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Caminhos de uma voz

Um dia eu li num lambe-lambe: “para onde vão as coisas perdidas?’ Desde então fiquei com essa pergunta na cabeça. Para. Onde. Vão?

No segundo semestre de 2019, iniciei no programa de extensão Pensar a Educação, Pensar o Brasil (1822 – 2022) o processo criativo de um filme na qual eu seria o diretor, todavia queria trabalhar com uma equipe maior do que normalmente trabalhava. Comecei então um movimento que costumo chamar de “seduzir as pessoas para o processo” – isso porque a única coisa concreta que eu poderia oferecer era um processo, nada mais. Não teria remuneração, nem glamour, apenas uma produção quase sem nenhum dinheiro, os equipamentos eram emprestados e o máximo de luxo seria o deslocamento de Uber até os locais de gravação. Ainda assim, no mês de outubro de 2019, reuniram-se 12 pessoas interessadas em cinema, em educação e em construir algo.

O resultado foi a criação do Costuras, um filme documentário sobre memórias escolares. O processo do filme se deu a partir de uma chamada pública que recebeu mais de 60 textos de pessoas de várias partes do Brasil e de outros países, além de um áudio de Whatsapp. Esse áudio e os textos eram testemunhos e relatos das pessoas sobre alguma história de seu tempo na educação básica e foi a partir dessas histórias que o filme se desenhou e chegou em seu resultado final.

Do que nos foi enviado, utilizamos para construção do roteiro pouco mais de 20 histórias, além do áudio. Porém, no último corte para finalizar o filme, eu decidi retirar o áudio, porque entendi que não caberia na ideia geral do filme e nas imagens que havíamos produzido.

O áudio foi enviado pela Maria da Anunciação Conceição Silva, uma mulher que mora em Salvador, Bahia, tem 53 anos e é professora da Universidade do Estado da Bahia. Nós que estávamos fazendo o filme sempre falamos que o áudio que esta professora nos enviou tinha força suficiente para sustentar um filme inteiro. A primeira vez que eu ouvi o áudio me emocionei profundamente, quando mostrei para o restante da equipe todos ficaram impressionados. No áudio que tem aproximadamente 3 minutos ela nos conta sobre seu processo de alfabetização que se deu através de desventuras de uma criança em meio ao caos da cidade de Salvador, as primeiras palavras que ela leu na vida foram “Amaralina via Centenário” que estavam no letreiro de um ônibus.

Eu escutei este áudio por dezenas de vezes e até o último corte ele estava na montagem, mas por fim ele ficou de fora do filme… mas não da minha cabeça. O Costuras teve sua estreia em dezembro de 2019. Em março de 2020 o Pensar interrompeu os trabalhos presenciais e fomos todos para o trabalho remoto. As exibições do filme foram canceladas, e ele permaneceu público apenas no canal do Youtube do Pensar. De alguma maneira todo o calor do processo que havíamos construído no semestre anterior ao início da pandemia ficou um pouco à mercê de todas as angústias que tomaram conta de nós no ano de 2020 até hoje. O áudio da Maria ficou guardado nas memórias digitais e em minha própria memória que vez ou outra pensava no que fazer com ele.

Ao ouvir o áudio algumas vezes nos últimos meses foi reverberando em mim os atravessamentos que a cidade pode causar nas pessoas. Eu, que ando de bicicleta como principal meio de transporte há dois anos nas cidades de Belo Horizonte e Contagem, sou sensível ao que as ruas e o ambiente urbano provocam e ensinam. Foi partindo disso e do áudio da Maria que decidi fazer um vídeo que retornaria de alguma forma ao processo do Costuras, mas com tudo que foi vivido e provocado depois, além de ser agora um processo bem mais solitário.

Ouvi mais algumas vezes o áudio da professora Maria da Anunciação e refleti sobre quais imagens poderiam pensar através de sua história e de certa forma através da minha. Fiz o movimento de pegar minha bicicleta, colocar a câmera na mochila e fazer uma deriva de bike, algo como um mapeamento afetivo da cidade. Não coincidentemente, o local das imagens que abrem o filme Costuras são o principal local onde fiz as imagens para o vídeo com áudio da Maria. O vídeo se chama Amaralina Via Centenário. As imagens mostram uma cidade caótica com seus carros, motos, ônibus, bicicletas e pessoas, trazem uma urgência que pode ser flagrada pela sirene de uma ambulância ou pela luz vermelha de um carro de um órgão de trânsito da capital mineira, acompanha alguns caminhares que vão e vem com andares ligeiros. Mas não somente a cidade se mostra caótica e confusa, a câmera também oscila entre seu foco e seu movimento, fica trêmula e revela um olhar que lê muitas coisas ao mesmo tempo, que tem receios, mas não se furta de presença e de escuta.

Em determinado momento a câmera se move e mostra de forma efêmera uma sacola que está nas mãos de uma pessoa, na sacola está escrito a palavra “leitura”. Ler e pertencer a cidade é um ato político. Ler a cidade, ler as coisas e a si mesmo se constitui como um modo de existir, pensar e inventar mundos.

Para onde vão as coisas perdidas? Desta vez elas foram pra lugares outros inventados de novo.

thiago rosado

Thiago Rosado Silva

Interiorano, graduado em Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com período sanduíche na Universidade do Algarve em Portugal. Atualmente é coordenador executivo do programa Pensar a Educação, Pensar o Brasil (1822-2022). Cineasta atuante na produção e investigação de documentários e no campo do Cinema e Educação.

 

Contato: rosado.thiagot@gmail.com

Imagem de destaque: Rascunho para a ilustração do vídeo Amaralina via Centenário feita pela professora Libéria Neves (UFMG)

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