIZONTE. Secretária de Educação. Desafios da Formação: Proposições Curriculares para a Educação Infantil. Belo Horizonte: SMED, 2014.

BELO HORIZONTE. Secretária de Educação. Projeto Político Pedagógico da EMEI Maria Sales Ferreira. Belo Horizonte: SMED, 2021. 

BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 2002. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília (DF), 1996.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2009.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. 

KISHIMOTO, Tizuko Morchida. O jogo e a educação infantil. Perspectiva, Florianópolis, n. 22, p. 105-128, 1994. DOI: https://doi.org/10.5007/%25x. Disponível em: https://bit.ly/3wmhhH1. Acesso em: 20 mar. 2022. 

KING, Stephen Michael. O homem que amava caixas. São Paulo: Brinque Book, 1997.

MOREIRA, ANA ROSA COSTA PICANÇO; TEIXEIRA, MARIA DO CARMO COUTO; MELLO, Patrícia Assis Vaz de. CARAMBA, CARAMBOLA: O BRINCAR TÁ NAESCOLA. In: Anais da V Semana da Faced e X Semana da Educação: A Educação tem futuro? Desafios e Possibilidades. Anais…Juiz de Fora (MG) UFJF, 2019. Disponível em: <https//www.even3.com.br/anais/vsemanadafacedufjf/170871-CARAMBA-CARAMBOLA–O-BRINCAR-TA-NA-ESCOLA>. Acesso em: 23/06/2022.

OLIVEIRA, Andréia Shirley Taciana de. MELGAÇO, Agnes Alves. Sexta divertida:
uma prática pedagógica coletiva da EMEI Maria Sales Ferreira. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial A escola no pós-pandemia, novembro, 2023, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX

Imagem de destaque: Esta foto, de autoria de Andréia Shirley Taciana de Oliveira, explana sobre o início da Sexta Divertida. Todos  vão para o teatro de arena da escola, onde todas as crianças, professoras e auxiliares do turno se encontram para ouvir uma história, ver uma apresentação teatral e/ou realizar uma brincadeira baseada no tema escolhido pelo grupo de professoras responsável pela Sexta.

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