Escrita em aulas de Química no Ensino Fundamental II: A construção de diários de cientistas
Wallace Alves Cabral
Doutorando e mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE-UFJF), Licenciado em Química pela UFJF e professor de Química e Física na Escola Balão Vermelho Alicerce.
E-mail: wallaceacabral@gmail.com
A LINGUAGEM NO ENSINO DE QUÍMICA
Em aulas do currículo de Química na Educação Básica, geralmente há grande valorização na feitura de relatórios técnicos, resolução de problemas e cálculos, em contraposição à valorização de outras habilidades, por exemplo, a leitura e a escrita. Como destaca Cassiani e Nascimento (2006), existe um consenso entre os professores de Ciências de que trabalhar questões ligadas à formação do leitor/escritor esteja relacionado somente à disciplina de Língua Portuguesa e produção de textos. Em outra pesquisa, Almeida, Cassiani e Oliveira (2008) desmistificam a ideia de que cuidar da linguagem é um papel reservado ao professor de português. Pelo contrário, mostram a importância do trabalho com o conhecimento científico por meioda leitura de textos apropriados, o que, segundo eles, contribui para a “construção de leitura dos estudantes” e estabelece “relações intertextuais”, de forma a reconstruir a “história dos sentidos dos textos”.
Em muitas instituições, a linguagem escrita é vista somente como meio para aperfeiçoar os trabalhos acadêmicos da área, ou seja, prioriza melhorias nas concepções científicas dos estudantes. Como aponta Geraldi (2013, p.7) as linguagens em “[…] sala de aula são tomadas como “meio”, como atividades instrumentais de acesso e apropriação de um conhecimento […]”. Contrapondo-se a essa ideia, Cassiani e Almeida (2005, p.367) destacam que “outros aspectos podem ser trabalhados tanto com a leitura quanto com a escrita, tais como as contribuições do ensino de Ciências na formação do leitor/autor”; ou seja, as linguagens mais do que instrumentais de apoio no processo de aprendizagem.
Nesse contexto, aproximo-me do referencial teórico e metodológico da Análise do Discurso de linha francesa (AD), como os trabalhos deEniOrlandi, que sinalizama existênciade um processo de produção de sentidos que nega a transparência da linguagem por observador neutro (ou o estudante passivo)e que, por analogia, nos permite ver o quão importante se tornam tais conhecimentos, em particular, no contexto do Ensino de Química.
Buscando uma aproximação desse modo de pensar a linguagem em aulas de Química é que exponho o seguinte objetivo geral: perceber a(s) influência(s) da produção textual(e, especificamente, da escrita criativa)que foi desenvolvida com os estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental II em aulas de Química.
DELINEANDO AS ATIVIDADES
Como professor de Química em uma escola particular na cidade de Juiz de Fora – MG, busco aproximar os conteúdos curriculares de tal modo que isso contribua com a formação do leitor/escritor. Com base no planejamento anual, várias atividades foram pensadas; porém, para este trabalho, a ênfase será dada no conteúdo modelos atômicos.
No período de abril e maio de 2016, os 14 estudantes matriculados no 9º ano do Ensino fundamental II participaram das atividades que foram desenvolvidas nas seguintes etapas, conforme o Quadro 1:
Quadro 1 – Descrição das atividades desenvolvidas nos meses de abril e maio – 2016
Fonte: elaborado pelo próprio autor.
Depois das atividades desenvolvidas, apresento uma breve análise dos resultados obtidos.É importante ressaltar que os nomes que serão apresentados são fictícios e indicados pelos próprios discentes na roda de conversa.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Devido à limitação do espaço, apresento aqui alguns recortes dos 14 diários que foram produzidos. Vejamos uma passagem do material construído pela estudante Ana, relatando a vida do cientista Niels Bohr:
7/10/1913 – Querido diário, hoje faço 28 anos, ainda pensando como as coisas mudaram.Eu contribuí para a evolução dos modelos atômicos! Mas sei que isso pode mudar com o tempo. Alguns tempos atrás eu me matava estudando horas e horas, achei em certo ponto que não daria em nada… Eu acabaria concluindo nada. […]Eu penso que daqui a 100 anos as pessoas vão ver esse átomo e pensar “Qual o problema desse cara, ele não tinha nada melhor pra fazer da vida,não?” E esse cara sou eu. Mas eu espero que tenha pessoas interessadas que vão sentir “orgulho” pois elas fazem parte dessa história. (Ana).
A estudante, ao apresentar na sua criação como seria a rotina de vida de Bohr, destaca aspectos humanos para além do cientista “maluco, isolado e solitário”, afastando-se da visão sobre ciência e cientista que é apresentada no trabalho de Kosminsky e Giordan (2002). Além disso, é possível perceber a concepção de ciência como construção humana e intimamente ligada à história, por exemplo, ao relatar “[…]mas sei que isso pode mudar com o tempo”, evidenciando o conhecimento científico como verdade provisória.
Outra característica nos diários são as relações intertextuais estabelecidas, como aponta Orlandi (2012).Esse conceito (o intertexto) remete ao fato de que um texto nasce de outros textos, assim como também aponta para outros tantos. Por exemplo, no diário do Lucas, há relações das tensões políticas e sociais vividas pelo cientista no período da II Guerra Mundial.
Querido diário, estou com raiva! No período da II Guerra Mundial eu ajudei nos estudos da bomba atômica, mas eu percebi os estragos que uma bomba dessa causa. Sou tão culpado quanto esses nazistas mesquinhos que tomaram meu país,mataram o povo dos meus e trouxeram o terror comunitário. […] (Lucas).
Na roda de conversa, quando questionei os estudantes sobre como foi a experiência de escrever esses diários, a aluna Bruna disse o seguinte: “[…] foi difícil; além de ter que estudar sobre a vida do cientista, tive que pensar como seria a vida dele naquele momento, né? Ah… e como eu fiz junto com a Bia, a gente sempre ria muito pensando no que se fazia naquela época”. A fala da discente se aproxima do que é defendido por Cassiani e Almeida (2005), que destacam que muitos registros escritos produzidos pelos estudantes tendem a apresentar um apego à memorização mecânica e à repetição empírica, na tentativa de repetir fielmente o que foi discutido em sala de aula ou cópia de livros. Para as autoras, pode existir um rompimento com esse tipo de prática quando buscamos o prazer no escrever, articulado a diferentes gêneros textuais, por exemplo, a construção de diários. Indo ao encontro da fala da aluna, Lucas respondeu: “Além de eu ter que me preocupar com o português, tinha que pensar na vida do cientista e na química envolvida; mas o fato de escrever na forma de diário facilitou bastante escrever, deixou a gente mais livre, né?[…].
Esses dados preliminares indicam as potencialidades da construção do diário como meio para se discutir e compreender o processo histórico na construção do conhecimento, modificar a visão estereotipada sobre ciência e cientista, bem como incentivara leitura e a escrita para um fim mais significativo nas aulas de Química.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, M. J. P. M; CASSIANI, S; OLIVEIRA, O. B.Leitura e escrita em aulas de Ciências:luz, calor e fotossíntese nas mediações escolares.Florianópolis, SC: Letras contemporâneas, 2008.
CASSIANI, S.; NASCIMENTO, T. G. Um diálogo com as Histórias de Leituras de futuros professores de Ciências. Pro-Posições. Campinas, v. 17, p. 105-136, 2006.
CASSIANI, S; ALMEIDA, M. J. P. M. Escrita no ensino de Ciências: autores do ensino fundamental. Ciência & Educação. Bauru. v.11, n.3, p. 367-382, 2005.
GERALDI, J. W. Portos de passagem. 5.ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
ORLANDI, E.P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 10.ed. Campinas: Pontes Editores, 2012.
KOSMINSKY, L; GIORDAN, M. Visões de ciências e sobre cientista entre estudantes do Ensino Médio. Química Nova na Escola,n. 15, p.11-18, 2002.
USBERCO, João. et al. Companhia das ciências – 9º ano. 3.ed.São Paulo: Ed. Saraiva, 2015.