Criança Em Sala De Aula Destaque O Lado Colorido N 5

O lado colorido da progressão continuada

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Vicente de Paulo Morais Junior

Professor de História e Pedagogo, Mestre em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e Doutorando em Educação pela mesma universidade. Atualmente atua como professor da Faculdade Bilac (São José dos Campos/SP) no curso de Pedagogia e professor de História da rede pública paulista (Anos Finais do Ensino Fundamental).

E-mail: vicentemjunior@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O tema central deste artigo teve como inspiração um período de experiência profissional como professor coordenador em uma escola da rede pública do estado de São Paulo, de 2008 a 2012. Trago um relato de experiência que representa um conjunto de ações propostas no período da experiência profissional em que “tentou-se”, por meio de uma série de ações em conjunto com professores, alunos e pais ou responsáveis, fazer valer o ideário da progressão continuada. O que se apresenta nos parágrafos que seguem não tem como objetivo apresentar um método, mas possíveis caminhos.

O “AGIGANTAMENTO” E O DESAFIO

Em 2008, assumi a função de professor coordenador do Ensino Fundamental em uma escola da rede pública de ensino do estado de São Paulo localizada em Monteiro Lobato (SP). A escola atendia os anos finais (6º a 9º ano) do Ensino Fundamental e também o Ensino Médio (1º a 3º ano), com cerca de 500 alunos.

Notou-se, a priori, que os atores da educação[1] tinham uma ideia equivocada da progressão continuada, que era tratada como sinônimo de aprovação automática. Além disso, a escola tinha uma proposta pedagógica desatualizada e com total incoerência no conjunto das notas, bem como havia falta de critérios sólidos de avaliação, mostrando a necessidade de um intenso trabalho que envolvesse a relação ensino-aprendizagem, além de outros pormenores. Essa experiência proporcionou um contato direto com a progressão continuada, desenhando um cenário em que o regime oscilava entre o evidenciado no discurso oficial e um regime de seriação camuflado pelo discurso oficial da progressão continuada. Essa incoerência trazia a todos os atores da escola uma sensação de frustração em relação à proposta de trabalho da escola.

UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE CICLOS DE APRENDIZAGEM E PROGRESSÃO CONTINUADA

Com base nos §1º e §2º do Art. 32 na Lei nº 9394/1996 (BRASIL, 1996) e a partir da Indicação 7/97 do Conselho Estadual de Educação (SÃO PAULO, 1997), implantou-se o regime de progressão continuada nas escolas públicas do estado de São Paulo. Dessa forma, a partir de 1998, tivemos uma combinação de ciclos de aprendizagem com regime de progressão continuada. Essa combinação se caracteriza como um avanço, sendo uma das tentativas de superação histórico-social de uma escola seletiva e excludente (JACOMINI, 2009; FREITAS, 2003; PARO, 2003).

Os ciclos de aprendizagem têm como objetivo regularizar o fluxo de alunos assegurando que todos os alunos possam cumprir os anos de estudo previstos, sem interrupções e retenções (AZEVEDO, 2008). Cortella enfatiza que “A finalidade dos ciclos não é facilitar a aprovação. A finalidade dos ciclos é dificultar a reprovação burra, aquela que acontece por falha da nossa organização ou da nossa estrutura” (2002, p. 27).

Os ciclos ainda podem ser caracterizados como uma importe ferramenta organizacional pois

a organização em ciclos para o Ensino Fundamental tem por objetivo assegurar ao educando a continuidade no processo ensino-aprendizagem, respeitando o seu ritmo e suas experiências de vida, adequando os conteúdos e métodos aos seus estágios de desenvolvimento. Essa nova política supõe uma renovação progressiva das práticas vivenciadas nas escolas. Implica na elaboração e na construção de novas formas de trabalho do professor, propiciando maior integração do trabalho docente, através do planejamento coletivo dos professores do mesmo ciclo. A concepção de ciclo é uma noção pedagógica estreitamente vinculada à evolução da aprendizagem de cada educando e a avaliação de seus avanços e dificuldades. (SÃO PAULO, 1992 apud JACOMINI, 2011, p. 163)

Ainda na perspectiva organizacional, Bertagna (2010, p. 194) destaca que a progressão continuada

permite uma nova forma de organização escolar, consequentemente, uma outra concepção de avaliação. Se antes se aprovava ou se reprovava ao final de cada série, agora se espera que a escola encontre diferentes formas de ensinar, que assegurem a aprendizagem dos alunos e o seu progresso intra e interciclos.

A combinação de ciclos de aprendizagem e progressão continuada proporcionará, desse modo, a organização de um trabalho que independe de notas (números). Assim, esse movimento colocaria os tradicionais boletins e as notas bimestrais em segundo plano, ficando em evidência a avaliação formativa com pareceres, relatos e observações descritivas dos professores, gestores e alunos (NEVES; BORUCHOVITCH, 2004).

UM RELATO DE EXPERIÊNCIA E O LADO COLORIDO DA PROGRESSÃO CONTINUADA

Diante do cenário descrito, iniciou-se um trabalho que, cientificamente, foi sendo estruturado, revisado e remontado reunião por reunião com professores, bimestre a bimestre, ano a ano. Nessa perspectiva, houve a necessidade de ampliar o leque de discussões e intervenções, não ficando assim restrito a conceitos e definições sobre a progressão continuada.

Entre 2008 e 2010, as ações foram organizadas em três fases que tinham como foco a formação continuada de professores e a transposição desta formação para práticas avaliativas. As discussões e propostas de ações eram realizadas em horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC) (SÃO PAULO, 2009). As três fases iniciais foram: (1ª fase) discussão sobre conceitos de avaliação; (2ª fase) mudanças nos critérios e instrumentos de avaliação; (3ª fase) discussão sobre conceitos de ciclos de aprendizagem e progressão continuada.

Como as reuniões de HTPC eram semanais, optou-se por estabelecer estrategicamente uma relação direta de teoria e prática, vinculando as discussões em HTPC e proposições para a realização em sala com os alunos. Esse movimento modificou o ideário que parte do grupo de professores tinha em relação a conceitos de avaliação. Porém, ainda havia a necessidade da mudança nos critérios de avaliação.

É fato que existia um condicionamento por parte do grupo de professores em converter aprendizado em números de forma muito dura e pouco humana. Assim, optou-se em ter como ponto de partida para tal processo a discussão apresentada por Vianna (1992, p. 102) quando o autor evidencia que

o problema do qualitativo e do quantitativo em avaliação educacional costuma ser recorrente, mas, na verdade, são aspectos que se equilibram, (…). O problema não está na quantificação ou na qualificação, mas no super-dimensionamento de um desses enfoques, com a exclusão de outro. A interação de ambas as abordagens é uma necessidade imperativa, pois a avaliação, em face de sua natureza, exige um posicionamento crítico, que só ocorre na medida em que o quantitativo e o qualitativo se inter-relacionam.

Assim, foi esse o caminho seguido para a terceira fase: combinar a proposta de Vianna (1992), entre o quantitativo e o qualitativo somado à ideia de observação ou sensibilidade em analisar progressos dos alunos, não exclusivamente ligado a notas (números). Como fora evidenciado anteriormente, tendo como referência Neves e Boruchovitch (2004), a combinação de ciclos de aprendizagem e progressão continuada necessitaria dessa equação entre o quantitativo e o qualitativo.

Desse modo, concluía-se as três fases iniciais que, entre erros e acertos, obteve um saldo positivo com ampliação nas abordagens conceituais em relação a conceitos de avaliação, que por sua vez refletiam de forma direta nos instrumentos e critérios de avaliação. Além disso, observou-se ainda a articulação entre o quantitativo e o qualitativo, enquadrando-se na lógica da combinação ciclos de aprendizagem e progressão continuada.

Com a base alicerçada, a partir de 2011, iniciou-se a 4ª e 5ª fases. A 4ª fase foi a substituição de um instrumento/critério intitulado “nota de comportamento” e a 5ª fase foi reorganizar as ações do conselho de classe e série. A substituição da “nota de comportamento” foi feita pela “nota de participação”. Esta nota era gerada a partir de uma reunião realizada com todos os professores daquela turma, na qual se discutiam dez pontos observados ao longo do bimestre e se definia uma nota única utilizada por todos os professores (Quadro 1).

Quadro 1 – Nota de participação

Para cada um dos itens, utilizavam-se três análises: 1 (um) ponto para realização total; 0,5 (meio ponto) para realização parcial e 0 (zero) pontos para a não realização. Ao final das discussões, somavam-se esses valores e se chegava à nota de participação, amplamente divulgada e discutida com alunos e pais ou responsáveis. Esse processo diminuiu o “darwinismo pedagógico” (MORAIS JUNIOR, 2016) e, ao mesmo tempo, afastava por completo a avaliação informal, estruturada por juízo de valores, conforme Freitas (2003, p. 43-44).

A 5ª fase seria reorganizar as ações do conselho de classe e série. Tínhamos um conselho de classe e série no qual se observava apenas as notas determinadas pelos professores, sem maiores aprofundamentos. Além disso, as poucas discussões que surgiam eram pautadas por “avaliação informal” e juízo de valores. Existia ainda um agravante: havia apenas a discussão pela discussão nessas reuniões. Não se tinha uma análise do bimestre anterior e, muito menos, propostas de ações para o subsequente.

Notava-se que as reuniões de conselho de classe e série sempre se “esvaziavam” quando os números entravam em cena. Ora, se os números estavam atrapalhando, deveriam ser retirados. Assim, as cores entraram em cena. Ao realizar essa análise das notas bimestrais registradas por todos professores, verificava-se os alunos que tinham até duas notas abaixo do satisfatório[2] e os alunos que tinham mais de duas notas abaixo do satisfatório. Para os alunos com até duas notas abaixo do satisfatório, utilizou-se uma tarja laranja. Já para os alunos com mais de duas notas abaixo do satisfatório utilizou-se uma tarja rosa, conforme o Quadro 2[3].

Quadro 2 – Desempenho dos alunos conforme cores (1º bimestre de 2011)

Fonte: Escola Estadual “Professora Maria Ferreira Sonnewend” (2012).

Após a organização dos documentos que seriam utilizados como referência, chegou o momento de traçar metas para o bimestre subsequente, fazendo valer a importância de tal reunião. A estratégia utilizada foi propor desafios aos professores, os quais consistiam em três frentes (Quadro 3).

Quadro 3 – Desafios após o conselho de classe e série

O processo consistia em passo a passo, bimestre a bimestre, ir mudando o cenário e fazendo com que o aluno progredisse continuamente. Porém, não bastava apenas propor os desafios, era preciso oferecer suporte para a realização deles. O suporte estrategicamente “cercaria” todos os envolvidos. Dessa forma, o conjunto de ações e seus respectivos atores para fazer valer o desafio são apresentados no Quadro 4.

Quadro 4 – Ações e suporte após o conselho de classe e série


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evidente que o discurso baseado em uma “leitura do fracasso”, era legitimado por um vazio de ações coletivas. Quando houve uma intensificação das ações de apoio e suporte aos alunos, estas ações tiveram força o suficiente para “recristalizar” esse discurso. Dessa forma, pode-se concluir que a progressão continuada está diretamente ligada a ações coletivas, nas quais alunos, responsáveis e profissionais da escola tem sua parcela de responsabilidade na implementação desse processo.

Não diferente, ao organizar todo esse processo, foram ofertadas aos alunos com dificuldades situações estruturadas para que eles pudessem progredir continuamente. Basicamente, a lógica foi realizar um conjunto de ações ao longo do ano letivo que fizessem valer a mudança de um ano letivo a outro sem reprovações. A progressão continuada valoriza e respeita diferentes ritmos e estilos de aprendizagem, logo se torna uma ação inclusiva. A progressão continuada pode ser considerada como um dos panos de fundo de uma escola inclusiva.

 

 

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, A. J. A organização do ensino em ciclos e o regime de progressão continuada. Revista Científica Eletrônica de Pedagogia, Garça, ano VI, n. 12, p. 1-6, jul. 2008. Disponível em: <http://bit.ly/2v3vfl7>. Acesso em: 27 jul. 2017.

BERTAGNA, R. H. Avaliação e progressão continuada: o que a realidade desvela. Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 3, p. 193-218, set./dez. 2010. Disponível em: <http://bit.ly/2tNWFM6>. Acesso em: 27 jul. 2017.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Poder Legislativo. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 dez. 1996. Seção 1, p. 27833. Disponível em: <http://bit.ly/1U7QxVu>. Acesso em: 27 jul. 2017.

CORTELLA, M. S. Aprendizagem em ciclos: repercussão da política pública volta para cidadania. In: FÓRUM DE DEBATES 2002: PROGRESSÃO CONTINUADA DA SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DE SÃO PAULO, 2002, São Paulo. Progressão continuada: compromisso com a aprendizagem. São Paulo: FDE, 2002. v. 1, p. 25-35.

ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA MARIA FERREIRA SONNEWEND. Livro ata de planejamento 2010: institui o processo de elaboração de nota de participação dos alunos. Monteiro Lobato: Escola Estadual Professora Maria Ferreira Sonnewend, 2010.

______. Livro ata de conselho de classe e série. Monteiro Lobato: Escola Estadual Professora Maria Ferreira Sonnewend, 2012.

FREITAS, L. C. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. São Paulo: Moderna, 2003.

JACOMINI, M. A. Educar sem reprovar: desafio de uma escola para todos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 3, p. 557-572, set./dez. 2009. Disponível em: <http://bit.ly/2uGRMlp>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Os ciclos e a progressão continuada na opinião de pais e alunos. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 27, n. 1, p. 161-180, abr. 2011. Disponível em: <http://bit.ly/2vcbkkE>. Acesso em: 27 jul. 2017.

MORAIS JUNIOR, V. P. Darwinismo pedagógico: a reprovação como produto de uma “seleção natural” no regime de seriação. Cadernos de Educação, São Bernardo do Campo, v. 15, n. 30, p. 61-77, jan./jun. 2016. Disponível em: <http://bit.ly/2w485Ij>. Acesso em: 27 jul. 2017.

NEVES, E. R. C.; BORUCHOVITCH, E. A motivação de alunos no contexto da progressão continuada. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 20, n. 1, p. 77-85, jan./abr. 2004. Disponível em: <http://bit.ly/2u2seNM>. Acesso em: 27 jul. 2017.

PARO, V. H. Reprovação escolar: renúncia à educação. 2. ed. São Paulo: Xamã, 2003.

SÃO PAULO (Estado). Conselho Estadual de Educação. Indicação CEE nº 7/97, de 29 de julho de 1997. Adequa o CEE à nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº 9394/96). Diário Oficial do Estado, São Paulo, 30 jul. 1997. Disponível em: <http://bit.ly/2vNJ3y4>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas. Comunicado CENP de 6 de fevereiro de 2009. Dispõe sobre orientações para o Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (HTPC). Diário Oficial do Estado, São Paulo, 7 fev. 2009. Seção 1, p. 21. Disponível em: <http://bit.ly/2uH9dSM>. Acesso em: 27 jul. 2017.

______. Secretaria da Educação. Resolução nº 61, de 24 de setembro de 2007. Dispõe sobre o registro do rendimento escolar dos alunos das escolas da Rede Estadual. Diário Oficial do Estado, São Paulo, 25 set. 2007. Disponível em: <http://bit.ly/2v1Tmkd>. Acesso em: 27 jul. 2017.

VIANNA, H. M. Avaliação educacional nos Cadernos de Pesquisa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 80, p. 100-105, fev. 1992. Disponível em: <http://bit.ly/2uCoypb>. Acesso em: 27 jul. 2017.

[1]São considerados como atores da educação todos aqueles que participam de forma direta ou indireta da implementação de políticas educacionais na escola, como alunos, professores, gestores e pais ou responsáveis. O termo “atores” se refere àquele que tem papel ativo em algum acontecimento.

[2]“Art. 5º ‒ Será considerado como patamar indicativo de desempenho escolar satisfatório a nota igual ou superior a cinco”. (SÃO PAULO, 2007)

[3]Os nomes dos alunos foram substituídos por personagens da História do Brasil elencados em cédulas de circulação nacional.

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