Menina de Barro – um filme a ser rodado e “roda conversado”

foto da autora para artigo na edição especial

Pâmela Carolina Martins Tezzele

Pâmela Tezzele é Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC – SP) e especialista em Gestão Educacional e Psicopedagogia. Educadora Especial – com habilitação em Deficiência Mental – pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), tem se dedicado à pesquisa com foco na Deficiência Intelectual. É coordenadora e professora do curso de Pós – graduação em Inclusão Escolar e Diversidade: questões conceituais e instrumentalização de práticas, do Instituto Singularidades (IS).  Atuou como Educadora Especial da rede municipal de Guarulhos (SP) e, nos últimos anos, como membro da equipe pedagógica Turma do Jiló (ONG que atua em prol da educação inclusiva) tem trabalhado com formação docente em escolas da rede pública e privada do Estado de São Paulo.  Pâmela compõe o grupo de professores avaliadores da Revista de Educação Especial da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

Ao ser convidada para contribuir com um texto para a edição temática da Revista Brasileira de Educação Básica (RBEB) sobre Educação Especial – periódico que, além de oportunizar que pesquisadores falem das investigações em educação que têm sido feitas nas universidades, também oportuniza a comunicação das experiências de professores na Educação Básica, apresentações de práticas pedagógicas e relatos de experiência – me senti lisonjeada e instigada, afinal, depois de um ano intenso trabalhando com formação de professores de ensino fundamental e rico de experiências práticas, precisaria escolher um tema ou uma vivência para discorrer nestas linhas. Todavia, não demorou para que eu decidisse falar da oportunidade que tive de exibir o filme “Menina de barro” nas escolas onde atuei, nem para resgatar com entusiasmo as anotações fruto das rodas de conversas que se seguiram. 

Em 2019, nós, da Organização Não Governamental “Turma do Jiló”, desenvolvemos um projeto em prol da educação inclusiva, em formato piloto, em duas escolas da rede municipal de ensino paulista, sendo uma das três frentes deste projeto (que também inclui música como ferramenta inclusiva e acolhimento às famílias), na qual atuo, destinada à formação de professores. Os encontros aconteceram semanalmente durante a Jornada Especial Integral de Formação (JEIF). A JEIF é o momento em que os professores se reúnem, por uma hora e meia, para formação continuada e discutem temas relacionados à agenda estipulada pela Secretaria Municipal de Educação (SME), sob orientação do/a professor/a coordenador/a do turno. O Currículo da Cidade incorporou os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) pactuados na Agenda 2030 pelos países membros das Nações Unidas, que são os chamados “Os 5 P’s”:

  • Pessoas: garantir que todos os seres humanos possam realizar o seu potencial em dignidade e igualdade, em um ambiente saudável;
  • Planeta: proteger o planeta da degradação, sobretudo por meio do consumo e da produção sustentáveis, bem como da gestão sustentável dos seus recursos naturais;
  • Prosperidade: assegurar que todos os seres humanos possam desfrutar de uma vida próspera e de plena realização pessoal;
  • Paz: promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas que estão livres do medo e da violência;
  • Parceria: mobiliza os meios necessários para implementar essa Agenda por meio de uma Parceria Global para o Desenvolvimento Sustentável. 

Isto é, a educação inclusiva, além de suscitar questões urgentes no que tange às práticas pedagógicas, permeia todos os objetivos da agenda, portanto, é pauta preestabelecida pela SME para as discussões formativas do corpo docente da rede. A presença da nossa equipe, em ambas as escolas, em parceria com os gestores, teve esse intuito: discutir temas relacionados à educação especial na perspectiva da educação inclusiva e instrumentalizar práticas pedagógicas inclusivas. Esse foi o contexto no qual se deu a experiência escolhida para ser aqui compartilhada. 

O filme “Menina de Barro” – com o qual trabalhamos em julho deste ano em uma escola e em meados de outubro na outra – foi distribuído pela própria produção, em formato de DVD (ele não está disponível na internet), em instituições de ensino e mediante condições fortemente endossadas: não ser copiado, passar de instituição para instituição de ensino e ter a exibição seguida por rodas de conversas (assim as informações chegaram até nós quando tivemos acesso ao filme e assim o fizemos). 

O tema central discutido na trama é o bullying, conteúdo que já fazia parte da estrutura do nosso curso de formação docente, pensado como um tema transversal à educação inclusiva, uma vez que partimos do princípio de que a deficiência não é o único fator de marginalização e de desigualdade de acesso às oportunidades de aprendizado na escola. O assunto, recorrente nas reuniões com os professores, principalmente em uma das escolas em questão, precisou ser adiantado no cronograma do curso devido a um grave episódio de bullying  que repercutiu até na mídia local. 

O bullying é um tipo de violência que tem a escola, infelizmente, como palco importante, portanto, é um problema de difícil trato e que diz respeito a todos nós, educadores. Algumas breves considerações sobre bullying se fazem necessárias, sem a pretensão de aprofundamento teórico, mas sim de situar a perspectiva com a qual temos trabalhado, de acordo com alguns dos autores que escolhemos para respaldar a discussão (ver terceira nota de rodapé). 

No segundo semestre de 2018, tive a oportunidade de orientar um trabalho de conclusão de curso, no qual a autora, Videira, fez uma pesquisa bibliográfica com foco no que a literatura trazia sobre o papel de cada personagem nessa dinâmica de violência. Ela traz a origem do termo – que deriva do verbo inglês “bully” – e afirma que é utilizado para designar pessoa cruel, intimidadora, muitas vezes agressiva, que utiliza da “superioridade física ou moral para intimidar alguém”. O termo foi adotado em inúmeros países e serve para definir todo tipo de comportamento agressivo, intencional e repetido inerente às relações interpessoais. A autora explica que o bullying pode ser considerado como um problema comum na interação de pares, que pode implicar diferentes prejuízos ao longo do desenvolvimento tanto das vítimas quanto dos agressores, tais como: quadros de ansiedade, baixa autoestima, depressão, automutilação, solidão e suicídio, delinquência, o uso de álcool e outras drogas.

O filósofo alemão Peter Sloterdijk, autor que nos ajuda a pensar nas dinâmicas de atração ou repulsa em grupamentos humanos, propôs a abordagem das formas esféricas – simbólicas e concretas – que chamamos de “bolhas” – as quais, segundo ele, são uma forma de imunização, conforto e proteção contra o exterior e constituem a origem primeira de incorporação de valores e preconceitos. Este entendimento corrobora a discussão de Videira (2018), quando fala que o bullying está, em parte, relacionado a preconceitos sociais e a dificuldades que são resultantes da formação moral de personalidades ligadas à fragilidade de modelos sociais encontrados no âmbito familiar e social. 

Para diferenciar o bullying de outras formas de violência que podem ocorrer na escola ou em qualquer lugar onde haja grupamentos humanos, é importante considerar algumas características específicas: é preciso haver uma relação desigual de poder entre vítima e agressor (seja por força física ou por prestígio social), existem tipos diferentes de bullying (direto ou indireto, como o cyberbullying), as ações devem ser repetidas e com intencionalidade de causar sofrimento físico ou emocional e contar com os personagens – agressor, vítima e espectador. Videira (2018), no entanto, propôs em sua monografia que existe um quarto personagem, o pacificador/mediador. Segundo ela, que realizou amplo levantamento bibliográfico, esse quarto personagem tem sido pouquíssimo citado/considerado em trabalhos acadêmicos. 

E é justamente essa figura, o sujeito pacificador/mediador, que ganha vida e protagonismo no filme “Menina de Barro”. 

Por que o filme “Menina de Barro” pode ser uma ferramenta interessante para pensarmos questões importantes referentes à educação inclusiva?

O filme conta a história de Diana, uma jovem de 12 anos, filha de pai ausente, cuja  mãe, esclarecida e presente na vida da menina, lhe transfere questões pessoais e carregadas de generalizações e preconceitos em relação a homens e meninos. Diana tem Altas Habilidades/Superdotação e frequenta uma Sala de Recursos Multifuncionais (SRM) no contraturno da escola, sala essa coordenada por sua mãe e na qual meninos não são bem-vindos. Lá ela faz, dentre outras atividades, oficinas de artes, pois as habilidades artísticas são algumas das capacidades exacerbadas em Diana, assim como habilidades linguísticas e esportivas. O roteiro abordou de forma bastante coerente a importância de uma avaliação pedagógica específica para diagnóstico de Altas Habilidades/superdotação e das atividades de suplementação curricular.

A escolha do nome Diana para essa personagem não me pareceu algo aleatório e sim uma analogia à deusa da mitologia romana da lua e da caça, cujas características são força e justiça, bem como faz alusão, se observarmos os acessórios e a decoração do quarto da menina, à personagem dos quadrinhos Mulher Maravilha, que também se chama Diana. 

A protagonista, que logo no início da trama está trocando de escola, visto que sofria bullying por usar um palavreado rebuscado e gostar muito de ler – detalhe interessante porque faz uma crítica à romantização das altas habilidades/superdotação na vida dos jovens, dádiva ou fardo? – começa no novo ambiente em estado de isolamento para logo assumir uma posição de liderança. Ela é justa e sensível, porém é também impetuosa e tem explosões de agressividade. Diana, ao entrar na nova escola mediante um pacto de sigilo com a mãe, com quem acordou que ninguém poderia saber que ela é uma pessoa com altas habilidades/superdotação e muito menos que frequenta uma SRM, logo descobre uma rede de bullying da qual Martin é o líder por coerção (superioridade física e prestígio social). Ele espalha vídeos humilhantes e amplia a rede de envolvidos, transformando suas vítimas em agressores, bonificando os que cumprirem tarefas de violência. Alguns pontos importantes que o “Clube de bullying” nos permite observar e refletir sobre a realidade das nossas escolas: 

  • O bullying tem como agravante o aparato digital e as redes sociais (cyberbullying);
  • Empatia – Diana também sofreu bullying e se tornou uma aluna mediadora (defende as vítimas, ainda que use da violência contra os agressores);
  • Gordofobia e machismo são as principais causas de agressões – crítica à reprodução de preconceitos e padrões sociais; 
  • “É só uma brincadeira” – justificativa moral coletiva utilizada pelos agressores, e agressões por necessidade de pertencimento ao grupo;
  • Rótulos – Diana frisa que é “só” a Diana, ela teme ser “a aluna com Altas Habilidades/superdotação”;
  • Diana cita as altas expectativas dos adultos para o seu futuro em função da sua condição e lamenta não ser ouvida;
  • Aluno obeso, vítima, é chamado de Saco de Pancada (SP), sofre calado por medo de retaliação e é um suicida em potencial;
  • Justificativa dos agressores: “faço porque é legal, porque eu me divirto”;
  • O senso de justiça de Diana é também um enorme peso para ela, que questiona até a sua mãe por naturalizar o sofrimento alheio, outros colegas não sustentam esse enfrentamento e se omitem;
  • Diana usa a violência para defender os mais fracos e é punida no esporte que pratica (jiu-jitsu) por não conter a agressividade;
  • Diana fica popular por ter ser posicionado e assume posição de líder carismática.

O ponto alto do filme é quando a protagonista, impactada pela tentativa de suicídio do colega vítima do “Clube de bullying”, propõe um projeto antibullying aos gestores da escola. O filme mostra total desconhecimento por parte dos gestores e dos professores da escola, mesmo que as agressões ocorram no pátio da escola, no banheiro masculino e que todos os alunos saibam. 

Há uma crítica, por vezes até exagerada, do “dilema dos adultos”. Pais, gestores e professores, quando ficam a par do “Clube de bullying”, em um primeiro momento, se opõem ao projeto de prevenção à violência proposto por Diana e por um colega. A escola, privada, mostra-se preocupada com a opinião dos pais de alunos e com a perda eminente de “clientes”. Há negativa do projeto e a retirada do protagonismo discente e do poder dos próprios jovens de mediarem conflitos com seus pares. No entanto, quando os gestores descobrem sobre a tentativa de suicídio de um aluno, o projeto de Diana é colocado em prática e repercute positivamente até chegar em uma assistente social que trabalha com jovens agressores. Essa personagem apresenta um método que ela utiliza para lidar com prevenção ao bullying, que consiste em dinâmicas de empatia e fortalecimento da capacidade de resiliência às vítimas. Palavras como respeito e solidariedade estão espalhadas pela sala e uma dinâmica com o bebê é mostrada para atentar sobre a dependência que todos nós temos do outro, do coletivo, da necessidade inerente de cuidar e de sermos cuidados. Diana acaba abrindo um espaço para acolher vítimas do bullying. 

O desfecho do filme corrobora os achados de Videira (2018) sobre a mediação de conflitos no âmbito escolar. Ela cita, com base no seu referencial, quatro proposições:  

  1. O conflito é parte integrante da vida em comunidade e, sendo assim, pode ser um meio de aprendizagem e crescimento pessoal para os agentes escolares;
  2. Como o conflito é inevitável, a aprendizagem das habilidades para lidar com ele é tão importante como o estudo de outras disciplinas;
  3. É possível que os intervenientes resolvam a maioria dos conflitos no âmbito escolar;
  4. Mediar conflitos é uma forma de prevenção sobre futuros conflitos, visto que apela a um espírito de colaboração e não a uma cultura de imposição (importância do protagonismo discente).

Com base no princípio de que a educação inclusiva, para além do público alvo da educação especial, deve ocupar-se também de todos os alunos que se encontram às margens das oportunidades de aprendizagem e de um pleno desenvolvimento, independentemente da natureza do fator impeditivo, o bullying se faz um tema transversal importante. Assim sendo, as rodas de conversa que sucederam o filme tiveram como objetivo oportunizar um espaço de debate para ouvir os professores sobre quem eles entendem que são esses alunos tidos como “outsiders”, e o que, na visão deles, é possível fazer para prevenir, amenizar e, na melhor e mais idealista das hipóteses, até extinguir situações de intolerância, preconceito e agressões. 

As falas dos professores foram interessantíssimas. Destaco algumas: 

  • As crianças com deficiência são muito bem aceitas pelos pares aqui na escola, elas não ficam de fora das brincadeiras e recebem ajuda dos colegas com as atividades, mais ainda quando se trata dos menores. O problema maior é o racismo e a intolerância com os nordestinos. A meu ver, esses são as maiores vítimas de bullying aqui;
  • As meninas maiores são as que mais fazem bullying com as outras por puro machismo, a origem das implicâncias sempre tem a ver com disputas por meninos e com exposições de cunho sexual;
  • Os vídeos de intimidades entre eles têm circulado e causado problemas seríssimos;
  • Outro dia fiz um aluno pesquisar o que significava ficar chamando o outro de “Pinel”, ele falava sem nem saber;
  • Não adianta a gente tentar combater se as famílias fazem um desserviço;
  • Aqui na escola notamos uma melhoria incrível nas relações quando reativamos o Grêmio Estudantil, além de eles terem que tomar decisões coletivamente, cabe ao grêmio apagar e pintar xingamentos em paredes e banheiros;
  • O objetivo do Trabalho de Conclusão do Ano (TCA), dos nonos anos, é trabalhar temas que tenham algum impacto social e de forma coletiva, com banca de defesa e tudo, notamos um salto no amadurecimento quando eles chegam a final do processo e os temas devem passar questões éticas e morais que acabam influenciando as relações entre eles;
  • Sobre as vítimas de bullying, noto que parece que falta inteligência emocional para algumas, elas ou têm uma abordagem chata e os pares os repelem ou são muito frágeis para brincadeiras e não têm jogo de cintura;
  • Quem nunca levou apelidos na escola? É muito ‘mimimi’. 

Os questionamentos sobre o filme e o clima acalorado das rodas de conversa, acabaram por desaguar em águas revoltas, a intersecção família – escola. Os grupos questionaram muito a quem deveria caber, de fato, tanto a educação moral quanto a formação de indivíduos empáticos e resilientes. Instigada pelo debate, lembrei-me de Adorno (1995), que, preocupado com a educação após Auschwitz, atribuiu à educação infantil (não institucional) e ao clima intelectual (educação formal), cultural e social, o mesmo grau de importância na formação de sujeitos incapazes de repetir tamanha barbárie que foi o holocausto. A escola, ao mesmo tempo em que é palco de atos de violência como o bullying e de práticas excludentes, é ferramenta fundamental no combate a esses problemas.  

TEZZELE, Pâmela Carolina Martins.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 4, Número Especial Educação Especial Escolar,março,2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: XXXXXX

This Post Has One Comment
  1. boa noite a todos . Aqui eu achei muito interessante o filme de barro, por que e uma forma de respeitar a personalidade das pessoas, não importando com cor e nem raça das pessoas e principalmente das crianças normais e as expeciais.É muito triste viver marginalizado com preconceito e apelido, ser excluído na própria sociedade . O bullying nos espaços Educacionais ocorre de uma forma crítica e a tingidora para todos . Devemos arranja uma forma de acabar com este tipo de preconceito, deveram ser diferenciada de uma forma tranquila e acolhedora, protegendo , valorizando e mostrando que somos todos iguais evitando todos os tipos de violência , como por exemplo a menina de barro pode ser uma alternativa em se , que podemos usar como uma própria ferramenta para fazer o bem e valorizar todos sem preconceitos , fazendo com que todos sintam uma família igual e importante na Educação inclusiva , na comunidade , na vida e enfim.

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