Uma contribuição freiriana para uma escola colorida
Sara Azevedo
Licenciada Plena em Educação Física pela Universidade do Estado do Pará e professora efetiva da rede pública estadual de ensino em Minas Gerais.
e-mail: sararsazevedo@gmail.com
Sim, na verdade, não estou no mundo
Mas para transformá-lo se não é possível mudá-lo
Sonho ou projeto de mundo
Usar toda possibilidade que tenha
Para não apenas falar de minha utopia
Participar de práticas com elas coerentes.
Paulo Freire
Introdução
O acesso à educação é privilégio de poucos. Isso porque a escola sempre foi tratada como aparelho ideológico do estado e da classe dominante. Desse modo, o acesso a esse bem, assim como à comunicação, é visto como muito valioso. Isso explica muito dos fatores que fazem com que na escola e na educação, como um todo, com frequência haja disputas de poder, que envolve todos os espaços.
O direito à educação digna, gratuita e de qualidade foi alicerçado no artigo 176 da Constituição Federal, o qual dispõe que “a educação inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana é direito de todos e dever do Estado”. Esse foi um processo de luta construído por trabalhadores em educação que ao longo de toda a constituinte estavam construindo uma nova cara para a educação brasileira.
Há, ainda, as condições para o acesso e permanência na escola. A garantia destes significa que todes, todas e todos têm direito de ingressar na escola sem distinção de raça, gênero, idade, religião, classe social e território geográfico, não podendo ser obstada a permanência de quem tem acesso. Nesse sentido, a compreensão de uma educação que seja inclusiva, para a liberdade e para todas, todes e todos se faz no fazer pedagógico e na cotidianidade.
E aqui nos encontramos com a obra fundamental de Paulo Freire, patrono da educação brasileira, que, apesar de não escrever sobre a questão LGBTIQ+ em sua obra, defende a educação e a escola como espaço da diversidade e da pluralidade e também de luta política, pois, “sem condições necessárias à liberdade, sem a qual o ser humano se imobiliza, é privilégio da minoria dominante quando deve ser apanágio seu”. (FREIRE, 2007, p. 15). Ou seja, se defendemos que a sociedade livre das opressões e da exploração do homem pelo homem, é na educação e na escola que encontramos espaço para “a educação como intervenção [inspiradora de] mudanças radicais na sociedade, na economia, nas relações humanas e na busca dos direitos, ou seja, uma sociedade sem educação não evolui.” (SOUZA, 2018).
Do direito à educação
A Constituição Federal de 1988, conhecida também como Constituição Cidadã, teve como base o princípio da educação como direito de todos com uma abrangência global, desse modo, buscando consolidar o direito à educação como universal, garantia básica de cidadania. A partir disso, outras políticas públicas foram sendo construídas para a efetivação dessa premissa.
Além do acesso e da permanência na escola, torna-se fundamental garantir o direito à conclusão dos estudos com qualidade de todos. As políticas públicas educacionais têm a importante tarefa de proporcionar a efetivação desses direitos, como também o combate às desigualdades, dando à escola uma responsabilidade maior de mediadora e obtentora de direitos sociais.
O processo ensino-aprendizagem toma novo sentido no contexto de transformação da educação. Propõe-se a educação e a escola como espaço de expressão de valores e conceitos sobre a sociedade e, portanto, urgentes para o desenvolvimento humano e social. Assim se constituíram os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN – nos anos de 1997 e 1998, em seguida em 1999. Nele se encontram os temas transversais que ganham importância na promoção da cidadania dentro da escola. São eles: Ética (Respeito mútuo, justiça, diálogo, solidariedade); Orientação Sexual (Corpo: Matriz da sexualidade, relações de gênero, prevenção das doenças sexualmente transmissíveis); Meio Ambiente (Os ciclos da natureza, sociedade e meio ambiente, manejo e conservação ambiental); Saúde (autocuidado, vida coletiva); Pluralidade Cultural (Pluralidade cultural e a vida das crianças no brasil, constituição da pluralidade cultural no brasil, o ser humano como agente social e produtor de cultura, pluralidade cultural e cidadania) e Trabalho e Consumo (Relações de trabalho; trabalho, consumo, meio ambiente e saúde; consumo, meios de comunicação de massas, publicidade e vendas; direitos humanos, cidadania). Um avanço significativo que promove saberes antes não valorizados. Porém, na realidade prática não temos a mesma mudança.
Do contexto
De uma educação colonizadora, para uma educação formadora de uma elite dominante, ainda tivemos uma educação voltada para a técnica, evoluímos para uma educação restritiva para posteriormente seguir com o processo de redemocratização nunca concluído e hoje ameaçado, visto todas as iniciativas tomadas nos últimos 2 anos de governo Bolsonaro.
A luta por uma educação que pudesse servir às necessidades das trabalhadoras e trabalhadores sempre esteve no horizonte, apesar de no cotidiano as violências e as consequências dos modelos educacionais excludentes deixarem marcas, especialmente na população marginalizada e expropriada dos direitos.
Apesar dos projetos e leis construídas, somente após a Constituição Cidadã de 88 e luta das diversas entidades científicas e sindicais da educação foi possível avançarmos para a transformação da escola, não sem traumas e não sem contradições.
Portanto, os avanços significativos nos debates acerca da educação, o processo lento de mudança promoveu uma série de problemáticas, especialmente no que diz respeito à ausência de narrativas e histórias dos sujeitos historicamente excluídos – mulheres, a negritude e as diversas sexualidades e gêneros –, como também modelos que pudessem garantir a manutenção desse público na escola. Esse contexto produz excrescências, como a evasão escolar, o abandono, baixa escolaridade e baixa inserção no mercado de trabalho, dentre outros.
Da liberdade
Na última década, o tema de gênero e sexualidade esteve no centro de grandes polêmicas que compuseram um quadro de fortalecimento de conservadorismos que atacam a noção construída como direito humano, como bem fala Vanessa Leite (LEITE, 2020). É entre adolescentes e jovens que esse tema encontra locus e se confronta com a moralidade construída por um ideário de família que embebeu a escola e as políticas de educação do país.
A padronização e a moralidade dominante têm dado como justificativa para discriminação e desigualdades as diferenças sexuais biológicas, formando conceitos de feminilidade e masculinidade desde a tenra idade. Essa prática tem sido recorrente em todo processo educacional brasileiro.
Essa padronização constituída, reforçada no ambiente escolar, é um fardo social pesado para meninas e meninos que veem no espaço escolar o primeiro local de socialização e de diálogo com o mundo fora do ambiente familiar. A agressividade nesse percurso interfere decisivamente na educação desses sujeitos (LEITE, 2020). O tema sempre denotado como “problema”, conota uma profunda contradição, visto que a escola, que foi dotada de sentido por ser o espaço de garantias de direitos, é também o espaço onde a vivência é repressiva e expõe as mais variadas formas de violência.
O avanço significativo que os processos institucionais sofreram e tiveram efetivados não acompanhou os processos escolares e da educação como um todo. Esses temas vêm notadamente aliados a valores negativos. Valores esses que distorcem a construção de uma escola e uma educação para a liberdade.
Da prática social
“Se a compreensão é crítica ou preponderantemente crítica, a ação também o será. Se é mágica a compreensão, mágica será a ação” (FREIRE, 2009, p. 114 apud PEREIRA & LAGE, 2018).
A pedagogia de Paulo Freire nos ensina que a criticidade é o meio pelo qual se conquista a liberdade e, portanto, uma educação que se baseia nessa premissa é imbuída de um sentimento extremamente político e de contestação da educação como modelo bancário e reprodução de ideologia dominante. Nesse sentido, as questões de gênero e sexualidade encontram em Freire, e em sua prática social, um aliado para a garantia de direitos humanos e a uma educação que seja livre dos preconceitos impostos.
Portanto, o processo ensino-aprendizagem que não leve em consideração os temas de gênero e sexualidade está fadado ao fracasso e à manutenção do status quo – a estagnação da sociedade –. “Consciência e mundo não podem ser entendidos separadamente, dicotomizadamente, mas em suas relações contraditórias. Nem a consciência é a fazedora arbitrária do mundo, da objetividade, nem dele puro reflexo.” (FREIRE, 2007, p. 16).
Esse conceito do fazer pedagógico é fundamental para a compreensão de uma educação e de uma escola que tome para si o sentido de universalidade, que compreenda seu papel para a formação omnilateral de sujeitos plenamente ativos, através de um processo de ensino aprendizagem dialógico como básico para a construção do conhecimento horizontal – valorizando o conhecimento e a vivência do educando – da humildade e da afetividade como sentimentos norteadores.
Para tanto, munir-se de uma prática pedagógica contra-hegemônica se faz necessário. Esse processo é relato por PEREIRA e LAGE ao citar FREIRE em Pedagogia do Oprimido:
Esta relação dicotômica, complexa e contraditória está presente na forma como a população LGBT, alienada, imersa nas tramas da heteronormatividade, procura imitar e reproduzir normas hegemônicas de ser e estar no mundo, norma essa heterossexual, como frágil e equivocada resposta à exclusão e ao estigma (PEREIRA e LAGE, 2018, p.73).
As condições objetivas em que se encontram educadores e educandos forjam confrontos que muitas vezes causam estranhamento. É necessário formar os formadores. Não estamos falando de um amontoado de conceitos e cursos que em nada possuem relação com a vida cotidiana dos educandos, mas a prática emancipadora de escuta para a ação. A nossa prática pedagógica só será de qualidade significativa se for um exercício prático de empatia, inclusive porque estamos lidando com processos subjetivos e que irão amadurecer ao longo da vida escolar e acadêmica.
A partir desses pressupostos, podemos evoluir não somente nas quatro paredes que a escola se coloca, mas principalmente enquanto uma sociedade livre das opressões e que respeite a todas, todes e todos que a constroem.
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17ª edição. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Política e Educação/Paulo Freire – 8ª Edição – Revisada e ampliada. Indaiatuba, SP – Villa das Letras, 2007 (Coleção Dizer a Palavra).
HAMZE, Amélia. Os temas transversais na Escola Básica. Disponível em: https://educador.brasilescola.uol.com.br/gestao-educacional/os-temas-transversais-na-escola-basica.htm.Acesso em: 15 jul. 2021.
LEITE, Vanessa. Diversidade Sexual e de gênero na adolescência e na juventude: entre desafios, controvérsias e resistências. In: FACCHINI, Regina e FRANÇA, Isadora Lins. (Org.) Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. Campinas, SP:: Editora Unicamp, 2020. p. 411-436
LOURO, Guaciara Lopes. Currículo, Gênero e sexualidade – O “normal”, o “diferente” e o “excêntrico”.. IN: LOURO, Guaciara Lopes, FELIPE, Jane e GOELLNER, Silvana Vilodre. (Org.) Corpo, Gênero e Sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
PEREIRA, C. F., & LAGE, A. C. (2018). Educação como Prática da Liberdade para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais: saberes, vivências e (re)leituras em Paulo Freire. Diversidade E Educação, 5(2), 68–76. https://doi.org/10.14295/de.v5i2.7712
SOUZA, José Clécio Silva e. Educação e História da Educação no Brasil. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/18/23/educao-e-histria-da-educao-no-brasil.Acesso em: 15 jul. 2021.
AZEVEDO, Sara. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 5, Número Especial Paulo Freire, setembro, 2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: <link>. Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
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