Miguel De Barros

Xé menino, não fala política: a escolinha da “velha Chica”

Marcelino Mendes

Marcelino Curimenha

Doutorando em Educação pela UNICAMP, Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação e Diferenciações Socioculturais (GEPEDISC). Linha de Pesquisa: Trabalho e Educação. Mestre em Educação pela UFRGS. Licenciado em Filosofia e Graduado em Gestão Financeira pela ULBRA.

Contato: curimenha@hotmail.com

Angola é um país disciplinar, organizado em torno de certos costumes tradicionais que gerenciam a etiqueta do comportamento social. É um espaço no qual os usos e costumes se confundem com as normas estabelecidas por leis e decretos presidenciais. Em algumas atividades e pensamentos, prevalece o senso comum, acordado nas cumplicidades das relações sociais e propagado em diferentes mecanismos de comunicação, tais como músicas, ditados populares, provérbios, entre outros, que determinam certas normas de policiamento de si e do outro. 

Por exemplo, a música Velha Chica, lançada em 1999 pelo compositor angolano Waldemar Bastos, nascido na cidade de M’Banza Congo, foi amplamente consumida pela sociedade angolana. Embora o músico tenha composto essa canção com a intenção de descortinar uma temática cara ao contexto angolano, da liberdade de expressão e da construção de um ambiente democrático, onde o questionamento deveria ser naturalizado, ela teve seu efeito contrário. Sua estória e discurso tiveram um certo papel no imaginário coletivo e contribuíram na constituição da sociedade angolana em relação à vigilância do pensamento, do dito e não dito. 

 

VELHA CHICA, UMA PROFESSORA DO SEU CONTEXTO

A música conta a estória da velha Chica, senhora humilde que nutria certos conhecimentos e até mesmo sabedoria, adquiridos na experiência dos anos. Os meninos na escola, desprovidos de informações necessárias para compreenderem as origens do sofrimento em Angola, recorrem à velha Chica (termo usado no contexto angolano como expressão de carinho e respeito), para solucionar esse enigma.  

O idoso ou idosa na cultura bantu eram vistos como reservatórios da história oral, seu conhecimento conservado, ao sobreviver ao milagre do tempo, tornava-se uma espécie de biblioteca viva, de maneira que os miúdos, mesmo frequentando a escola, tinham, na velha Chica, uma pedagoga, uma historiadora e analista social. A letra da música diz o seguinte:

Antigamente, a velha Chica vendia cola e gengibre. E, lá pela tarde, ela lavava a roupa do patrão importante. E nós, os miúdos lá da escola, perguntávamos à vovó Chica: qual era a razão daquela pobreza, daquele nosso sofrimento? Xé menino, não fala política! Não fala política, não fala política! Mas, a velha Chica embrulhada nos pensamentos, ela sabia, mas não dizia a razão daquele sofrimento (BASTOS, 1999, online). 

A resposta da velha Chica foi taxativa: xé menino, não fala política. A reação fornece certa ênfase e as repetições precisam ser reforçadas para que os meninos compreendam que existem certas zonas em que as fronteiras estão construídas com limites inegociáveis. O “xé menino, não fala política” fecha o diálogo, silencia o questionamento. 

QUESTIONAMENTO SILENCIADO

Há um conselho explícito nessa ritualização do sistema de ensino cultural. A velha Chica, como “biblioteca viva” da história vivida, prescreve aos meninos vindos da escola ensinos extraescolares. Na cultura bantu, esses ditos ganham mais relevância do que o conhecimento escolarizado já que determinam quais tomadas de decisões seguir para o bem viver. 

Tais recomendações podem ser entendidas da seguinte forma: nem tudo é para ser questionado, mesmo que se problematize um tema relevante sobre nós; há uma ordem implícita, existem zonas proibidas e perigosas que não devem ser mexidas, nas quais a posição do sujeito seria apenas o conformismo às normas vigentes; há um aniquilamento do ato de pensar naquela resposta, os meninos, ao frequentarem a escola, exercitavam uma análise crítica da realidade em que estavam inseridos. 

Esse pensamento se coaduna com um fato histórico pós-colonial que contribuiu para sedimentar uma educação doméstica de enclausuramento contra qualquer desejo que potencializasse uma reivindicação dos direitos do cidadão angolano, mesmo aqueles promulgados na constituição, reafirmados em decretos e prometidos em discursos presidenciais.

O episódio do 27 de maio de 1977, tentativa frustrada de golpe de Estado por militantes dissidentes no seio do MPLA (Movimento Popular de Libertação Nacional), permitiu uma resposta brutal e sangrenta contra os considerados fraccionistas², liderados por Nito Alves, resultando em milhares de mortes. Esse acontecimento permeou as ruas de Luanda, entrou nas casas dos angolanos, atravessou os corredores acadêmicos, infiltrou-se nas cumplicidades familiares, invadiu intimidades e constituiu regras de como se policiar ao falar sobre política de forma pública.  

O 27 de maio foi possivelmente o episódio mais traumático do pós-colonialismo em Angola, sobretudo porque foi uma depuração dentro do próprio partido e para sobreviver as pessoas começaram a ser camaleões. Aquilo repercutiu e os pais passavam medo aos filhos… os filhos tinham medo sem saber de quê (GONÇALVES, 2016, p. 167-168).

Portanto, o “xé menino, não fala política”, da velha Chica, sepulta essa potencialidade cultivada pela curiosidade dos pupilos que frequentam a escola. E, por último, há todo um discurso sobre quem tem o direito de falar e quem está legitimado a ponderar certos assuntos da sociedade. Foi o professor angolano que considerou o regimento de como se estabelece a educação no território angolano:

Temos, desde logo, uma educação que se associa aos moldes da tradição cultural africana e que apresenta sempre o mais velho e o líder como detentores inquestionáveis de saberes e do conhecimento, e quem se atreve à ruptura ou renegação desses valores pode ser visto como à margem, como mal-educado. É isso que leva nossa sociedade à estagnação, sem diálogos, sem interação por não haver diversidade no pensamento e na maneira de entender o processo de ensino. E assim, se deu e se desenvolveu o processo de ensino, desde a proclamação da independência (MASSANGA, 2013, p. 115). 

Existe aí nessa resposta da velha Chica todo um olhar de gestão aos questionadores, eles são apenas meninos, a idade não permite cogitar certas possibilidades sobre a origem do sofrimento. Ora, esses conselhos são acompanhados também com certos adágios populares que legitimam as orientações da velha Chica, do tipo: “na boca do mais velho pode sair dente pobre, mas não faltam palavras sábias”, “o mais velho sempre tem razão”. 

Portanto, o olhar da velha Chica gerencia o posicionamento legal em que os meninos devem se situar. Os miúdos não podem pensar sobre aquilo que é assunto do Estado, dos mais velhos, dos saberes maiores. Existe uma hierarquia que verticaliza o grau de importância de quem pode falar. Em relação a esse tipo de controle, Rose (1988) tem certa preocupação em relação aos

Novos regimes de verdade instalados pelo conhecimento da subjetividade, [às] novas formas de dizer coisas plausíveis sobre outros seres humanos e sobre nós mesmos, [ao] novo licenciamento daqueles que podem falar a verdade e daqueles que estão sujeitos a ela, [às] novas formas de pensar o que pode ser feito a eles e a nós (ROSE, 1988, p. 4).

Embora a velha Chica estivesse provida da resposta, enclausurou a questão dentro do proibido. A época na qual a narrativa acontece era de invisibilidade do sujeito angolano, como cidadão participativo e integrante das questões políticas e do gerenciamento do destino coletivo. 

A realidade colonial determinava quais tipos de diálogos eram possíveis. Isso estabeleceu uma vigilância de si mesmo, além de um certo retraimento na exposição relacionada aos sofrimentos vivenciados por todos. Apesar de ela saber a razão do sofrimento, manteve-se em silêncio, “embrulhada em pensamentos”. Esse saber enclausurado prolongou-se até certo período, “e o tempo passou e a velha Chica, só mais velha ficou. Ela somente fez uma kubata com teto de zinco, com teto de zinco” (BASTOS, 1999, online). 

COLONIALISMO E O PODER DE SOBERANIA

O modo como a velha Chica se policiava e buscava frear a curiosidade dos seus pupilos em relação à realidade em que viviam é rompido e descontinuado a partir de um acontecimento específico, a libertação nacional de Angola que aconteceu em 1975. Logo, ela desabafa aos antigos indagadores, como narra a canção: “xé menino, posso morrer, posso morrer! Já vi Angola independente”. O sofrimento era colonial, o enclausuramento se estruturava a partir das formações discursivas coloniais que gerenciavam os angolanos autóctones. 

O prenúncio de morte da velha Chica denuncia o seu silêncio. A política colonial era uma política de morte. Primeiro, das vozes que não poderiam ser ouvidas e, em segundo lugar, de uma política de gerenciamento dos corpos instrumentalizados apenas para o trabalho manual, visando ao comportamento dócil, no sentido de ser manipulável.

No período colonial, funcionava um determinado poder que o filósofo francês Michel Foucault vai nomear como poder de soberania. O poder como soberania era um poder dos reis, que consistia no poder visível, majestoso. A coerção se exercia pelo medo e pelo exemplo, objetivando o controle dos territórios e dos bens. 

Era no poder do soberano que se realizavam o direito de matar e o surgimento dos suplícios. Caso alguém transgredisse aquilo que era considerado como norma ou regra, o rei poderia destruir o corpo do transgressor, e isso era representado na tortura e no suplício. No livro Vigiar e Punir, Foucault começa com uma longa e detalhada descrição de um dos últimos suplícios realizados na França em meados do século XVIII. O que estava em jogo aqui (no conceito de poder de soberania) era o fazer morrer aqueles que fogem às normas e permitir viver aqueles que obedecem às leis. 

Na necropolitica, conceito desenvolvido por Mbembe (2016), de inspiração foucaultiana, o autor africano aponta como a funcionalidade do poder em determinados territórios ou população opera ainda como soberania, produzindo uma política de extermínio e de produção da morte, fazendo referência ao pensamento de Foucault de que

A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização. Quando vocês têm uma sociedade de normalização, quando vocês têm um poder que é, ao menos em toda sua superfície e em primeira instância, em primeira linha, um biopoder, pois bem, o racismo é indispensável como condição para poder tirar a vida de alguém, para poder tirar a vida dos outros. A função assassina do Estado só pode ser assegurada desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo (FOUCAULT, 2005, p.306).

Vale ressaltar que Foucault não abordou sobre racismo pensando na comunidade negra, mas sim na judaica. Sua perspectiva de racismo aponta sobre qualquer tipo de substancialização de um determinado grupo que é estereotipado e que se identifica como uma raça no qual a necropolitica pode ser instrumentalizada.

 A necropolitica como poder de soberania é uma política de morte seletiva ou em série da população negra, judaica, religiosa, ou de pessoas pobres, identificadas na maioria das vezes com a criminalidade ou a marginalidade. O conceito de necropolitica recupera a análise de Foucault, do poder de soberania, enfatizando como isso hoje continua operando com intencionalidade pela dinâmica da disciplina, do biopoder e da biopolítica. Portanto, como articula Fanon (1968): 

O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escola para indígena e escolas para europeus […] A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado […] Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência […] O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado […] Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação de valores […]. Por vezes este maniqueísmo vai até o fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o (FANON, 1968, p. 27-31).

Portanto, o policiamento ao pensamento contrário permanece na contemporaneidade angolana, neste período de pós-independência nacional, e tem desacelerado a construção de saberes locais, freando a potencialidade criativa que a diversidade estabelece. O que está em causa é que os discursos construídos historicamente no território angolano pensaram as diferenças como modos de aniquilação, ou privilegiaram informações e pensadores como oficialmente verdadeiros a serem difundidos pelo governo no poder. Logo, as formações discursivas que se inscreviam 

[…] no processo histórico angolano, a fim de construir um sujeito padronizado que representasse a angolanidade, em certa medida, com diferentes formações discursivas, criavam a transposição de normas e condutas, transformando o sujeito e produzindo uma nova cultura (CURIMENHA, 2018, p. 168).

A partir das formações discursivas que determinam as verdades a serem permitidas, criam-se linhas de fronteiras que definem o inimigo a ser combatido e menosprezam o pensamento crítico que aponta os problemas e propõe soluções fora das normas partidárias, não sendo estas compreendidas como dispositivos que proporcionariam novas perspectivas ao desenvolvimento nacional. 

CONCLUSÃO

Eu cresci ouvindo isso: xé menino, não fala política. A música se tornou uma espécie de princípio fundamental utilizado pelos pais, pessoas mais velhas e experimentadas, para proibir aqueles que, em condições de menoridade, estivessem dispostos a “sacudir” a colmeia da política, a questionar o porquê de as coisas estarem como estavam. Esses regramentos de conduta postulam discursos que podem ser interditados, suprimem o inconveniente e estabelecem o silenciamento do pensamento crítico e aberto. Apenas com a emergência das redes sociais, o angolano encontrou um espaço potente para desconstruir certos discursos amordaçados.

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1. Disponível em: https://www.ouvirmusica.com.br/waldemar-bastos/velha-xica/. Acesso em: 02 jun. 2021.

2. Fraccionismo foi o nome dado ao movimento político Angolano (os fraccionistas), liderado por Nito Alves, ex-dirigente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), no poder desde a independência do país. O movimento articulou-se como dissidência no seio do MPLA após a independência de Angola, em oposição ao Presidente Agostinho Neto, e lançou em Luanda uma tentativa de golpe de Estado em 27 de maio de 1977 (27 DE MAIO…, 2017).

 

REFERÊNCIA

27 DE MAIO de 1977 e Nito Alves – o tabu da história de Angola. Deutsche Welle, Bonn, 15 maio 2017. Disponível em: https://p.dw.com/p/14otY. Acesso em: 5 maio 2021.

BASTOS, Waldemar. Velha Chica. Letra. Álbum: O Primeiro Canto. Intérprete: Dulce Pontes. Universal Music, 1999.

CURIMENHA, Marcelino Mendes. Cultura e nacionalismo em choque: a construção histórica do sujeito angolano. Revista de História da UEG, Ponta Grossa, v. 7, n. 2, p. 168-181, 20 dez. 2018.

FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

FOUCAULT, Michel. “Aula de 17 de março de 1976”. In Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 285-315.

GONÇALVES, Aline Najara da Silva. Da ditadura à democracia, o difícil caminho para uma (re) democratização de Angola: Entrevista com Luaty Beirão. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, ano IX, n. XVII, ago. 2016. 

MASSANGA, Joaquim Paka. Desenhando a relação professor e aluno a partir da (re)significação da prática docente em Cabinda (Angola): a desconstrução da imagem de uma pedagogia tradicional. Paidéia, Belo Horizonte, ano 10, n. 14, p. 113-138, jan./jun. 2013. 

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016. 

ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomas Tadeu da (Org.). Liberdades reguladas. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 30-45.

Imagem de destaque: Miguel de Barros

This Post Has One Comment
  1. Li o artigo,esta top,só quem nunca vivenciou não compriendera o que escreveste,crescemos no meio disso tudo,o silencio era visível nos ónibus, táxis e até mesmo em casa,hoje com as redes sociais como acordaste as coisas tendem a mudar um pouco,mas ainda prevalece o…XÉ MENINO NÃO FALA POLÍTICA.

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