Artistas Protestam Contra A Ditadura Militar   Tônia Carreiro, Eva Wilma, Odete Lara, Norma Bengell E Cacilda Becker   Restoration

Ditadura e cultura em aula: relato de experiência

Foto – Carlos Eduardo Barzotto

Carlos Eduardo Barzotto

Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), licenciado e bacharel em História pela mesma instituição. Atua na Educação Básica há seis anos, e atualmente trabalha como Professor de História na Prefeitura de Canoas/RS.

E-mail: cebarzotto@gmail.com

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Cristina Mie Ito Cereser

Professora de Arte na Prefeitura de Canoas/RS

E-mail: cristina.cereser@canoasedu.rs.gov.br

A abordagem da ditadura civil-militar brasileira na Educação Básica é um exercício necessário visando a construção de uma sociedade democrática. Ainda assim, ela com frequência vincula-se, nas escolas, a uma repetição de fatos políticos e/ou econômicos sobre o período. As manifestações culturais e sociais no período, no entanto, são de extrema importância, e por vezes ecoam nas culturas juvenis das instituições escolares. As temáticas LGBTQIANP+ e feminista, por exemplo, tiveram grande fortalecimento no período ditatorial – sobretudo após a década de 1970 – e têm feito parte das conversas, debates e negociações feitas em corredores, salas e pátios escolares (SEFFNER, 2013). Da mesma forma, parte das manifestações musicais seguem presentes na vida de determinados estudantes, que conheceram determinados artistas, como Rita Lee, por influência de familiares e amigos, ou que os descobriram nas plataformas de streaming de música.

Desse modo, o presente relato de experiência visa apresentar uma sequência didática interdisciplinar aplicada em uma turma de nono ano de uma escola municipal do município de Canoas/RS. Tal sequência, que foi realizada nas disciplinas de História e Arte em 2023, contou com uma atividade final, na qual foi exercitada a análise das questões culturais e dos movimentos sociais do período ditatorial a partir de fontes históricas. De modo a desenvolver a escrita, apresentamos a criação e a estrutura da proposta, para, em seguida, debater seus resultados.

A proposta

Ao longo da elaboração da sequência didática, a proposição de Flávia Caimi (2009) sobre o uso de fontes históricas no Ensino de História foi levada em consideração com frequência. Valendo-se dos valores estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), a autora afirma que:

Mais do que objetos ilustrativos, as fontes são trabalhadas no sentido de desenvolver habilidades de observação, problematização, análise, comparação, formulação de hipóteses, crítica, produção de sínteses, reconhecimento de diferenças e semelhanças, enfim, capacidades que favorecem a construção do conhecimento histórico numa perspectiva autônoma. (CAIMI, 2009, p. 141)

Assim, foram utilizadas quatro aulas de dois períodos de História para apresentar pontos centrais relacionados à ditadura civil-militar. Além das questões políticas e econômicas, foram abordadas canções, charges, imagens, propagandas e depoimentos do período de modo a desenvolver as habilidades de leitura, análise e problematização de fontes históricas. Desse modo, buscamos desenvolver um repertório contextual para a análise das fontes e também promover uma compreensão mais ampla dos conceitos trabalhados em aula. Ao mesmo tempo, foram utilizados outros dois períodos de Arte para apresentar o movimento do Tropicalismo, bem como pontuar as mudanças instrumentais, vocais e culturais presentes nele.

Em seguida, realizamos uma atividade avaliativa cujo produto final era uma análise de fontes musicais e da imprensa. Dada a importância atribuída pelos próprios estudantes aos debates de gênero e sexualidade ao longo do ano, escolhemos um recorte que privilegiou tais questões. Desse modo, a atividade era composta pela análise de seis músicas, três recortes do periódico Lampião da Esquina e três recortes do periódico Mulherio.

De acordo com Leonardo Schultz e Patrícia Barros (2014), o Lampião da Esquina foi um periódico “guéi” (conforme os editores o escreviam) publicado entre 1979 e 1981. Ele é considerado o primeiro jornal destinado exclusivamente aos homossexuais, e foi essencial para pautar determinadas questões no debate público. Já Mulherio, conforme mostrado por Viviane Freitas (2014), foi publicado entre 1981 e 1988, e destinava-se ao público feminino. Entre as questões suscitadas por ele, estão a participação política, questões raciais, a falta de estrutura parental, a igualdade no mercado de trabalho e o preconceito de gênero. Além disso, ambos os periódicos são citados na literatura, a exemplo das acima citadas, como importantes pontos de articulação de movimentos feministas e hoje chamados de LGBTQIA+ no período próximo à redemocratização. Nossa escolha por tais periódicos, além do interesse dos discentes pela temática, se justificou pela abordagem ampla de questões culturais do período.

Os periódicos, no entanto, não foram disponibilizados na íntegra para os estudantes. Tal decisão decorre tanto da classificação indicativa dada ao Lampião da Esquina no período (para maiores de dezoito anos) quanto do crescente movimento anti-gênero presente no Brasil (BARZOTTO, 2020). Desse modo, aos estudantes  foram apresentados apenas as capas dos números 9, 13 e 17 do Lampião e dos números 1, 3 e 4 do Mulherio. As escolhas foram feitas de modo a propiciar uma leitura das questões que os movimentos sociais referidos debateram no período e sua relação com o regime ditatorial.

Figura 1 – Capa do número 17 do Lampião da Esquina

Fonte: https://cedoc.grupodignidade.org.br/jornal-lampiao-da-esquina-1978-1981/

Acima, trazemos um exemplo da fonte do Lampião da Esquina. A partir dele, esperava-se que os estudantes  interpretassem a expressão “Corre que lá vem os home!” e sua relação com a ditadura militar. Além disso, questionamos os discentes sobre as matanças referidas na imagem e aos sujeitos vítimas delas. Em relação ao Mulherio, trazemos abaixo um exemplo das capas utilizadas. Com ela, buscamos que os estudantes compreendessem a demanda por creches, sua aproximação com o presente, e pudessem discutir a inserção feminina no mercado de trabalho.

Figura 2 – Capa do número 4 de Mulherio.

Fonte: https://www.fcc.org.br/fcc/mulherio-home/

Além dessas questões, as outras capas selecionadas trabalhavam com a noção de “moral e bons costumes”, preconceito contra os “guéis”, a participação feminina na política e a ressignificação de “mulherio” na força política.

Feitas as análises sobre as seis capas escolhidas, os alunos foram orientados também a analisar seis canções: “Para não dizer que não falei de flores” de Geraldo Vandré (1967), “É Proibido Proibir” de Caetano Veloso (1968), “Alegria, Alegria” de Caetano Veloso (1968), “Panis et Circenses” d’Os Mutantes (1969), “Papai Me Empresta o Carro” de Rita Lee (1979) e “Na Cama” de Angela Ro Ro (1981).

Nesse exercício, os estudantes foram convidados a buscar (des)continuidades em relação à colocação da voz, instrumentação e composição das canções. Em algumas delas, como em “É Proibido Proibir”, foi esperado que expusessem o caráter político da canção. Finalmente, em “Papai Me Empresta o Carro” e em “Na Cama”, buscamos refletir sobre a emergência da agência e do prazer feminino, que foi extremamente polêmica no período.

Respostas, resultados, reflexões

A atividade de análise foi realizada em duplas por toda a turma do nono ano da escola. Para tanto, foram utilizados os Chromebooks da instituição, bem como o Wi-Fi da escola. A reação dos estudantes à atividade foi, de forma geral, muito entusiasmada, e eles utilizaram três períodos (dois de História e um de Arte) para realizá-la toda. As fontes causaram estranhamentos – tanto por conta das temáticas quanto por conta do português de algumas décadas atrás –, e diversos estudantes compararam as questões suscitadas em suas respostas.

Lendo as respostas deles, foi possível aferir o desenvolvimento da capacidade de leitura das fontes históricas, bem como o entendimento das noções básicas de composição, instrumentalização e vocalização das canções para o período. Além disso, colocamos uma última questão na avaliação, na qual os estudantes deveriam pensar em músicas que também pautavam questões de gênero, sexualidade ou política. Nosso objetivo, com tal questionamento, era aproximar os questionamentos em relação ao passado com o presente. Foi interessante, nesse sentido, ler as músicas sugeridas por eles, entre as quais estavam raps, cantores contemporâneos (como Baco Exu do Blues) e cantores já falecidos (como Rita Lee). Trazemos, como exemplo, a resposta de uma dupla à tal questão:

Sim, um dos maiores exemplos é o funk, onde muitas pessoas julgam por conta de algumas letras mas nunca pararam para pensar que o funk recita a realidade de muitos moradores de periferia, e pessoas pretas que nasceram e moram na favela. Um dos maiores exemplos disso é a música “céu de pipa” do mc marks. Ele canta sobre as dificuldades do seu cotidiano, fala que abre a janela e não vê o sol brilhar, que abre a carteira e nao tem nada lá, ele pede ajuda a deus e depois canta que sonhou que a favela estava linda, que todos teriam paz e não passaria (sic) pelas dificuldades que eles tem (sic) que enfrentar todos os dias.

Percebe-se, portanto, a relação estabelecida entre a realidade que estávamos estudando com a realidade atual. Buscamos, ao longo da realização da tarefa, instigá-los a aprofundar seus pensamentos, apontar origens ou consequências, e ficamos muito satisfeitos com as respostas. Com isso, os discentes demonstraram também que compreenderam algumas das formas de funcionamento da sociedade ditatorial, sobretudo no que diz respeito à censura e ao comportamento esperado das mulheres. Ao analisar as canções de Rita Lee e de Angela Ro Ro, por exemplo, outra dupla expressou que “As pessoas não aceitam a letra da música, como se fosse “vulgar” uma mulher falar de sexo”.

A turma em questão trazia, desde o ano em que nos tornamos professores na EMEF Duque de Caxias (em 2021), muitos debates sobre questões raciais, de gênero e sexualidade nas aulas. Nas aulas de Arte, por exemplo, alguns discentes de religiões afro-brasileiras ensinaram aos colegas tanto a importância de instrumentos musicais como o tambor quanto a presença da cultura africana na sociedade brasileira. Já nas aulas de História e Geografia, as questões de gênero eram frequentemente levantadas pelos estudantes (principalmente pelas meninas), que questionavam sobre a legalização do aborto, sobre a inequalidade salarial entre homens e mulheres, e sobre violências relacionadas ao gênero e à sexualidade.

Nesse sentido, apostamos na potência de tais abordagens para mobilizá-los a estudar o período ditatorial com a proposta aqui descrita. Foi possível perceber, em suas respostas, tanto o desenvolvimento de uma leitura mais refinada sobre o período quanto também sobre as questões raciais e de gênero que já os interessavam, visto que conceitos mais complexos foram mobilizados e exemplificados.  Além disso, puderam aprofundar a leitura da realidade atual nesse processo. Acreditamos que um bom exemplo desse processo foi a resposta a uma pergunta que questionava sobre os sentidos da música Panis et Circensis. De acordo com uma das duplas de alunos, a canção representava “que eles [os artistas] avisavam o que estava acontecendo, mas muitas pessoas [as da sala de jantar] não quiseram ouvir. Muitas pessoas não querem ouvir até hoje”.

Desse modo, a atividade que tinha como principal objetivo analisar as questões culturais da ditadura civil-militar por meio de fontes históricas nos pareceu um sucesso. Vimos, nas respostas, o desenvolvimento da habilidade de leitura de tais fontes, e também a percepção da pluralidade de temáticas abordadas por elas. Finalmente, os estudantes também conseguiram relacioná-las com o presente e com as manifestações culturais que eles mesmos gostam.

 

Referências

BARZOTTO, Carlos E. Distopia à Brasileira: a (re)produção do discurso antigênero no contexto das políticas públicas educacionais de municípios do Rio Grande do Sul (2014-2019). 2020. 146f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2020.

CAIMI, F. E. Fontes históricas na sala de aula: uma possibilidade de produção de conhecimento histórico escolar?. Anos 90, v. 15, n. 28, p. 129–150, 2009. DOI: 10.22456/1983-201X.7963. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/anos90/article/view/7963. Acesso em: 25 fev. 2024.

FREITAS, Viviane Gonçalves. O jornal “Mulherio” e sua agenda feminista: primeiras reflexões à luz da teoria política feminista. História, histórias, v. 2, n. 4, p. 149–166, 2015. DOI: 10.26512/hh.v2i4.10815. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/hh/article/view/10815. Acesso em: 25 fev. 2024.

SCHULTZ, L.; BARROS, P. M. de. O lampião da esquina: discussões de gênero e sexualidade no Brasil no final da década de 1970. Revista de Estudos da Comunicação, v. 15, n. 36, 2014. DOI: 10.7213/comunicao.15.036.ao04. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/estudosdecomunicacao/article/view/22452. Acesso em: 25 fev. 2024.

SEFFNER, F. Sigam-me os bons: apuros e aflições nos enfrentamentos ao regime da heteronormatividade no espaço escolar. Educação e Pesquisa, v. 39, n. 1, p. 145-159, 2013. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-97022013000100010. Acesso em: 25 fev. 2024.

BARZOTTO, Carlos Eduardo. CERESER, Cristina Mie Ito. Ditadura e cultura em aula: relato de experiência. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Domínio público / Acervo Arquivo Nacional

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