Foto De Uma Sala De Aula De Banco De Imagem Gratuíto Que Representa Uma Escola Regular

A criança com deficiência na escola regular: um olhar para as potencialidades e possibilidades

jéssica germano

Jéssica Germano

Graduação em Pedagogia (2011-2015) pela Universidade Estadual de Londrina com participação do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Especial; Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina com ênfase em Educação Especial. Docente de educação infantil desde 2014 com breve passagem pelo ensino fundamental e coordenação pedagógica; atualmente professora de educação infantil da rede municipal de ensino de Gaspar-SC.

E-mail: jessicaa_bnu@hotmail.com

Sabe-se que o histórico de escolarização de pessoas com deficiência ocorreu prioritariamente em instituições especiais, distante das escolas regulares de ensino. No entanto, o reconhecimento dos processos discriminatórios e excludentes a que foi submetida essa população propiciou o desenvolvimento de políticas públicas que favorecessem e garantissem a participação desses sujeitos em diferentes esferas sociais, incluindo o acesso, a permanência e efetiva aprendizagem na escola comum (BRASIL, 2008).

Devido a isso, na última década houve um aumento expressivo de alunos com necessidades educacionais especiais (NEE) matriculados na rede regular de ensino. Por outro lado, ouvem-se e acompanham-se relatos de experiências de professores com inúmeros questionamentos sobre o atendimento desses alunos, muitas vezes frustrados ou então resistentes e nada flexíveis.

No entanto, as dificuldades referentes às limitações encontradas pela escola e seus profissionais quanto ao atendimento de alunos com NEE não se pautam primeira e unicamente às experiências vivenciadas na sala de aula, embora a educação formal apresente um histórico de práticas rígidas e currículo estático que não contemplem a pluralidade e as especificidades dos grupos/turmas. Isso porque, antes do contato (físico) diário, o julgamento prévio e a interpretação sobre esses sujeitos, que está fortemente ligada a limitações, incapacidades e não-aprendizagem, influenciam significativa e negativamente no cotidiano escolar.

Tais interpretações descendem de uma construção social sobre o conceito de deficiência e as demais disfunções orgânicas que constituem o público-alvo da educação especial, julgam limitador, difícil e impossível o processo educativo dessas pessoas e muitas vezes corrompem e impedem um histórico escolar favorável e efetivamente inclusivo, apesar do acesso ao ensino regular (VYGOTSKI, 1997).

Se recorrermos a Vygotski (1997), em estudos sobre a defectologia, faremos uma reflexão inversa sobre o processo de escolarização na escola regular. Compreendendo, respeitando e valorizando as diferentes formas de aprender e identificando as possibilidades e potencialidades de cada sujeito, apresentando necessidades educacionais especiais ou não.

Relacionando a realidade prática com os fundamentos teóricos aqui apresentados, os textos imagéticos encontram-se como uma possibilidade de contribuir para o desenvolvimento da comunicação (linguagem) e das habilidades cognitivas das crianças com Síndrome de Down e deficiência intelectual.

Pensando em cada criança e cada pessoa com dificuldades particulares no processo de aprendizagem, os instrumentos ou procedimentos metodológicos adotados como mediadores neste processo podem favorecer na superação das dificuldades e promover o desenvolvimento desses indivíduos.

Nesse contexto, em defesa do acesso, da permanência e do efetivo desenvolvimento das pessoas com NEE na escola de ensino regular e permeadas pelas contribuições teóricas, com base nos pressupostos Vygotskianos, é que se desenvolveram as reflexões e a prática aqui manifestadas.

Caracterização do espaço, do grupo e do estudante

A experiência aqui relatada se desenvolveu no ano de 2015 em uma turma de educação infantil constituída por quatorze alunos com faixa etária entre 4 e 8 anos de idade. A turma está inserida em uma escola regular de caráter privado de pequeno porte[1] em um município com 506.701 habitantes localizado no norte do Paraná (IBGE, 2010).

Com período de atendimento exclusivamente vespertino, a escola tem como proposta pedagógica um ensino mais humanista, natural e crítico-reflexivo, centrado no aluno e no desenvolvimento de sua autonomia.

A turma que contextualiza esse relato de experiência tinha uma configuração heterogênea e diversificada nos mais diversos aspectos: físicos, emocionais, culturais, sociais e cognitivos. Supõe-se que essa é a realidade de grande parte das turmas nas mais diferentes escolas, devido à pluralidade cultural e étnica/racial do país, bem como de repertórios vivenciados por cada indivíduo na sua subjetividade.

Inserido neste grupo heterogêneo, encontrava-se Hugo[2], um garoto de 8 anos de idade com Síndrome de Down e deficiência intelectual. Apesar da idade cronológica, naquele momento, o aluno apresentava estatura aproximada dos colegas de turma, que tinham idade média de 4 anos, não estabelecia comunicação oral e demandava ajuda para utilizar o banheiro.

Neste contexto, acompanhei Hugo nas suas atividades diárias, junto aos colegas de turma, da professora regente e dos que frequentavam o ambiente escolar.

O aluno com necessidade educacional especial na classe regular de educação infantil

Para Vygotski (1997) a deficiência e todos os atributos e qualidades a ela relacionados é um constructo social mutável permeado de valores ideológicos de acordo com um modo de organização social. Na estrutura da sociedade capitalista, em que a valorização da eficiência manual e intelectual no mercado de trabalho está vigorosamente presente, a insuficiência de um órgão ou a sua falta em um indivíduo representa uma condição limitada de suas ações, conferindo-lhe aspectos desfavoráveis de incapacidade e improdutividade na participação social e, imediatamente, no processo de escolarização.

Embora as Políticas Nacionais de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva favoreçam a participação e escolarização de alunos com NEE na rede regular de ensino, sabe-se que a concepção de deficiência que permeia as reflexões e práticas relacionadas a esse público-alvo ainda está relacionada às limitações e incapacidades.

Após longos anos de investigação sobre a formação social da mente e desenvolvimento humano, Vygotski (1997) reconhece que uma das formas de superação dessa condição excludente e marginalizada da criança com deficiência na escola regular seria perceber e considerar que todas as crianças, mesmo as que não dispõem de qualquer NEE, apresentam, em algum momento da vida escolar, dificuldade de aprendizagem e necessitam de condições distintas para aprenderem e se desenvolverem. Em ritmos, dimensões e com necessidades de instrumentos mediadores diferentes, as crianças aprimorarão as suas capacidades físicas e cognitivas quando a ênfase estiver nas potencialidades, capacidades e habilidades já alcançadas ou que estão em desenvolvimento.

Pautado neste pressuposto teórico e promovendo uma reflexão sensível sobre a realidade com o aluno que apresenta uma NEE, certamente o professor encontrará caminhos nas tentativas e favorecerá uma prática que efetive o desenvolvimento das funções psíquicas superiores do aluno e promova a participação desse indivíduo na turma e na escola de ensino regular, visto que “ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação” (FREIRE, 2018, p. 36; VYGOTSKI, 1997).

Com base neste suporte teórico, busquei estabelecer relações com o Hugo e perceber caminhos que pudessem ampliar a comunicação do menino com os seus pares e com as professoras, já que não apresentava comunicação verbal, embora expressasse-se em gestos corporais e expressões faciais.

Ao longo das primeiras semanas de convívio, foi possível identificar os interesses e os movimentos feitos por Hugo em relação ao espaço e aos colegas. Diante de algumas observações, notei que Hugo se tratava de um menino observador, curioso, visual e tátil. Dentro de inúmeras possibilidades oferecidas pela professora, como: aquarela, histórias contadas, músicas, danças, fotos, brincadeiras em espaços cobertos e externos, livros, revistas, fantasias, parque de areia, horta, alimentação, higiene, convívio com os animais (galinha, tartaruga, coelhos, cachorros e gatos), brincar na água, culinária e aula com professor de música, Hugo ficava por longos períodos debruçado em livros e revistas, observando as fotos da turma que enfeitam o espaço e observando os animais e a rotina do grupo.

Tendo em vista que, para Vygotski (1991, p. 24), “a relação entre o uso de instrumentos e a fala afeta várias funções psicológicas, em particular a percepção, as operações sensório-motoras e a atenção, cada uma das quais é parte de um sistema dinâmico de comportamento”, recorri ao uso dos textos imagéticos, fotos, livros e revistas enquanto instrumentos mediadores no desenvolvimento da linguagem, do pensamento e da comunicação entre Hugo e os demais (seus pares, professoras e todos que frequentavam a escola).

O procedimento inicial adotado foi dispor de livros com diferentes imagens para a seleção de leitura de Hugo, que tinha por preferência a temática de animais. Enquanto ele folheava esse material, a professora questionava sobre a localização de alguns animais e objetos presentes na cena. Durante toda a leitura, o aluno manteve-se concentrado, identificando e indicando aquilo que era dito pelas professoras, ao mesmo tempo em que assimilava outras novas informações.

Já na primeira experiência percebemos, eu e a professora regente, alguns conhecimentos de Hugo que não imaginávamos. Um repertório considerável de palavras que contemplavam, especialmente, uma lista de animais (de domésticos a selvagens) e objetos.

Essa realidade reafirma que,

“[…] mesmo nos estágios mais precoces do desenvolvimento, linguagem e percepção estão ligadas. Na solução de problemas não verbais, mesmo que o problema seja resolvido sem a emissão de nenhum som, a linguagem tem um papel no resultado […] e um aspecto especial da percepção humana – que surge em idade muito precoce – é a percepção de objetos reais” (VYGOTSKI, 1991, p. 25).

Portanto, ainda que não se utilizasse da comunicação verbal, Hugo demonstrava, por intermédio dos textos imagéticos, livros e ilustrações, um conjunto de conhecimentos por ele apropriados, enquanto estabelecia processos de assimilação, apreendendo novos saberes e desenvolvendo as suas capacidades.

A experiência inicial foi favorável e com o uso desse recurso outros tantos aspectos foram significativamente notados, como: maior concentração, alegria, prazer (perceptível pelo semblante de satisfação), participação, curiosidade, interesse e serenidade. Desde então, uma das práticas nesse cotidiano escolar aliava, portanto, a fala das professoras (minha e da professora regente) e muitas vezes dos pares, ao uso dos textos imagéticos, fotos, livros e revistas.

Considerando que a leitura desses instrumentos favorece o trabalho mental e com o objetivo de ampliar o repertório, as percepções e favorecer os processos cognitivos de Hugo, interferimos gradativa e repetidamente, utilizando-nos dos mesmos instrumentos, no entanto com outras ilustrações, cenas, situações, seres e diferentes abordagens pela professora. Como alguns exemplos: solicitar que identifique os colegas do grupo em fotos, que localize a menina triste na cena, o cachorro que está latindo, a maior flor e, ainda, que identifique a ausência de objetos, pessoas ou outros seres no cenário, dentre inúmeras outras situações e possibilidades vivenciadas nessa realidade com o uso dos textos imagéticos.

Do que pôde ser percebido pelas professoras, Hugo demonstrou apropriar-se das interpretações sociais sobre os objetos, cenas, seres, e um leque de conteúdos e percepções abordadas. Quando na recorrência das leituras acompanhado, identificava e indicava situações, cenas e objetos solicitados em momento anterior, mas não compreendidos.

Com grande potencial de serem considerados nos processos de aprendizagem e repensados diante de cada contexto, grupo e criança, os textos imagéticos são instrumentos reais e significativos, no entanto devem ser cuidadosamente percebidos e sistematizados pelo educador, visto que “[…] as necessidades e as potencialidades dos sujeitos, no momento da leitura, estão atreladas aos estímulos dados pelo contexto sócio-histórico-cultural […]” (CASTRO, 2008, p. 312).

Os resultados dessa experiência com Hugo e o seu grupo exemplificam também sobre a importância de sugerir e oportunizar momentos em que esse instrumento seja utilizado pelas demais crianças em relação àquela com NEE. Tão necessários quanto as interferências realizadas somente pelo educador, pois não limitam-se, assim, as relações da criança com NEE ao professor (seja ele regente ou de apoio) na escola regular , o que beneficia não somente o desenvolvimento social e cognitivo de ambos como favorece a percepção da criança sem NEE sobre as potencialidades da pessoa com deficiência. Tais considerações têm em vista que a constituição humana é de aspecto social e a criança aprende e se desenvolve diante das relações com o meio e com os outros (VYGOTSKI, 1997).

Neste caso, as crianças demonstravam-se confiantes nas suas falas e seguras na apropriação de Hugo sobre o assunto, que ao mesmo tempo sentia satisfação no contato com os seus pares. A experiência realizada pelas crianças contribuiu nas interpretações que fizeram referentes aos gestos e expressões corporais e faciais utilizadas por Hugo, portanto, favoreceu a interação e a comunicação, bem como ampliou os convites às brincadeiras e outras vivências.

Sobre isso, Vygotski (1997) afirma que condições como essas propiciam o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, e os resultados de investigações experimentais demonstram a importância da educação coletiva e heterogênea para o aprimoramento dos processos psicológicos da criança. Deste modo, mostram-se importantes, no desenvolvimento da criança com deficiência intelectual, as amplas oportunidades de interação social, que se encontram na coletividade infantil (VYGOTSKI, 1997).

Justifica-se, por sua vez, a importância da escolarização da pessoa com NEE no ensino regular e a luta diária que devemos estabelecer para a garantia desse direito ao lidar com as diversidades e pluralidades. Deve-se Oportunizar também a efetiva participação com autonomia na rotina escolar e nas atividades diárias, das mais simples (higienizar as mãos, calçar o tênis, trocar de roupa, etc) às mais desafiadoras (pular corda, montar um quebra-cabeça, desatar um nó, etc).

Considerações finais

Embora as políticas educacionais inclusivas sejam um grande avanço na superação dos processos segregativos das pessoas com deficiência e com outras necessidades educacionais especiais, a realidade, muitas vezes, denuncia uma nova forma de segregação no interior da escola regular. Pautadas em uma concepção de deficiência que considera as limitações e impossibilidades desses indivíduos, as práticas se efetivam excludentes e colocam à margem dos processos educativos aqueles em que não se observam ganhos, conquistas e possibilidades diante de um currículo definitivo e rígido.

É urgentemente necessário que rompamos com essa concepção limitadora de desenvolvimento das crianças com NEE, que subestima e suprime as oportunidades e experiências, tão importantes e necessárias para um crescimento saudavelmente integral, no ponto de vista físico, social, cognitivo e intelectual desses meninos e meninas.

No contexto educacional aqui apresentado, o uso dos textos imagéticos e de outros recursos visuais como instrumentos mediadores nos processos educativos de uma criança com Síndrome de Down e deficiência intelectual foi favorável e trouxe benefícios para o seu desenvolvimento e participação na turma e na escola.

Diante disso, devem ser considerados e avaliados, no interior de cada contexto educacional, os recursos, meios e instrumentos que favoreçam práticas que garantam não somente o acesso, mas a permanência e o efetivo desenvolvimento, ao mesmo tempo em que são promovidas as oportunidades de interação com os pares, demais indivíduos e o meio.

Esse trabalho requer do professor compreender que a formação escolar em espaços regulares de ensino é direito e, conforme Vygotski (1997), condição significativa para o desenvolvimento integral de todas as crianças, inclusive daquelas com deficiências e outras necessidades especiais. Além disso, exige um olhar sensível e flexível sobre os processos educativos e as diferentes necessidades, dificuldades e formas de aprendizagem em ritmos, espaços ou com recursos específicos, entendendo que as crianças, sobretudo as denominadas público-alvo da educação especial, demandam um olhar incentivador que respeite as suas particularidades, valorize e estimule o desenvolvimento das habilidades e potencialidades em cada uma delas.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

CASTRO, A. S. A. As crianças com Síndrome de Down e a leitura de textos imagéticos. In: ALMEIDA, M. A.; MENDES, E. G.; HAYASHI, M. C. P. I. (Org). Temas em educação especial: deficiências sensoriais e deficiência mental. Araraquara, SP: Junqueira&Marin, 2008, p. 306-314.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 57 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cidades: Londrina. Disponível em: <https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pr/londrina/panorama>. Acesso em: 18 nov. 2019.

VYGOTSKI, L. S. A formação social da mente. Revisão da tradução: Monica Stahel M. da Silva. 4  ed. São Paulo – SP: Martins FontesEditora Ltda, 1991

VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas V: Fundamentos de defectología. (Tradução Julio Guillermo Blank), Madrid: Visor, 1997.

[1] O número de matrículas não ultrapassa sessenta (60) estudantes com faixa etária entre 3 e 11 anos de idade.

[2] Nome fictício.

GERMANO, Jéssica.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 4, Número Especial Educação Especial Escolar,março,2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Photo by Mwesigwa Joel on Unsplash

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