Direitos Humanos e Pensamento Freireano
Reginaldo José da Silva
Bacharel em Teologia – Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil (STBNB). Licenciado em História – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Pós-Graduado (Especialização) em História Contemporânea – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em Educação – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutorando em Educação – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Assessor de Projetos Sociais na Kindernothilfe (KNH). Realiza pesquisas nas áreas de história da educação nos movimentos sociais, educação popular, direitos humanos e memória e educação.
e-mail: regi.ligas@gmail.com
Introdução
A recepção do pensamento de Paulo Freire por organizações e movimentos sociais que atuam na luta por direitos humanos, tanto no Brasil como em outros países do mundo, é notória quando se observam as propostas de projeto, os documentos pedagógicos e as práticas dessas instituições. Isso se dá em razão do forte diálogo que existe entre os conceitos e ideias que Freire desenvolveu no conjunto de sua obra e os princípios fundamentais dos direitos humanos. Além disso, a própria prática de Freire, seja como educador ou como Secretário de Educação do Município de São Paulo, durante o governo de Luiza Erundina, entre os anos de 1989 e 1991, atesta para a sua constante defesa da garantia e efetivação da justiça social, que é a base para que todos os homens e mulheres vivam livres das variadas formas de miséria, opressão e exploração.
Este artigo tem como objetivo pôr em debate o diálogo entre o pensamento freiriano e os direitos humanos, ressaltando a experiência da Kindernothilfe (KNH) no Brasil como um dos exemplos dessa relação. Portanto, dividi o texto em três tópicos. No primeiro, apresentarei um breve relato acerca de como estava o debate sobre direitos humanos no momento em que Paulo Freire iniciou sua atividade de educador e começava a elaborar as primeiras ideias que, mais adiante, deram corpo ao seu pensamento pedagógico. Em seguida, proporei uma discussão sobre como as principais ideias de Freire dialogam com os princípios fundamentais dos direitos humanos, expressos, sobretudo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948. Por fim, partindo da minha experiência como Assessor de Projetos Sociais na Kindernothilfe (KNH), trarei ao debate a atuação dessa organização no Brasil como um exemplo em que é possível ver a relação entre o pensamento de Freire e a luta pela efetivação dos direitos humanos.
O debate sobre direitos humanos nos primeiros anos do trabalho pedagógico e teórico de Paulo Freire
Podemos considerar que foi a partir de 1947 que Freire iniciou a construção de seu pensamento pedagógico. Nesse ano, ele começou a trabalhar no Serviço Social da Indústria (SESI), assumindo, primeiro, a direção do setor de educação e cultura, cargo que ocupou até 1954, e depois se tornando superintendente da instituição, até o ano de 1957. As atividades que desenvolveu no SESI, que o colocaram em contato com a educação ligada às classes populares, sobretudo trabalhadores e trabalhadoras e seus filhos e filhas, foram fundamentais para a elaboração de suas ideias pedagógicas, gradativamente sistematizadas nos seus três textos iniciais: “Educação e Atualidade Brasileira”, uma tese apresentada para concorrer à cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco (Universidade do Recife e hoje Universidade Federal de Pernambuco), em 1959; “Educação como Prática da Liberdade”, um livro escrito em 1965, mas só publicado em 1967, quando já se encontrava exilado no Chile, após o golpe civil-militar ocorrido no Brasil em 1964; e “Pedagogia do Oprimido”, sua principal obra, escrita no ano de 1968, publicada primeiramente em espanhol e inglês, em 1970, e no Brasil em 1974.
Sobre a importância do trabalho no SESI para a construção do seu pensamento pedagógico, que tem na “Pedagogia do Oprimido” o principal centro de sua sistematização, afirma o próprio Freire:
A Pedagogia do Oprimido não poderia ter sido gestada em mim só por causa de minha passagem pelo SESI, mas a minha passagem pelo SESI foi fundamental. Diria até que indispensável a sua elaboração. Antes mesmo da Pedagogia do Oprimido, a passagem pelo SESI tramou algo de que a Pedagogia foi uma espécie de alongamento necessário. Refiro-me à tese universitária que defendi na então Universidade do Recife, depois Federal de Pernambuco: Educação e Atualidade Brasileira que, no fundo, desdobrando-se em Educação como Prática da Liberdade, anuncia a Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1992, p. 9).
Nesse período em que Freire começava a elaborar suas ideias pedagógicas, o debate sobre direitos humanos ganhava novos contornos. Isso porque, mesmo sendo um tema presente em muitas reflexões filosóficas, jurídicas, sociológicas, políticas e teológicas e na elaboração de códigos e legislações de alguns territórios e países desde a antiguidade, foi só após as atrocidades vividas com a ascensão do nazi-fascismo na Europa e com a Segunda Guerra Mundial que os direitos humanos ganharam um marco legal dentro do direito internacional, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela ONU em 1948 (CONCEIÇÃO JR e PES, 2010).
É importante também destacar que o período em que Freire começou a desenvolver as primeiras linhas do seu pensamento pedagógico é o mesmo do acirramento da Guerra Fria. “Educação e Atualidade Brasileira” e “Educação como Prática da Liberdade”, os livros introdutórios do seu pensamento pedagógico, foram escritos quando, no cenário internacional, intensificavam-se os antagonismos e tensões entre os países do bloco socialista, liderados pela União Soviética, e os países do bloco capitalista, liderados pelos Estados Unidos, provocando, inclusive, crises e conflitos, como a Guerra da Coreia, a Guerra do Vietnã, a crise de Suez, a crise de Berlim, a crise dos mísseis cubanos, dentre outras. Além disso, os testes de armas nucleares, desenvolvidos pela União Soviética e pelos Estados Unidos, deixavam o mundo apreensivo quanto à possibilidade da eclosão de uma nova guerra de proporções mundiais e de uma catástrofe nuclear. Em meio a esses acontecimentos, a preocupação com as violações dos direitos humanos ganhava força, ocupando debates acadêmicos e provocando a criação de movimentos pacifistas e de luta pela efetivação da dignidade humana (RODRIGUES, 2000).
Nascidas, portanto, nesse período de intensos debates sobre direitos humanos, as ideias de Freire dialogam com esse conceito e com os princípios fundamentais da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vejamos como podemos identificar esse diálogo, tomando por base os temas centrais de “Educação e Atualidade Brasileira”, “Educação como Prática da Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”.
Os direitos humanos e o pensamento freiriano
A democracia é um dos temas principais de “Educação e Atualidade Brasileira”, que, como vimos, foi a tese apresentada por Freire ao concurso para a Cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas-Artes de Pernambuco, depois publicada em livro, e que se constitui o texto em que aparecem as primeiras ideias de seu pensamento pedagógico. Nessa abordagem sobre democracia, que também será retomada em “Educação como Prática da Liberdade”, é possível ver o diálogo que Freire estabelece com os direitos humanos. Vejamos, por exemplo, que, ao defender uma educação comprometida com os direitos fundamentais da pessoa humana, sobretudo a vida, Freire (2003, p. 12) diz que é necessário superar a “inexperiência democrática”, presente naquele Brasil de 1959, mas também tão atual no Brasil de nossos dias, porque é ela a “responsável por tantas manifestações de nosso comportamento, como a matiz desta educação desvinculada da vida, autoritariamente verbal e falsamente humanista, em que nos desnutrimos”. Para ele, a educação se efetivaria como direito humano se, por ela, fosse construída uma experiência democrática, que se desenvolveria como “um trabalho do homem com o homem e nunca um trabalho verticalmente do homem sobre o homem ou assistencialistamente do homem para o homem, sem ele” (FREIRE, 2003, p. 14).
Vale ressaltar que essas afirmações de Freire dialogam com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que faz uma crítica às diversas formas de autoritarismo, em seu Preâmbulo, e trata a democracia como um direito da pessoa humana, em seu artigo 21º (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948).
Ainda em seu debate sobre democracia, Freire defenderá, em “Educação e Atualidade Brasileira”, retomando em “Educação como Prática da Liberdade”, o direito à participação popular, também previsto no artigo 21º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Na sua primeira obra, Freire abordará esse assunto influenciado pelos intelectuais que compunham o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), principalmente Álvaro Vieira Pinto, que entendiam como caminho para a efetivação da “ideologia do desenvolvimento” a elaboração de projetos nacionais sem a imposição de cima para baixo, mas com a participação popular. Freire vê a participação das pessoas nas decisões políticas de sua comunidade, cidade, estado e país como fundamental para o rompimento com a antidemocracia, que delega a voz e o fazer a grupos entendidos como únicos capazes de pensar e agir, negando à população o direito à fala e à ação no processo de construção de políticas, projetos e programas (FREIRE, 2003).
Em “Educação e Atualidade Brasileira”, Freire também conecta o direito à participação ao enfrentamento ao assistencialismo, tema que ele aprofundará em “Pedagogia do Oprimido”. Em suas palavras, o assistencialismo “rouba ao homem condições à consecução de uma das necessidades fundamentais da alma humana – a responsabilidade” (FREIRE, 2003, p. 16). Roubando-lhe a responsabilidade, o assistencialismo tira-lhe o direito de decidir, domestica-o, torna-o mudo, passivo, ajustado à sociedade, considera-o meramente um “assistido”, incapaz de participar da construção de qualquer projeto, programa ou política. Para Freire, as instituições de assistência social, públicas ou privadas, que praticam o assistencialismo, dificultam o direito à democracia. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, os artigos 20º, 21º, 22º e 23º representam também um rompimento com o assistencialismo, tendo em vista que eles preveem, como direito da pessoa humana, a livre associação em organizações diversas para decidir sobre projetos, políticas e programas que lhe interessem e para exigir a efetivação de seus direitos fundamentais (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948).
Outro direito humano que permeia as ideias de Freire é o da educação pública, democrática e de qualidade. Esse direito, também previsto no artigo 26º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ASSEMBLEIA GERAL DA ONU, 1948), começará a ser abordado por Freire em “Educação e Atualidade Brasileira”, ganhará aprofundamentos nas duas obras seguintes, “Educação como Prática da Liberdade” e “Pedagogia do Oprimido”, e continuará presente nos seus livros e artigos posteriores. Resumidamente, é possível afirmar que educação pública, democrática e de qualidade, para Freire, não se restringe à oferta de escolas públicas bem estruturadas e bem equipadas. Vai além disso. Em “Educação como Prática da Liberdade” é assim que ele a define:
Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nessa problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido a prescrições alheias. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes revisões. À análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia, no sentido mais humano da expressão. Que o identificasse com métodos e processos científicos (FREIRE, 2005, p. 97-98).
Na sua obra principal, “Pedagogia do Oprimido”, Freire sistematizará de forma mais aprofundada suas ideias sobre essa maneira de educar que deve ultrapassar o mero ato de transmissão e recepção de conteúdos, para ser uma construção de saberes na qual não há “quem saiba mais” e “quem saiba menos” e em que todas as pessoas envolvidas no processo educativo elaboram reflexões e conhecimentos que se tornam práticas necessárias para a superação de todas as formas de opressão. Uma educação pensada como ato político e como instrumento fundamental para a garantia da dignidade humana. Educação fundamentada numa pedagogia forjada com homens e mulheres que, reconhecendo-se negados e negadas enquanto seres humanos pelas opressões, explorações e injustiças, lançam-se na luta incessante pela recuperação de sua humanidade (FREIRE, 2011).
As conexões entre as ideias de Freire e os debates sobre direitos humanos resultam na recepção do pensamento freiriano por organizações e movimentos que lutam pela efetivação dos direitos da pessoa humana, tanto no Brasil como em outros países do mundo. A experiência da KNH, que será apresentada a partir de agora, é um exemplo dessa acolhida.
As relações entre o pensamento de Paulo Freire e a experiência da KNH
As organizações e movimentos sociais são também lugares de educação. Uma educação que se diferencia, em metodologias, objetivos e intencionalidades, da que é praticada nas escolas. O nome dado a esse tipo de educação varia entre “educação não escolar” (SOUZA, 2006, p. 127) e “educação não formal” (GOHN, 2011, p. 12). Sendo assim, os projetos sociais, com seus conjuntos de ações de luta pelos direitos humanos, são também projetos pedagógicos, que, desde a década de 1960, têm recebido uma importante influência do pensamento pedagógico de Freire.
A Kindernothilfe[1], organização alemã de cooperação internacional que tem por objetivo a luta pela efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes, conhecida no Brasil pela sigla KNH, foi fundada em 1959 e atua em 32 países da África, Ásia, Europa, América Latina e Caribe. No Brasil, a KNH realiza o seu trabalho desde 1971, fazendo parcerias com organizações que executam projetos de promoção e defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
Destacarei quatro temas presentes no trabalho da KNH no Brasil que têm relações com o pensamento freiriano. O primeiro deles é o tema da participação das crianças e adolescentes nos ciclos de projetos. Partindo do princípio de que a participação é um direito humano, previsto, como já vimos, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas também na Convenção sobre os Direitos das Crianças, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1989, a KNH apoia projetos em que crianças e adolescentes se envolvem ativamente desde a sua elaboração até a sua avaliação final. Trata-se de uma cooperação efetiva no momento em que os projetos são pensados e elaborados, ao longo de sua execução (monitorando e avaliando as suas ações, bem como atuando nas decisões referentes a sua gestão) e na avaliação final, ou seja, quando os projetos se encerram e é necessário identificar se as mudanças almejadas foram alcançadas. Essa forma de provocar e mobilizar a participação de crianças e adolescentes em todo o ciclo de um projeto dialoga com a ideia freiriana de unir-se aos oprimidos e oprimidas não para prestar assistência a eles e elas ou fazer-lhes doações de saberes e práticas, mas para com eles e elas lutar pela superação de uma situação de opressão (FREIRE, 2011).
Outro tema é o da participação política de crianças e adolescentes na comunidade e na cidade. Como também já foi colocado neste texto, Freire é um defensor do direito à participação popular desde “Educação e Atualidade Brasileira”, quando começou a formular seu pensamento pedagógico, retomando essa abordagem em “Educação como Prática da Liberdade”. A KNH, dialogando com essa ideia freiriana e esse direito humano, estabelece cooperações com projetos que fortaleçam essa prática. Nos projetos parceiros da KNH, trabalha-se um processo em que as crianças e adolescentes vivenciam atividades formativas de construção de conhecimentos sobre a situação de violação de direitos humanos mais presente em suas vidas e em seus territórios e sobre as estratégias de enfrentamento, para que, em seguida, elas e eles, assessoradas e assessorados pelos educadores e educadoras do projeto, se mobilizem a participar efetivamente de espaços, na comunidade e na cidade, onde podem incidir politicamente para superar a referida violação. Esses espaços são associações comunitárias, redes, fóruns e conselhos de defesa de direitos de crianças e adolescentes.
A mudança é também um tema importante para a KNH. Todo projeto social precisa estar direcionado à mudança de uma determinada situação de violação de direitos humanos. No atual momento de suas ações no Brasil, o trabalho da KNH tem direcionado o seu foco para o enfrentamento a três tipos de violência contra crianças e adolescentes: violência sexual, violência doméstica e violência urbana. Logo, quando uma organização propõe uma parceria com a KNH, apresentando um projeto de enfrentamento a uma dessas violências, tal proposta precisa ser clara quanto à mudança que se almeja com aquele projeto e quanto às estratégias e atividades que serão executadas para se chegar a essa mudança. E a identificação do que precisa ser transformado deve estar intimamente ligada ao que as próprias crianças e adolescentes almejam enquanto mudança, seguindo a ideia de Freire (2011, p. 49) de que o caminho para “a transformação da realidade objetiva” não está em meramente “prestar assistência” aos oprimidos e oprimidas, mas sim em “com eles lutar” pela superação da opressão. Sendo assim, a KNH acompanha as organizações, por meio de um trabalho de assessoramento, já no momento da elaboração de seus projetos, visando apoiá-las, em diálogo com as crianças e adolescentes, nesse sentido da identificação do que se pretende mudar com a intervenção das ações propostas e do que é preciso fazer para superar as violações. Esse assessoramento se desenvolve também ao longo da execução dos projetos, tanto por meio de assessorias in loco quanto por formações, sempre objetivando contribuir com a transformação da vida de crianças, adolescentes, famílias e comunidades.
O quarto e último tema que apresento aqui como importante para o trabalho da KNH no Brasil é o da reflexão/ação. Em “Pedagogia do Oprimido”, retomando um conceito de Marx, Freire (2011, p. 52) afirma que só pela “práxis”, que nas suas palavras “é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo”, será possível superar a opressão. Para o pensamento freiriano, refletir sobre uma realidade, reconhecê-la, mas não inserir-se criticamente nela para transformá-la é subjetivismo, assim como agir sem reflexão representa um ativismo que também não contribui com a mudança da sociedade. Nos projetos com os quais a KNH coopera, o diálogo com a práxis parte da Análise Situacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (ASDCA) e tem seguimento com o monitoramento de projetos. A ASDCA é um estudo, uma reflexão, feito com a participação direta das crianças e adolescentes, no qual são pensadas criticamente a realidade e a situação de violação presentes no território onde se dará a intervenção, para, a partir daí, serem elaborados os objetivos, estratégias e atividades do projeto. Com os elementos trazidos pela ASDCA, as ações do projeto são construídas com duas finalidades: primeiro, contribuir com a formação/reflexão crítica do público participante acerca da realidade presente em seu território; segundo, mobilizar esse público visando sua participação na intervenção necessária para a superação das violações. Já o monitoramento busca promover um acompanhamento das ações, enquanto elas estão em andamento, observando se as formações estão contribuindo com a participação efetiva do público na luta por seus direitos humanos e se as mudanças almejadas estão sendo conseguidas. Por meio dessa observação, que também é realizada pelas próprias crianças, adolescentes, famílias e representantes das comunidades, é possível definir a manutenção ou a reformulação das ações do projeto.
Considerações finais
O pensamento de Freire, que, como ele próprio afirma na introdução de “Pedagogia do Oprimido”, não é “fruto de devaneios intelectuais” nem apenas de leituras, mas está ancorado em “situações concretas” (FREIRE, 2011, p. 33), representa uma luta pela humanização ou pela dignidade humana, se quisermos utilizar o conceito da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.
A conexão desse pensamento e prática de Freire com os conceitos e lutas por direitos humanos resulta numa forte recepção que as ideias freirianas têm nos movimentos e organizações sociais, não só no Brasil, mas também em outros países. A experiência da KNH, em sua atuação como parceira de organizações sociais brasileiras na execução de projetos de defesa e de promoção de direitos humanos de crianças e adolescentes, é um dos exemplos dessa relação, recepção e diálogo.
No momento em que escrevo esse artigo, o Brasil presencia um acúmulo, cada vez mais crescente, de ataques aos direitos humanos e ao pensamento de Paulo Freire, capitaneados pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, e seus aliados e aliadas. Mas, esse artigo também está sendo escrito no ano do centenário de Freire, quando muitos textos, eventos acadêmicos e atos políticos, buscando reconstruir a memória e o legado desse pernambucano que se tornou cidadão do mundo, nos lembram que o tempo presente requer luta, muito mais do que lamentação, e precisa ser alimentado pela esperança, não aquela que é confundida com pura espera, porque “não se alcança o que se espera na espera pura”, mas aquela que se ancora na prática e sem a qual “não podemos sequer começar o embate” (FREIRE, 1992, p. 5-6).
Referências
ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. (217[III]A). Paris. Disponível em: https://declaracao1948.com.br/declaracao-universal/declaracao-direitos-humanos/?gclid=EAIaIQobChMI_LXEq_Xa8QIVFoCRCh1WdgQ8EAAYASAAEgLQ-fD_BwE. Acesso em: 11 de jul. 2021.
CONCEIÇÃO JR., Hermes Siedler da.; PES, João Hélio Ferreira. Os direitos das crianças e adolescentes no contexto histórico dos direitos humanos. In: PES, João Hélio Ferreira. (Coord.). Direitos humanos: crianças e adolescentes. Curitiba: Juruá, 2010. p. 19-42.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 28. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
______. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2003.
______. Pedagogia da esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
______. Pedagogia do oprimido. 50. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e cultura política: impactos sobre o associativismo do terceiro setor. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2011.
RODRIGUES, Simone Martins. Segurança Internacional e direitos humanos: a prática da intervenção humanitária no Pós-Guerra Fria. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
SOUZA, João Francisco de. E a filosofia da educação: quê?: a reflexão filosófica na educação como um saber pedagógico. Recife: NUPEP/UFPE; Bagaço,
[1] Para uma visão mais ampla da história, atuação e objetivos da Kindernothilfe (KNH), recomendo o site oficial da instituição, que pode ser acessado em língua espanhola no seguinte endereço: https://www.kindernothilfe.org/es/