“Lute pela Docência!”: Por uma educação que englobe todos os sexos, gêneros e sexualidades. Homens também podem ser professores
Jonathan Aguiar
escritorjonathan@gmail.com
Resumo: Este artigo é um recorte da pesquisa “Homens no Magistério. Eu Apoio!”, que assume um caráter qualitativo, do tipo estudo de caso, por compreender a inserção da figura masculina no magistério como um processo que precisa de maiores investimentos teóricos e empíricos, visto que há poucos homens que se dedicam ao ato de ensinar e educar crianças. Para a coleta de dados, aplicou-se um questionário semiestruturado a 18 professores que acessaram a página do Facebook “Homens no Magistério. Eu apoio”. O questionário esteve composto por nove questões, sendo que, neste trabalho, delimitamos uma única problemática, qual seja: “qual é o grande desafio em ser homem no meio de tantas mulheres?”. Concluímos que o homem ainda é minoria na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Entretanto, os professores entrevistados ressaltaram que o estranhamento, a desconfiança e o medo são elementos que boa parte das mulheres atribui ao sexo masculino, por habitarem um espaço que majoritariamente é composto por professoras.
Palavras-chave: Docência; Homens no Magistério; Gênero; Sexualidade; Educação Básica.
Introdução
Mesmo quando tudo parece desabar, cabe a mim decidir entre rir ou chorar, ir ou ficar, desistir ou lutar; porque descobri, no caminho incerto da vida, que o mais importante é o decidir.
Cora Coralina
Falar sobre a atuação dos homens como docentes na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental é motivo de estranhamento para algumas famílias, profissionais da educação e gestores, principalmente por vivenciarem no cotidiano das escolas a existência de mais mulheres exercendo a docência. Trata-se de algo que contribui para um processo de feminização do magistério, como é possível ser percebido quando olhamos para toda a Educação Básica e observamos que, nessa primeira etapa de escolarização, poucos homens são responsáveis pelo processo de ensino-aprendizagem.
Os dados do Censo Escolar (2018) sobre o perfil dos docentes que ocupam a Educação Básica, de modo especial a Educação Infantil, indicam: na creche, 292.801 são do sexo feminino e 7.335 do sexo masculino; na Pré-Escola, 312.149 professoras e 16.891 professores; Seguindo para os anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º ano), nos deparamos com 677.086 docentes que se identificam com o sexo feminino e 85.798 docentes que se identificam com o sexo masculino. É evidente, diante desses dados publicados, que poucos indivíduos do sexo masculino atuam na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental em comparação com o quantitativo do sexo feminino. Se categorizarmos por estado, instituição, faixa etária e formação, chegaremos a um número reduzido da presença do sexo masculino no magistério na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental conforme levantamento citado.
Esse cenário corrobora que a presença masculina na primeira etapa da Educação Básica ainda é pequena em comparação às mulheres que ocupam esse espaço. Isso pode ser visto nos estudos de Souza e Girotto (2019), Rabelo (2010, 2013 e 2016), por compreenderem que ainda existe o fenômeno da feminização do magistério, sobretudo no campo da Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Assim, esta investigação tem como objetivo discutir quais são os desafios de ser homem no espaço escolar da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Esse artigo científico é um recorte da pesquisa “Homens no Magistério. Eu Apoio!” (AGUIAR, 2015), que assume um caráter qualitativo (IVENICKI; CANEN, 2016; MINAYO, 2011) do tipo estudo de caso, por compreender a inserção da figura masculina no magistério como um processo que precisa de maiores investimentos teóricos e empíricos, uma vez que há poucos homens que se dedicam ao ato de ensinar e educar crianças (AGUIAR, 2019).
Para a coleta de dados, aplicou-se um questionário semiestruturado a 18 professores que acessaram a página do Facebook “Homens no Magistério. Eu apoio” composto por nove questões. Todavia, como já apontado, neste trabalho aplicou-se apenas uma questão: “nos cursos de formação, qual é o grande desafio em ser um homem no meio de tantas mulheres?”.
Sexo, gênero e sexualidade: tensões e discussões
Louro (2014), em seu livro “Gênero, sexualidade e educação”, problematiza como se dá a construção e a representação de argumentos em torno do gênero e da sexualidade, valorizando o que seja o feminino e o masculino, cujos conceitos são reflexos sociais entre os sexos. A mesma autora argumenta que ser homem e ser mulher vai além das diferenças biológicas, explicando que são nas “relações sociais que se constroem os gêneros” (LOURO, 2014, p. 26). Ela ainda nos provoca a pensar e exigir de modo conceitual que gênero é um “modo plural”, sendo modos diversos que podem ser múltiplos, conforme momentos históricos de uma dada sociedade e grupos étnicos, religiosos, raciais e de classe.
De acordo com Louro (2014), pode-se entender o gênero como constituinte da identidade, que são plurais, múltiplas, e “que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias” (LOURO, 2014, p. 28). Inclusive sua compreensão transcende a espécie humana na sua dimensão binômia (ser homem, ser mulher).
Esta mesma autora, ao se apropriar dos estudos de Michael Foucault e Jeffrey Weeks, conclui que, a partir de múltiplos discursos sobre sexo, a maneira como vive sua sexualidade – com parceiros/as do mesmo sexo ou até mesmo de sexo oposto -, refere-se à sexualidade de cada indivíduo. No entanto, sexualidade e gênero estão profundamente relacionados , apesar de não serem as mesmas coisas(LOURO, 2014). Assim argumenta a autora:
Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais (e, ao mesmo tempo, eles também podem ser negros, brancos, ou índios, ricos, ou pobres […] O que importa aqui considerar é que – tanto na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre construídas, elas são dadas ou acabadas num determinado momento (LOURO, 2014, p. 31, Grifo da autora).
Interessante assinalar que ser homem, ser mulher, ser masculino, ser feminino são meras construções sociais marcadas por um dado momento histórico, cultural e econômico. Esses papéis e suas representações vão marcando profissões, modelos comportamentais, jogos, brincadeiras entre crianças, lugares e a própria identidade do sujeito. Diante disso, devemos questionar as incertezas, descontruir a relação binária que coloca o feminino e o masculino como opostos. Todos são seres humanos e possuidores de direitos, que devem ser igualitários no cotidiano em sociedade, rompendo, assim, com estereótipos e preconceitos existentes.
Discursos estereotipados de que homens não podem atuar como docentes de crianças apenas por serem do sexo masculino precisam ser denunciados, problematizados, debatidos e desconstruídos. Desse modo, caminhamos para os relatos dos professores homens e seus respectivos desafios de ser professor e atuar em uma profissão que majoritariamente habita o feminino.
Ser o único homem já é um desafio
Os professores participantes deste estudo destacam inúmeros desafios em ser homem em meio a tantas mulheres. Entretanto, algo que nos chama a atenção e que nos convida a refletir é o simples fato de eles serem homens, acarretando estranhamento, desconfiança, colocando-os em xeque, uma vez que, segundo o senso comum, não poderiam exercer o magistério com crianças. A esse respeito, os professores explicam:
Para ser sincero, só passei por situação de desvalorização devido ao meu gênero [quando a escola gostaria de contratá-lo como inspetor], pois os pais [segundo o relato da diretora] poderiam não compreender o fato de ser um professor homem em classe de Educação Infantil. […]. O preconceito existe. Como pode ver, já fui vítima também (PROFESSOR 2).
Existe preconceito simplesmente por você ser homem. [Há] desconfiança entre os pais. Para eles um professor não terá os mesmos cuidados com as crianças [em comparação] […] a uma mulher. Isso me incomoda muito! (PROFESSOR 3).
Fui constantemente questionado quanto à minha atuação na docência: se teria “jeito” com as crianças, se seria apto a alfabetizar e ensinar (PROFESSOR 4).
Ser o único homem já é um desafio. […] Ouvir tudo no feminino me incomoda […]. A aceitação dos pais é tensa (PROFESSOR 9).
O grande desafio foi passar que o homem também tem sentimentos, sensibilidade, vocação e a tal dádiva de passar conhecimentos (PROFESSOR 10).
As vivências desses professores homens trazem à tona que tentar atuar na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental é sinônimo de resistência. Principalmente quando terceiros afirmam que eles não possuem habilidades e competências para serem professores de crianças devido ao seu gênero. Reafirmamos a presença marcante do preconceito. Justificativas são incorporadas ao dizer que as famílias não vão compreender a existência de um homem cuidando de seus filhos e filhas; a desconfiança surgirá com comparações entre os gêneros; discursos serão proferidos para saber se professores homens continuariam nesse espaço cujo corpo feminino habita. Eis os múltiplos desafios sociais que envolvem os homens que escolheram atuar na docência. Percebemos nesses relatos que o sexo masculino provoca várias representações e são associados a identidades fixas ligadas ao feminino (LOURO, 2014). Isso pode ser visto também nos estudos de Rabelo (2013, p. 921), ao concluir que “fugir das representações é impossível, pois nascemos em um mundo que nos leva a pensar de determinadas formas, mas mesmo assim existem potencialidades de transformações e novas reformulações do poder”.
Seguindo a premissa de que as identidades são meramente construções sociais (LOURO, 2014), devemos quebrar as padronizações de papéis femininos e masculinos, prioritariamente aqueles que dizem que homens não podem exercer tal profissão.
Louro (2014, p. 112) ressalta:
[…] professores e professoras passam a se constituir diversamente, afastando-se, em parte, do caráter sacerdotal da atividade e buscando dar a essa atividade uma marca mais política e profissional. Paralelamente à emergência e à força das novas práticas sociais, as formas tradicionais continuam atuando; elas não são apesar de tudo, completamente superadas ou apagadas. Práticas e representações conflitantes e contraditórias coexistem, hoje e sempre, provocando divisões e impasses.
Para ambos os sexos, a docência pode ser uma escolha, investida de rigor científico, epistemológico e prático, mostrando que ser professor, ser professora é um compromisso social e cultural de qualquer sujeito humano.
A inserção de mais homens no magistério (Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental) busca apresentar que eles podem ser profissionais sérios, comprometidos e, no mais, “uma forma de inserir as questões de gênero na educação e demonstrar às crianças que o homem também pode escolher essa atividade e ter sucesso” (RABELO, 2013, p. 922). Isso possibilita, de acordo com as ideias de Louro (2014), romper com a dicotomia entre os gêneros que separa os meninos das meninas e delimita os espaços de aprendizagens e o lugar da mulher e do homem socialmente.
Quando a própria linguagem demarca os lugares do gênero e o ocultamento do feminino ao utilizar expressões masculinas, o Professor 9 menciona que “Ouvir tudo no feminino [o] incomoda”, há, nesse caso, o sentido inverso: a exclusão do sexo oposto na escola. Assim como surge a indignação de mulheres que ocupam cargos que outrora eram de homens. Por que homens devem aceitar ser chamados de professoras? Cabe a reflexão. Esse é um dos desafios de ser homem atuando em espaços ditos como femininos.
Vimos nos relatos dos professores (5, 12, 15 e 18) a presença do “machismo” no argumento de algumas professoras. O Professor 12 explicou: “As mulheres têm ideia do homem como ser bruto, incapaz de ter sentimentos”; “Mulheres são melhores educadoras por terem o lado materno” (PROFESSOR 5). Apesar do exposto, questionamos se, caso na docência com crianças existisse uma distribuição equilibrada de ambos os gêneros, haveria uma garantiria de que no imaginário social prevaleceria a percepção de que homens e mulheres poderiam realizar atividades de cuidado, sensibilidade, ensino e planejamento para todos que fazem parte do sistema educacional (RABELO, 2016, 2013, 2010; AGUIAR, 2019, 2015). Até porque, segundo a legislação (BRASIL, 1996) que rege o sistema de ensino brasileiro e os cursos de formação inicial e continuada, na docência não há restrição de gênero. Todos os seres humanos podem atuar como professor e como professora se assim frequentarem uma graduação ou curso normal (antigo Magistério). Esse impedimento descrito por alguns homens deve ser debatido e problematizado nas escolas, nas universidades e em toda a esfera social.
Considerações finais: por uma educação que englobe todos
Em linhas gerais, pode-se afirmar que o homem ainda é minoria na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Entretanto, diversos desafios vêm à tona quando esse indivíduo deseja se tornar um profissional para atuar com as crianças pequenas.
Os professores entrevistados ressaltam que o estranhamento, a desconfiança e o medo são elementos que boa parte das mulheres atribuem ao sexo masculino, por habitarem um espaço que majoritariamente é composto por mulheres. Nossa pretensão diante desta investigação não é culpabilizar as mulheres que defendem que homens não devem ser professores de crianças, apesar do discurso sutil, excludente e preconceituoso exposto por alguns professores em relação ao modo como enxergam a docência. É nítida a desvalorização e a falta de empatia por boa parte do professorado. Nossa defesa é por uma educação que englobe todos os gêneros e sexualidades. Ser professor e ser professora é uma escolha individual de cada ser humano, e os espaços educativos devem propiciar oportunidades para que docentes se sintam acolhidos a exercerem suas funções, independentemente do seu gênero e sexo.
Por fim, nesse texto levanto questões primordiais para se pensar a nossa luta em prol de uma docência mais inclusiva, participativa entre/com todos os gêneros, eliminando as barreiras para fazer surgir uma educação criativa. Homens, mulheres, gays, lésbicas, transexuais podem ser professores? Sigamos provocando, pesquisando e problematizando qual é o lugar desses sujeitos na escola, nos cursos de formação de professores, visto que os cuidados de uma criança não são exclusivos para profissionais do sexo feminino. A nossa luta é contra discursos, práticas e políticas (como é o caso do Projeto de Lei 1174/20191 elaborado por Janaína Paschoal, Letícia Aguiar e Valeria Bolsonaro, que proíbe, no estado de São Paulo, que homens sejam responsáveis pelo cuidado de crianças pequenas). Educar, cuidar e ensinar estão interligados, e o homem é um profissional que merece respeito assim como as mulheres.
Referências
AGUIAR. Jonathan Fernandes. Homens no Magistério. Eu Apoio! Monografia ( Trabalho de Conclusão de Curso em Pedagogia). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.
AGUIAR. Jonathan Fernandes. Uma escola para todos: homens no magistério também ocupam este espaço. Crítica Educativa (Sorocaba/SP), v. 5, n. 2, p. 59-72, jul./dez. 2019. Disponível em: http://www.criticaeducativa.ufscar.br/index.php/criticaeducativa/article/view/435/476?fbclid=IwAR0rHWu25Pmqin6phj2vZa-EZzbCHw0Xv0_5O3cK8eqoW6IKlaAvj0CvRp0. Acesso em 27 de fev. de 2020.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 27 de fev. de 2020.
CENSO ESCOLAR. Estudo exploratório sobre o professor brasileiro com base nos resultados do Censo Escolar da Educação Básica 2007 / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. – Brasília: Inep, 2009. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/estudoprofessor.pdf. Acesso em 03 de jan. de 2019.
IVENICKI, Ana; CANEN, Alberto. Metodologia da Pesquisa: rompendo fronteiras curriculares. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2016.
MINAYO. Maria Cecília de Souza. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 30ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
RABELO, Amanda Oliveira. “Eu gosto de ser professor e gosto de crianças” – A escolha profissional dos homens pela docência na escola primária. Rev. Lusófona de Educação, Lisboa , n. 15, p. 163-173, 2010 . Disponível em <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1645-72502010000100012&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 03 jan. 2020.
RABELO, Amanda Oliveira. Male Teachers in Elementary Education in the Public Schools of Rio de Janeiro-Brazil and Aveiro-Portugal. REDIE, Ensenada, v. 18, n. 3, p. 135-145, sept. 2016 . Disponível em <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1607-40412016000300010&lng=es&nrm=iso>. Acesso em 03 de jan. de 2020.
RABELO, Amanda Oliveira. Professores discriminados: um estudo sobre os docentes do sexo masculino nas séries do ensino fundamental. Educ. Pesqui., São Paulo , v. 39, n. 4, p. 907-925, Dec. 2013 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022013000400006&lng=en&nrm=iso>. access on 03 Jan. 2020. Epub May 07, 2013.
SINOPSES ESTATÍSTICAS DA EDUCAÇÃO BÁSICA. INEP, 2018. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica. Acesso em: 03 de jan. de 2020.
SOUZA, S. T; GIROTTO, K. M. R. Feminização do magistério e os impactos na vida de professores nos ensinos infantil e fundamental (Pontal Mineiro). RPD, Uberaba-MG, v.19 n.41, p.01-20, mai./ago. 2019. Disponível em: http://www.revistasdigitais.uniube.br/index.php/rpd/article/view/1291/1432. Acesso em: 03 de jan. de 2020.