Formação docente continuada sobre as Relações de Gênero na Escola: Aventuras e Desventuras

Os Programas de Pós-graduação em Psicologia e em Ciências Sociais, articulados à Pró-Reitoria de Extensão da PUC Minas, desenvolvem desde 2015 uma parceria com o Núcleo de Educação, Cultura e Cidadania/DEID/SME/PBH – nessa época denominado Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual da Gerência de Articulação da Política Educacional (SMED) – com o objetivo de promover a formação continuada de professoras/es da Rede Municipal de Ensino sobre o campo teórico-metodológico das relações de gênero, a participação das/dos docentes é voluntária e certificada pela PROEX-PUC Minas. Essa atividade tem possibilitado não só divulgar e compartilhar o conhecimento produzido e sistematizado nas pesquisas acadêmicas, mas também a necessária articulação entre a teoria e a prática.  Integram a equipe professoras filiadas aos Programas de Pós-graduação citados e alunas de graduação em Psicologia e Ciências Sociais e pós-graduação em Psicologia.

A formação docente continuada é promissora e positiva como terreno de aprendizagem coletiva e, por meio de metodologias ativas, tem permitido às/aos educadoras/es compartilharem situações escolares cotidianas que revelam a desigualdade e a naturalização dos estereótipos de gênero, que produzem assimetrias generificadas de aprendizagem, intolerância e violência entre meninos e meninas, que também são dirigidas a meninos e meninas cujos corpos escapam do padrão heteronormativo. As avaliações processuais realizadas durante todo o período mostraram-se positivas e as/os participantes declaravam o interesse pela continuidade do Processo.

Em 2017, o então prefeito Alexandre Kalil assinou a adesão à Plataforma Cidade 50/50 da ONU Mulheres que visa à igualdade entre homens e mulheres em todos os setores das cidades, comprometendo-se com a promoção de políticas públicas em defesa da equidade de gênero. No ano seguinte, foi elaborado o Plano Municipal de Equidade de Gênero, coordenado pela Diretoria de Políticas para as Mulheres (SMSAC), que prevê ações de promoção da equidade de gênero em todos os equipamentos municipais da cidade, inclusive nas escolas municipais. Em 2019 foi assinado um acordo de Cooperação entre a PUC Minas e o Núcleo de Educação, Cultura e Cidadania/DEID/SME/PBH com vigência até 2021. Esse acordo referenda o projeto de formação continuada, a realização de uma pesquisa com o corpo docente municipal, visando à avaliação dos impactos do trabalho já realizado e ao levantamento de novas demandas. Além disso, a nossa equipe passou a participar ativamente do Comitê de Monitoramento de Equidade de Gênero – COMEG.

Entendemos que a educação tem um papel fundamental para a promoção da equidade de gênero, para o reconhecimento das diferenças e para a formação cidadã de meninas e meninos. Gênero é uma categoria analítica que nos permite compreender a distorção que converteu as diferenças, entre homens e mulheres, entre pessoas heterossexuais, homossexuais e trans, em desigualdades. Entre os desiguais se estabelecem relações hierárquicas de dominação e submissão. O construto teórico-metodológico de gênero também elucidou que as diferenças percebidas entre o sexo, a orientação sexual e os corpos das pessoas não são naturais, ou seja, reduzidas às determinações biológicas e nem produzidas por imutáveis processos de socialização, as diferenças percebidas são construídas e aprendidas – porque reiteradas cotidianamente – nas e pelas relações sociais.

Vivemos em uma sociedade que se pauta hegemonicamente pela heteronormatividade. A perspectiva interseccional mostra que a desigualdade é sustentada em três pilares: o patriarcado, o colonialismo e o capitalismo, de modo que a opressão de gênero, o racismo estrutural e a exclusão de classe se entrelaçam e fortalecem a subalternidade, mas contraditoriamente potencializam a resistência.

Tratar das relações de gênero no espaço escolar, portanto, significa problematizar relações assimétricas de poder e defender um projeto de sociedade: plural, inclusiva e democrática. Discutir as relações de gênero no cotidiano de professoras e professores, de alunas e alunos e de suas famílias significa também abrir espaço para a expressão e a reflexão sobre os processos de subjetivação, sobre os afetos, sobre os valores morais e éticos.

A trajetória de seis anos do projeto não foi realizada sem tensões, pois desde 2016, quando os grupos políticos e religiosos fundamentalistas, identificados com a extrema-direita, lograram a retirada das temáticas transversais sobre a sexualidade e as relações de gênero do Plano Nacional de Educação, o termo gênero foi remetido ao “index” e tratado como “ideologia de gênero”. Podemos compreender que

O slogan ideologia de gênero revela temores pela destruição das diferenças e suas consequências. Chega-se a temer a destruição das famílias e, em manifestações mais extremadas, o fim da humanidade, pois a ditadura da homossexualidade não permitiria a reprodução humana. Essa formulação caricata pretende instaurar uma provocação: seria mesmo possível destruir as diferenças? Não seria outro o medo: o medo da equidade, que pressupõe a universalidade dos direitos, dos quais seres humanos são portadores por serem humanos? Além disso, o medo diante da exigência de convivência com o diverso e o reconhecimento da diversidade humana? (Moreira, 2020, p. 282-283).

Devido à pandemia de COVID-19, nossas atividades prosseguiram remotamente e realizamos seminários formativos tanto com docentes quanto com as/os participantes do COMEG, e também uma conferência por ocasião da posse do novo Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. No entanto, embora tivéssemos reconhecimento e apoio institucional traduzido, inclusive, por um acordo formal de cooperação e avaliações positivas de todas e todos participantes, que declararam que, pela primeira vez, puderam se aproximar das teorias de gênero, fomos surpreendidas/os com a censura de um podcast.

No primeiro episódio desse podcast, enfatizamos a generificação dos espaços escolares, que contribuem para a naturalização dos estereótipos de gênero, pautados pela heteronormatividade. A quadra de esportes é tratada como espaço “naturalmente” reservado aos meninos para as suas partidas de futebol, mesmo quando as meninas formaram um time de futebol, a elas foi concedida uma quadra menor, não utilizada pelos meninos. O subtexto é o de que futebol não é assunto de meninas, ainda que tenhamos uma seleção brasileira de futebol feminino reconhecida internacionalmente. No entanto, também trouxemos o depoimento de uma diretora que utiliza o espaço esportivo como sala de aula, no qual podem se reunir os meninos e as meninas, quebrando assim a lógica do estereótipo de gênero.

Outra experiência discutida é a das filas “rosa” e “azul” para o uso do refeitório da escola. A explicação dada é a de que na fila mista os meninos assediariam as meninas e haveria “muita bagunça”; em contrapartida, as meninas são muito organizadas e deixam o espaço limpo após o uso. Encontramos aqui a afirmação dos estereótipos: é natural que os meninos sejam impulsivos e violentos com as meninas e também que não sejam cuidadosos. No entanto, a diretora entrevistada traz elementos de que essa situação não é imutável, ela observou que, em um primeiro momento, a separação de meninos e meninas nas filas “era natural”, pois elas mesmas/eles mesmos se organizavam dessa forma, mas a fila separada deixou de existir e isso não foi nenhum problema, meninos e meninas conversam amigavelmente durante o lanche.

É interessante observar que os relatos trazidos no podcast, articulados à categoria analítica de gênero, reafirmaram que os sentidos atribuídos às diferenças não são naturais, mas produzidos nas relações sociais, e essas são dinâmicas, transformam-se cotidianamente. Esse podcast, disponível em https://anchor.fm/cludio-eduardo-resende-alves/episodes/Podcast-Mltiplas-prticas-de-equidade-de-gnero-na-educao—Episdio-1-e14er64, foi censurado, não sendo permitida sua vinculação ao acordo de cooperação citado acima. Não recebemos formalmente as razões para a censura, e suspeitamos que o motivo tenha sido a mensagem veiculada pelo episódio, vista como perigosa: diferença não é desigualdade, é possível transformar as relações entre meninos e meninas, e conviver reconhecendo as diferenças de sexo, sexualidade e corpo sem violência e sem exclusão. Mas seguimos, pois se “… você corta um verso, eu escrevo outro…” (PESADELO, 1972).

 

Referência:

Moreira, Maria Ignez Costa. As Relações de Gênero: Naturalização da Desigualdade e Medo das Diferenças. In: SOUZA, Tatiana Machiavelli Carmo; OLIVEIRA, Érika Cecília Soares; MESQUITA, Marcos Ribeiro (Orgs.). Psicologia e feminismos: experiências de resistência em tempos neoconservadores. Maceió: Ed. UFAL, 2020, p.  279-318.

pesadelo. Intérprete: MPB4. Compositores: Maurício Tapajós e Paulo Sérgio Pinheiro. In: CICATRIZES. Intérprete: MPB4. Rio de Janeiro: Philips, 1972, 1 disco, faixa 2.

Juliana Gonzaga

Juliana Gonzaga Jayme

Professora de Graduação e Pós-graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e pesquisadora do CNPq

Contato: julianajayme@pucminas.br

Maria Ignez

Maria Ignez Costa Moreira

Professora de Graduação e Pós-graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas e pesquisadora do CNPq

Contato: maigcomo@uol.com.br

Imagem de destaque: Foto das autoras.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *