A política de educação especial no contexto de adaptação do estado brasileiro aos interesses do capital: algumas considerações

foto da autora para artigo na edição especial

Kamille Vaz

Kamille Vaz é doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é professora adjunta A da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Tem experiência como Orientadora Educacional em escola especial e regular de ensino e professora dos anos iniciais do ensino fundamental. Seus interesses de pesquisa são na área de Educação, com ênfase em políticas educacionais, atuando principalmente nos seguintes temas: Política de Educação Especial, professor de Educação Especial, formação de professores e trabalho docente. Integrante do Grupo de Estudos sobre Educação Especial (GEEP) da UFSC e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Especial e Direito Escolar (GEPEEDE) da UFMG.

Wanderlin Alexandre dos Santos Junior

Nesse artigo tivemos o objetivo de desenvolver reflexões acerca da política de educação especial, mais precisamente o Estado e as atuais tentativas de sua adaptação. Quando pensamos na conjuntura atual brasileira é comum nos depararmos com críticas em relação ao Estado, afirmando que ele sofre um desmonte, tendo em vista o enxugamento das políticas sociais e os ataques constantes à classe trabalhadora. Entretanto, se pensarmos o Estado brasileiro como uma instituição que está a serviço do Capital internacional e que sua função, neste momento, está sendo consolidar o projeto de sociedade que compreende o livre mercado como base do seu desenvolvimento, a “não atuação” do Estado é justamente sua atuação mais forte, retirando os direitos adquiridos e considerados pelos neoliberais como excessivos. Como afirma Höfling (2001, p. 37 apud GARCIA, 2017, p. 26),

para os neoliberais, as políticas (públicas) sociais – ações do Estado na tentativa de regular os desequilíbrios gerados pelo desenvolvimento da acumulação capitalista – são consideradas um dos maiores entraves a este mesmo desenvolvimento e responsáveis, em grande medida, pela crise que atravessa a sociedade. A intervenção do Estado constituiria uma ameaça aos interesses e liberdades individuais, inibindo a livre iniciativa, a concorrência privada, e podendo bloquear os mecanismos que o próprio mercado é capaz de gerar com vistas a restabelecer o seu equilíbrio. Uma vez mais, o livre mercado é apontado pelos neoliberais como o grande equalizador das relações entre os indivíduos e das oportunidades na estrutura ocupacional da sociedade.

Tais considerações são evidentes, especialmente após o golpe jurídico-midiático-parlamentar que impeachmou Dilma Rousseff (Partido dos Trabalhadores – PT) da presidência da república em 2016 e tornou presidente seu vice, Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro – MDB). Em meio a esse processo, intensificou-se o debate em torno de regimes ficais para tirar o Brasil de uma suposta crise, culminando na aprovação, em 16 de dezembro de 2016, da Emenda Constitucional (EC) n. 95 (BRASIL, 2016), conhecida como “teto dos gastos públicos”. Com essa EC instituiu-se novo regime fiscal, cujas consequências no médio e longo prazo são, dentre outras, a diminuição de recursos, em especial investimentos sociais, como: educação, saúde e assistência, por 20 anos.

A educação pública é um desses direitos que estão sendo desconstruídos. A exemplo, temos a discussão sobre o novo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o qual deve ser votado no ano de 2020 e que tem, na proposta do Ministério da Educação (MEC), um percentual muito aquém do necessário para garantir a educação pública de todos os estados e municípios brasileiros. Ou ainda, com aprovação da Base Nacional Comum para a formação inicial de professores da Educação Básica (BNC-formação) (BRASIL, 2019) que, em suma, reduz a formação de professores ao ensino de práticas e competências, desconsiderando todo o debate em torno da formação humana e do conhecimento científico. Esses são alguns exemplos de como a educação brasileira está sendo veementemente atacada com a participação ativa do Estado Integral no modelo neoliberal de desenvolvimento. Dessa forma, não estamos em um momento de desmonte do Estado e sim em sua adaptação para atender os interesses hegemônicos do momento histórico que estamos vivendo. 

A política pública de Educação Especial ao longo dos anos, especialmente após a década de 1970, com a criação do Centro Nacional de Educação Especial (CENESP), vem sofrendo algumas alterações. Não é nosso propósito aqui nesse texto abordar cada uma dessas alterações e de que forma isso repercute na educação dos sujeitos público-alvo dessa modalidade de ensino, mas contribuir para o debate sobre a educação especial no interior da Educação Básica em meio às políticas educacionais. 

Vale ressaltar que a política são forças em disputas (GRAMSCI, 1989), ou seja, são produzidas em meio a interesses privados (de grupos específicos) e interesses públicos. A política, nesse caso a educacional, é um processo (OZGA, 2000) que demanda disputas e produções de ideias coercitivamente ou na produção de consentimento ativo (NEVES, 2005). A figura do Estado atua de forma incisiva na produção das políticas, tanto de forma a garantir políticas sociais com o intuito de fazer a “gestão da pobreza” (GARCIA, 2017) quanto na forma coercitiva de retirada dos direitos já adquiridos pela classe trabalhadora.

Para compreender a educação especial e como ela é organizada por meio das políticas educacionais é fundamental compreendermos o Estado e a quem ele serve. A abordagem sobre o Estado na sociedade capitalista está direcionada na análise de um espaço burocrático de efetivação e perpetuação dos ideais burgueses e compreender essa dinâmica é circunstancial para o entendimento do sistema social atual. Para adentrarmos na discussão sobre o Estado é necessário desmistificar a ideia de Estado como espaço de garantia do bem comum e aprofundar a análise sobre aparelho de negociação da burguesia, tendo em vista que as análises de Marx e, mais especificamente, de Gramsci possibilitam a compreensão do Estado como parte da sociedade civil e vice-versa (NETTO, 2009).

O Estado é um importante instrumento para garantir a produção e difusão da hegemonia por meio de políticas e de seus intelectuais orgânicos. Para Gramsci (1976), conceber o Estado apenas por sua característica burocrática, legalista e repressora gera grandes equívocos na concepção da sociedade. O Estado composto pela relação dialética entre sociedade política e sociedade civil pertence à superestrutura e, por isso, “a resposta para a direção política que o Estado exerce na sociedade não deve ser procurada nas instituições governamentais e oficiais, mas nas diversas organizações ‘privadas’ que controlam e dirigem a sociedade civil” (ACANDA, 2006, p. 177). A sociedade civil compreendida como espaço de produção da ideologia, composta pelos aparelhos privados de hegemonia, como igrejas, partidos, sindicatos, ONG’s etc., contribui na legitimação do Estado por meio da produção e reprodução da hegemonia, mas também podem ser constituídas na contracorrente ou em busca de outra hegemonia.

As discussões sobre a escola pública e a participação do Estado brasileiro em sua condução, nessa perspectiva, podem ser exemplificadas pelas políticas de alívio à pobreza e como o Capital utiliza de demandas da sociedade civil para consolidar ainda mais seu objetivo de explorar os trabalhadores (MOTTA, 2011). Essas políticas são implementadas na sociedade por intermédio, muitas vezes, de convencimento da própria classe trabalhadora de que é uma opção para a garantia de direitos reivindicados por ela. Muitas dessas ações são bandeiras de luta de movimento de trabalhadores, tais como: acesso à educação pública e de qualidade, saúde e moradia. Nesse contexto, são incorporadas no projeto do capital como estratégias de convencimento sem que ameacem a estrutura de exploração pertinente para a sua perpetuação e são retiradas sempre que deixam de ser necessárias, exemplo disso: Programa Bolsa Família (VAZ, 2013b), Programa BPC na escola (SILVA, 2017). A escola pública, nessa perspectiva, é mais um campo de litígio em que essas políticas são disputadas com o objetivo de, além de convencer a população com um capitalismo mais “humanizado”, descaracterizar a função desse espaço como formador de sujeitos aptos a refletirem e atuarem na sociedade.

Nesse sentido, localizar o projeto de escola pública na sociedade atual e sua condição de contradição inalienável é uma tarefa histórica e essencial para sua concepção contra-hegemônica (NEVES; PRONKO, 2008, p. 29). 

Ainda que a escola no capitalismo sofra influência preponderante da concepção de mundo burguesa e das necessidades da reprodução da força de trabalho, ela, desde os seus primórdios, vem se constituindo também em demanda da classe trabalhadora para o exercício de tarefas simples e complexas na produção da vida e também para a compreensão das relações sociais historicamente constituídas e do seu lugar nessas relações. A escola pode ser útil à classe trabalhadora como instrumento de barganha por melhores condições de trabalho, como instrumento de alargamento do grau de conscientização política e como instrumento de formulação de uma concepção de mundo emancipatória das relações sociais vigentes. Mas, para que a educação escolar se transforme efetivamente em instrumento de conscientização da classe, ela precisa superar a sua sempre crescente subsunção aos imperativos técnicos e ético-políticos da mercantilização da vida, privilegiando na sua estruturação curricular a omnilateralidade e a politecnia. 

A escola pública, nesse contexto, deixa de ser um mero espaço de reprodução e passa a ser ressaltada como uma possibilidade de contradição. Tais contradições podem auxiliar na elaboração e execução do projeto revolucionário. É nesse modelo de escola pública que pautamos a discussão sobre os sujeitos relacionados à educação especial. Entretanto, analisar a escola atual sem levar em consideração sua função para a manutenção e propagação dos valores capitalistas, ressaltado quando verificamos os reais interesses das políticas educacionais, é não levar em consideração as determinações que a constituem. A relação com a educação especial não é diferente, como faz parte da educação básica, é pensada no conjunto de políticas para a consolidação do projeto educacional. “Tal tarefa demanda considerar a política educacional e a educação especial como determinadas pelas e nas relações sociais, ou seja, são estabelecidas na totalidade de uma sociedade cindida em duas classes sociais fundamentais, capital e trabalho” (GARCIA, 2017, p. 21). Desse modo, é inevitável analisar as políticas específicas para a educação especial contextualizando-as no âmbito das políticas gerais para a educação, do projeto de escola pública e dos objetivos de tais mudanças para o sistema produtivo capitalista.

INDICAÇÕES PARA A POLÍTICA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL NESSE CONTEXTO

É no emaranhado de interesses da relação capital-trabalho, intermediados pelo Estado, que se encontra a educação especial na perspectiva inclusiva, situada no interior das disputas de concepções que direcionam propostas para essa modalidade na educação básica. Mesmo com a revogação do Decreto n. 6.571, de 17 de setembro de 2008 (BRASIL, 2008b), que institui o Atendimento Educacional Especializado (AEE) como estratégia privilegiada da educação dos sujeitos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidade/superdotação, essa perspectiva continua em vigor nas escolas regulares. A proposta da educação especial na perspectiva da educação inclusiva expressa nos documentos oficiais sugere retirar da educação especial o conceito de educação como uma área específica de conhecimento e a reposiciona como Atendimento Educacional Especializado (AEE) nas escolas regulares. Tal política, intensamente divulgada durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores – PT), tem como princípio a matrícula dos alunos com deficiência nas escolas regulares e aborda como suposta garantia de sucesso o AEE nas salas de recursos multifuncionais. 

Esses documentos analisados são, como afirma Garcia (2017, p. 19), “[…] fontes documentais representativas da política educacional que expressam o resultado, num tempo e espaço históricos, da disputa e consenso de ideias travadas por diferentes forças sociais”. A exemplo disso, durante o primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT) foi lançado o Decreto n. 7.611, de 17 de novembro de 2011 (BRASIL, 2011), que volta a incorporar as instituições privado-assistenciais, e, em 2014, com a aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE), em sua meta 4, são possibilitadas outras formas de atendimento e parcerias para além das escolas regulares (GARCIA, 2017). Essas evidências demonstram as disputas políticas da sociedade civil em torno da educação especial, especialmente pelo seu financiamento. Importante ressaltar esses momentos, pois corporificam a discussão sobre a participação do Estado Integral na proposição de políticas educacionais e como o Estado vai se adaptando à medida que ocorrem as pressões hegemônicas.

Em 2016, Michel Temer (MDB), então vice-presidente, foi alçado ao posto de presidente após o golpe jurídico-midiático-parlamentar que impeachmou Dilma Rousseff (PT), acirrando no Brasil uma agenda política mais alinhada aos preceitos neoliberais, como já mencionamos. Na educação especial não foi diferente, como, ao longo da sua história, sua concepção estava sendo pressionada pelas “forças conservadoras” e as “forças da inovação” (GARCIA, 2017), em 2018 foi lançada pelo MEC uma proposta de atualização da política de educação especial de 2008. Tal minuta, intitulada Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e ao longo da vida (BRASIL, 2018), foi publicada no seu portal para consulta pública. A justificativa para essa alteração estava pautada, principalmente, no discurso de que se passaram 10 anos da última versão da política de educação especial, a qual precisava ser revista, já que não logrou êxito segundo suas análises. 

Apesar de admitirem que o número de matrículas dos estudantes da educação especial aumentou consideravelmente nas escolas regulares após a política de 2008, a justificativa governamental para o não êxito da política está na falta de condições, tais como: professores despreparados; falta de atendimento especializado pasa todos os estudantes da educação especial; pouca articulação entre os professores do AEE e da sala de aula regular; dentre outros. As críticas apresentadas são feitas também por quem se dedica a compreender essa política no âmbito da escola pública, não somente para criticá-la, mas por entender que o objetivo primordial da educação desses sujeitos é o acesso ao conhecimento. Entretanto, não podemos deixar de mencionar que o AEE representou, ao longo da década, a ampliação do espaço público para esses sujeitos e que isso, na história da educação especial no país, é um marco.

A pergunta que precisa ser feita é: essa nova proposta que critica o modelo de atendimento da política de 2008 está pautada na importância do acesso ao conhecimento ou na necessidade de ampliação do lócus de serviços, assim, distribuição de recursos públicos para setores não-públicos? Na última opção, qual o mote para essa atualização, o conhecimento ou o financiamento?

Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro (sem partido), a proposta de atualização da política continuou em andamento, sendo demonstrada pela extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e a criação da Secretaria de Modalidades Especializadas de Educação (SEMESP), tendo como sua secretária Ilda Ribeiro Peliz, ex-presidente da Abrace de Brasília. A SEMESP é organizada em três diretorias: Diretoria de Educação Especial, Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue e Diretoria de Modalidades Especializadas de Educação e Tradições Culturais Brasileiras, as quais apresentam grande sintonia com a proposta de alteração da política, priorizando atendimentos em instituições especializadas por tipo de deficiência e a ampla participação de setores empresariais e privado-assistenciais na sua execução.

A argumentação que endossa a alteração política está ancorada na ideia do slogan “Nada sobre nós sem nós”, presente na própria minuta, trazendo a ideia de uma suposta participação dos sujeitos na construção da nova proposta política. A utilização de slogans na produção do discurso objetiva o convencimento, a indução de um hipotético pertencimento. No entanto, essa ideia da liberdade de escolha individual, que podemos trazer para esse contexto específico, enfatiza a educação como mercadoria, a qual pode ser consumida a depender do interesse individual, isto é, afasta a compreensão sobre a educação como direito social (GARCIA, 2017) e alinha aos ideais neoliberais.

O discurso por uma educação em prol do respeito às diferenças e do respeito aos interesses individuais, ao mesmo tempo em que se coloca como oposição ao propagado pelas políticas educacionais, especialmente a partir de 2008, não se desvincula da perspectiva inclusiva, corroborando a ideia de que o termo inclusão apresenta, ao menos, duas perspectivas: a) a de caráter mais pedagógico, que inclui os estudantes da educação especial na escola regular, e, agora, ampliado para a inclusão nas instituições especializadas; e b) a inclusão de sistemas empresariais e privado-assistenciais no conceito de sistema educacional inclusivo, como previsto pelo Banco Mundial (BM, 2011), expandindo para sistemas não formais (GARCIA, 2017). Aqui, o termo inclusão engloba desde as escolas regulares e instituições especializadas até os empresários e o setor privado.

A utilização do conceito inclusão, nesse sentido, indica a vinculação do projeto educacional em pauta, viabilizado pelo Estado, com a educação especial. Na análise da documentação específica é perceptível a mudança de concepção sobre a educação especial, que ora é substitutiva ao ensino comum ora está transposta em serviço especializado nas escolas regulares. Em consonância com a mudança de concepção sobre esse campo de conhecimento estão as alterações conceituais que nomeiam essa política e que, possivelmente, contribuem para essas novas perspectivas. Com base nessas discussões, podemos afirmar que a educação especial faz parte do projeto educacional e que este sofre intervenção por meio das políticas do Estado, ou seja, o Estado não está desmontado, mas sim é adaptado para atender os interesses do Capital nesse momento histórico. 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Na construção deste artigo tivemos a intenção, mesmo que de forma tímida, de contribuir com o debate em torno das alterações propostas para a educação especial, mais especificamente como o Estado brasileiro vem atuando para a consolidação dessa perspectiva. Partimos do pressuposto que o Estado não está desmontado e sim em processo de adaptação para atender as novas exigências do sistema produtivo. No caso específico da educação especial, grosso modo, se em algum momento foi importante educar esses sujeitos no modelo de escolas de massa para capacitá-los ao trabalho simples (VAZ, 2017), hoje, ao que tudo indica, não é mais esse o objetivo. Nas questões específicas, a hegemonia do discurso conservador e que guarda relação com interesses de grupos específicos sobre a educação especial ganhou força nos últimos anos, culminando na proposta de alteração da política. Podemos indicar que a educação especial passa, retoma ou assevera para uma questão e responsabilização individual e não coletiva.

A proposta de alteração da política de educação especial está diretamente relacionada ao modelo econômico pautado para o país. Com a aprovação da EC n. 95 e a diminuição progressiva de investimentos na educação por 20 anos, retirar a obrigatoriedade da educação especial nas escolas regulares e transferir a verba destinada a ela para o setor privado-assistencial parece muito mais um projeto ideológico/político do que uma questão de “protagonismo” dos sujeitos envolvidos diretamente. A grande questão que deve ser colocada em pauta é que tipo de educação está sendo pensada para os estudantes da educação especial?

Ao longo da história da educação especial o acesso ao conhecimento nunca foi o mote na aprendizagem desses sujeitos (JANNUZZI, 2012), ou ainda, segundo Bueno (2011, p. 23), “[…] se restringiu à adaptação de procedimentos pedagógicos às dificuldades geradas pela deficiência”. Com a política de educação especial na perspectiva inclusiva e a sua reconversão para o modelo do AEE (VAZ, 2013), restringiu-se ao conhecimento de materiais e técnicas de ensino relativos à própria deficiência, o que permite destacarmos que não houve mudança significativa no que diz respeito ao modelo de educação para esse sujeitos. Com a proposta de alteração da política retornamos e/ou permanecemos no modelo de educação que persiste ao longo da história desses sujeitos. Importante ressaltar que, apesar de alterações realizadas ou propostas para a educação especial no país, a discussão sobre a escolarização desses sujeitos ficou subjugada ao acesso à escola regular ou aos procedimentos pedagógicos relacionados ao diagnóstico da deficiência. 

Cabe-nos refletir sobre o direito social de esses sujeitos terem acesso ao conhecimento científico produzido pela humanidade, o qual vem sendo negado. Com a entrada na escola regular, a possibilidade de adquirirem tal conhecimento foi potencializada pela categoria de contradição inerente à escola, entretanto, a política educacional continuou coerente com o modelo presente nas bases de uma escola tecnicista e com influências na teoria do capital humano (VAZ, 2017). Agora, com a proposta de alteração, vemos essa condição de não escolarização de forma ainda mais acirrada. 

Como professores e pesquisadores, devemos refletir sobre o objetivo primordial para com os estudantes público da educação especial, se é na escola pública que possivelmente terão acesso ao conhecimento científico, é nessa escola que eles devem e têm direito de estar. A discussão deve estar para além do acesso ou não à escola regular, pois, assim como os demais estudantes em idade escolar, os sujeitos da educação especial também devem estar na escola. A discussão deve estar pautada numa educação especial escolar, em que esse sujeito tenha garantido seu direito à educação, ao conhecimento científico. A luta é por um projeto de escola pública que permita esse acesso ao conhecimento com as condições necessárias para aprendê-lo e não sobre se eles devem ou não estar na escola. Como afirmou Garcia (2017, p. 60), “[…] é urgente propor na educação básica brasileira, inclusive para os estudantes vinculados à modalidade educação especial, uma formação humana abrangente com vistas à formação de leitura crítica consistente da realidade social”. Precisamos pensar na educação especial para além da inclusão, mas como uma educação de fato escolar de qualidade socialmente referenciada.

Essas primeiras impressões a respeito da proposta de alteração das políticas e do Estado brasileiro nesse processo indicam a necessidade de produção de conhecimento a esse respeito com pesquisas embasadas cientificamente para a compreensão da realidade concreta e de toda a sua complexidade. 

REFERÊNCIAS

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