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Discursos sobre alfabetização nas primeiras reformas da Educação Angolana.

Marcelino Mendes

Marcelino Mendes Curimenha

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Phenix de Ciências Humanas e Sociais do Brasil e Graduação em Gestão Financeira na Universidade Luterana do Brasil.

E-mail:curimenha@hotmail.com

INTRODUÇÃO

A educação sempre foi o objeto de desejo e consumo entre os jogos políticos dos movimentos de libertação, que, após a independência, corriam ávidos para governar a Nova República Angolana. Nesse ínterim, o sujeito angolano, mediante determinado discurso da alfabetização, se configurou em objeto, tanto na ordem da produção do saber quanto na ordem da produção das práticas pedagógicas. Se esse indivíduo ou cidadão significava um sujeito hábil para o exercício laboral (ANGOLA,1975), dotado de conhecimento científico e cultural capaz de realizar transformações na sociedade (ANDRÉ, 2004), definido por uma identidade complexa (PINTO, 2013), não poderia de modo nenhum ser analfabeto.

No período do sistema colonial, o analfabeto era marcado pela diferença e dividia espaço de oposição com o sujeito assimilado — indivíduo angolano que se utiliza do direito oferecido pelo Estatuto do Indigenato, promulgado no ano de 1926 e vigente até 1961. Para isso, deveria abandonar “[…] inteiramente os usos e costumes da raça negra, falar, ler e escrever corretamente a língua portuguesa, adotar a monogamia” e, por fim, “[…] exercer profissão, arte ou oficio compatível com civilização europeia” (NASCIMENTO, 2011, p. 5). Ademais, esse sujeito produzido pelo discurso colonial detinha “[…] pequenos privilégios, mas na condição subalterna de cidadãos coloniais, classificação a distingui-los dos indígenas, a casta de africanos permanentemente excluídos” (SOGGE, 2009, p. 3). Nesse período, o analfabeto era considerado apenas como primitivo, deslocado e prejudicial na educação do Ensino Primário (PAXE, 2014). O sistema da educação colonial fazia de tudo para impedir a formação da sociedade autóctone, de negros africanos, enraizado a partir do pressuposto discursivo colonialista que via o sujeito angolano como mentalmente incapacitado para o aprendizado. Tal prática permitiu a perpetuação da manutenção da ignorância, reproduzindo ao mesmo tempo a continuidade do analfabetismo.

A REFORMA EDUCACIONAL E A VISIBILIDADE DO SUJEITO

Com o surgimento da primeira reforma no período de 1975, organizado pela Nova República, emerge um deslocamento na ordem do discurso e uma nova perspectiva começa a se instalar. O sujeito analfabeto é reconhecido, no entanto, se torna um problema a ser suprimido. Existe aqui uma ruptura. Nota-se um distanciamento da noção de sujeito angolano, se no discurso colonial o angolano estava impossibilitado do aprendizado por meio da alfabetização, naturalizava-se, mediante esse pressuposto, o obscurantismo intelectual do africano, como ser primitivo e partir dessa preposição o sujeito da educação entrava no jogo da invisibilidade. Com a reforma curricular, resultado da independência nacional e ligado ao projeto de construir uma sociedade de desenvolvimento econômico, cultural e social, se torna necessário criar a visibilidade do sujeito autóctone. Portanto, era necessário encontrá-lo, torná-lo visível, no intuito de anunciar a morte do sujeito analfabeto para que se criassem as condições de emergência do sujeito novo, já que “[…] a nova sociedade a ser construída não poderia se compadecer com os cidadãos analfabetos” (KEBANGUILAKO, 2013, p. 56). Essa preocupação pode ser demonstrada e ampliada também ao analisar-se a declaração do Bureau Político do MPLA, realizada através do jornal angolense, ao apontar:

[…] instrução, a educação e a cultura devem estar viradas à construção de um Homem Novo. […]. As escolas, nessa ofensiva, devem ser frentes de combate, enérgico e consciente, contra o analfabetismo e o obscurantismo, tornando-se centros de difusão de uma mentalidade nova, da cultura nacional, e do conhecimento político, técnico e científico, fatores de extrema importância para o avanço da revolução. E uma vez que é a juventude que vai continuar o processo revolucionário angolano (JORNAL ANGOLENSE, 1976, apud PINTO, 2013, p. 13).

Aliás, o sujeito da educação angolana, provedor do desenvolvimento nacional, é posicionado no lugar em que se determina o saber verdadeiro, relativo ao sujeito alfabetizado. Existe uma relação tácita entre alfabetização e desenvolvimento, tanto cultural como econômica. E, em meio a esses elementos, o sujeito se constitui. O secretário Noberto Garcia (2006), responsável pelos assuntos políticos, eleitorais e econômicos do MPLA, por exemplo, anuncia ou denuncia que “[…] enquanto tivermos uma taxa de analfabetismo ainda elevada, isto vai dificultar a distribuição da renda nacional. Porque onde há analfabetismo há pobreza. A pobreza está muito relacionada ao grau de analfabetismo” (GARCIA, 2006, p. 87).

Para a concretização da afirmação supracitada, a Primeira Reforma buscou introduzir mais amplitude em disciplinas como história, história de Angola, e a língua portuguesa foi enfatizada nas escolas, reconhecida como a língua oficial. Os dialetos foram colocados em segundo plano devido à falta de recursos para se investir em professores qualificados. O contexto político e os conflitos étnicos apertavam o cerco, servindo de empecilho para uma maior abrangência dos dialetos. Outras disciplinas, como educação moral e cívica, geografia, e uma dose de sociologia de cunho marxista, recebeu mais incentivos, visando a construção de um sujeito mais politizado, consciente do seu espaço territorial, propulsor de uma nova mentalidade social, letrado e munido de formação profissional.

Logo, a educação, até o final do século XX, se centrava na criação de um sistema educativo que se desenvolveu por intermédio de mecanismo ou políticas educacionais de alfabetização. Segundo a Fundação António Agostinho (INFORMAR ANO, p. 2), na década de 1960, antes mesmo da independência de Angola, “já tinha sido criado, na clandestinidade, o Departamento de Educação e Cultura, no seio do MPLA, setor que passou a responsabilizar-se pela alfabetização dos guerrilheiros e outros populares das zonas rurais, incluindo crianças”. Outra atenção que Ermelinda Liberato (2014) lança, ajuda a pensar melhor esse momento, ao explanar que essa situação dramática levou o recém empossado Governo a dar prioridade à educação, aplicando nessa área investimentos relevantes. Liberato (2014, p. 23) continua afirmando que “[…] a adoção de um novo discurso político, tendo em vista a formação do novo cidadão angolano, com uma nova personalidade, moldada nos ideais nacionalistas, conduziu à aprovação de reformas que erradicassem o analfabetismo”. Como pré-requisito desse projeto de alfabetização, se estruturava, a partir do Estado, modelos de aprendizagens, novas técnicas de leituras e escritas, os quais se tornaram peremptórios na continuidade da formação do sujeito. Maria Ferreira (2005) nos ajuda a compreender esse momento pós-independente ao frisar que “[…] a febre da militância com o objetivo imediato de acabar com o analfabetismo e implementar uma escola gratuita para todos, com vista à construção do sujeito da educação angolana, se incluiu nos materiais pedagógicos, fortes cargas ideológicas” (FERREIRA, 2005, p. 112).

A comunicação apresentada por Roberto de Almeida (2011), vice-presidente do MPLA, na Mesa Redonda sobre Princípios e Valores do Socialismo Democrático, informa que todo processo de formação, organização eram ações seletivas. Para fazer parte dessa ideologia não era mera questão de vontade (querer), mas de merecimento (o sujeito alfabetizado se reconhecia merecedor de se observar como um ser novo, diferenciado?). Ademais, Almeida acrescenta:

[…] para a mais ampla divulgação do marxismo-leninismo e reforço do trabalho político-ideológico, foram criadas as Escolas do Partido que constituíram importantes centros de formação de ativistas políticos, provenientes dos vários sectores da organização com realce para o operário e o camponês (ALMEIDA, 2011, p. 4).

Nesse mesmo I Congresso Ordinário, realizado em 1977, marcou-se a definição dessa ideologia, cujo pensamento consistia numa concepção de vanguarda da classe operária, baseada nos princípios do marxismo-leninismo, entendido “[…] como instrumento vital e indispensável para a construção do socialismo, em defesa do internacionalismo proletário consubstanciado na solidariedade com os povos que lutavam contra o imperialismo, capitalismo, o neocolonialismo e o racismo, naquela época” (ALMEIDA, 2011, p. 4).

No Fórum Angolanista, organizado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2005, Marcelo Bitterncourt (2007, p. 6) registrou que não era uma novidade que diversos antigos quadros ou políticos do Movimento de Libertação de População de Angola (MPLA), um dos partidos político que lutou contra o colonialismo e junto com outros, conduziu Angola a independência nacional, afirmarem que “[…] nunca foram de fato autênticos marxista-leninistas. Segundos eles, tal ideologia teria sido responsável por muito das desgraças em que vive o país, embora afirmem que enveredaram por tal caminho porque não havia na época outra saída”. Do ponto de vista da história da educação angolana, esse insucesso se deu por inúmeros fatores. A implementação de um novo sistema de educação a partir de 1975, realizado às pressas, à procura de mudança imediata no quadro do analfabetismo, e, por essa via tramar a formação de novos indivíduos, enfrentou diversos problemas. Maria Ferreira (2005), ao estudar sobre essa fase da primeira reforma, afirma que o desenho desse sistema, levando em conta a emergência de sua efetivação, que objetivava suprir a demanda do analfabetismo predominante no seio do povo, resultou na ineficácia do programa. Ferreira aponta ainda que o sistema educativo angolano sofreu alguns sobressaltos marcados por “[…] reformas apressadas, desenhadas em gabinete, sem debates públicos e sem a participação da comunidade educativa, além de ser implementada com a rapidez dos contextos específicos das sociedades em erupção política/social” (FERREIRA, 2005, p. 112).

Ademais, Kebanguilako (2013) salienta outros detalhes que provocaram retrocesso ou uma certa paralisia em prejuízo do desenvolvimento da educação angolana. A falta de um diálogo mais participativo com os colonizadores, contribuindo com seu know-how, provavelmente seria mais saudável. No entanto, o desejo em aniquilar todos os vestígios do colonialismo atrapalhou o sucesso do novo sistema que se instalava (KEBANGUILAKO, op. cit.). O autor também menciona que a euforia política e o impensável desejo de aniquilar todas as marcas da colonização influenciaram negativamente o sistema de ensino. Segundo sua teoria “[…] é na antiga sociedade que se encontra a essência do surgimento do novo” (KEBANGUILAKO, 2013, p. 12). O que ele pretende reiterar ainda é que “[…] nem tudo da antiga sociedade deveria ser jogado fora para construir o novo” (KEBANGUILAKO, op. cit., p. 13).

No entanto, não se viu apenas retrocessos no período da Primeira Reforma da Educação em Angola. São apontados, também, avanços e melhorias. Em sua tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Miguel André (2004), ao discutir a política da formação de novos sujeitos, vê, na primeira reformulação do sistema da educação, o sujeito angolano como indivíduo que, no processo do desenvolvimento da sociedade angolana, “[…] passou por mudanças na sua maneira de perceber, expressar e avaliar os fenômenos do mundo, tendo acesso a um conjunto de disposições, capazes de orientá-lo de uma maneira determinada” (ANDRÉ, 2004, pp. 95-96). Mecanismos que, além de imprescindíveis na transformação da nova sociedade, representam mudanças de percepção de si e do mundo ao seu redor e se tornaram elementos necessários para a construção da jovem nação. Esse sujeito, como um construtor na primeira reforma, precisava, segundo a ideia do autor, “[…] saber o que fazer, como fazer, porque fazê-lo, tendo consciência dos rumos da sua realização” (ANDRÉ, 2004, p. 56).

Baseado nos relatos do Ministério da Educação de Angola (ANGOLA, 2001), a Primeira Reforma da Educação foi caraterizada essencialmente por “[…] uma maior oportunidade de acesso à educação e a continuação dos estudos, do alargamento da gratuidade, e o aperfeiçoamento permanente do corpo docente” (ANGOLA; MED, op. cit., p. 4). O diagnóstico, feito em 1986 pelo Governo de Angola, sobre o Sistema de Educação, apresentou resultados relativamente positivos. No entanto, depois do surgimento da guerra civil, que foi se intensificando no ano de 1992, houve um retrocesso que desestabilizou a nação, levando à instabilidade econômica e social. Segundo o relatório final da avaliação do Programa de Alfabetização e Aceleração Escolar (PAAE), realizado no ano de 2011, as consequências talvez mais sérias da guerra civil foram mais culturais do que estruturais.

Com a ausência de um sistema educativo estável e estabelecido, não havia muita possibilidade de se desenvolver uma cultura e ética profissional dos professores, com certas normas de comportamento e práticas enraizadas nas pessoas. Faltas por motivos pessoais, atrasos ou ministrar aula com pouca preparação, são comportamentos ainda frequentemente encontrados entre os professores (PAAE, 2011, p. 8).

O olhar do Ministério da Educação de Angola (MED), desde então, tem sido menos positivo. Face ao fraco desempenho do setor da Educação em termos quantitativos e qualitativos, provocados por vários fatores, endógenos e exógenos, a Primeira Reforma não pôde sustentar a demanda do analfabetismo que se proliferava e a fraca qualidade de ensino, e a necessidade de uma nova revisão ou atualização curricular era urgente. O MED revela que, para atenuar o fraco poder de absorção da rede escolar, “[…] foram criados o horário triplo e as turmas pletóricas, com mais de sessenta a oitenta alunos na mesma sala de aula” (ANGOLA, 2001, p. 4).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, pode-se concluir que, no sistema educativo do período colonial, o analfabetismo é visto como natural, intrínseco ao angolano autóctone. A partir dessa perspectiva, a educação do Ensino Primário era reservada somente àqueles sujeitos que poderiam ser capazes de “assimilar” todo ou qualquer conhecimento formal e científico. Outrossim, nesse discurso colonial, o analfabeto só passa a ser reconhecido como sujeito a partir do ano de 1926, com o Estatuto do Indigenato. Com a produção dos novos conhecimentos das primeiras reformas do sistema educativo, após a independência e, consecutivamente, com a invenção da noção de novas perspectivas de sujeitos, o analfabetismo é inserido em uma campanha educativa, cuja agenda consistia na sua eliminação. O analfabetismo era tratado como elemento impeditivo para o progresso e desenvolvimento da nação — seja lá o que isso significasse.

O sujeito da educação angolana passa a entrar num jogo de (in)visibilidade. Nos discursos coloniais, o sujeito é invisível e um mal a ser suprimido; aqui, por meio da continuidade do analfabetismo, o sujeito da educação era, dessa forma, mantido na sua própria natural ignorância. Já nas primeiras reformas, o analfabetismo se torna visível, mas para ser combatido. Além disso, a constituição do sujeito da educação angolana mediante a alfabetização era fabricada à base de um saber ideológico, munido de princípios e valores de cunho marxista-leninista. Outros fatores salientados, nessa primeira fase acerca da alfabetização como representação do sujeito, são alguns impasses que se tornam problemáticos no processo de invenção do angolano nesses dois breves períodos aqui traçados, tais como: os espaços limítrofes entre colonialismo e pós-colonialismo (FANON, 1979); a falta de cooperação e diálogo (KEBANGUILAKO, 2013) e a guerra civil (ANGOLA; MED, 2001).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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