O Golpe de 1964, a ditadura e a educação no Brasil: uma história inconclusa
Entre os dias 26, 27 e 28 foram realizados diversos eventos na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais para lembrar a Ditadura-militar entre aulas públicas, a live com o professor Luiz Antônio Cunha, e o lançamento de livros.
No dia 28 de março, foi proferida uma AULA PÚBLICA pelos professores Aline Choucair (UEMG), Antônia Vitória (UFMG), João Valdir (UFMG) e Taciana Brasil (UFMG) para problematizar o Golpe de 1964 e as atrocidades da Ditadura civil-militar, tomando como objeto privilegiado das reflexões a educação.
A atividade foi realizada presencialmente, no Auditório Neidson Rodrigues, e transmitida ao vivo pelo canal da FaE-UFMG no YouTube.
Convidamos a professora Antônia Vitória para alongar a circulação da sua aula aqui na edição especial da RBEB O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola.
Bom dia caras e caros alunas e alunos, bom dia senhores professores e professoras. Bom dia a todos e todas aqui presentes.
Pois bem. Fui professora dessa casa de 1994 a 2020 quando me aposentei. Fui vice-diretora dessa Escola de 2002 a 2006, Diretora de 2006 a 2010, e pró-reitora de Graduação da UFMG de 2010 a 2014. Podem acreditar que isso sempre me honrou, sempre me honra e sempre me honrará.
Mas, não é desse lugar que vos falo agora. Falo de um lugar muito específico e doloroso: de familiares de mortos e desaparecidos políticos pela Ditadura Miliar-Civil de 1964.
Mas, como diria se aqui estivesse nosso grande Paulo Freire: deixai falar o coração porque ele também ensina.
Então, sigamos.
Se vocês chegarem até a portaria principal darão de frente com o Diretório Acadêmico – DA, denominado Walquiria Afonso Costa. Sabem quem foi ela? Foi uma estudante dessa Unidade, uma das fundadoras do DA-FAE. Assassinada de forma bárbara na Guerrilha do Araguaia em 1974. Walquíria tinha apenas 26 anos, a última sobrevivente desse movimento revolucionário. Foi pega com vida, maltrapilha, faminta, sem nenhuma possibilidade de resistência. Foi fuzilada e seu corpo foi jogado numa vala rasa e nunca foi encontrado.
Se vocês entrarem na internet e procurarem pelo DA-FAFICH, verão que ele se chama Idalísio Soares Aranha Filho, meu irmão. Sabem quem foi ele? Um jovem de 24 anos, estudante de psicologia da FAFICH-UFMG, violeiro, cantador. Também guerrilheiro do Araguaia. Em 1972, na selva do Araguaia, Idalísio, doente da perna com leishimaniose, não conseguia se locomover e procurou abrigo na casa de um camponês, apoiador da guerrilha. Infelizmente, o exército já tinha cercado essa casa e cercou o local onde se encontrava o meu irmão. Sem muita chance de resistência, reagiu ao cerco com uma garrucha velha. Foi ali mesmo metralhado. Elogiado pelo general do exército responsável pela sua morte, pela bravura de sua resistência, teve o rosto estraçalhado e seu corpo nunca nos foi entregue.
O que queriam esse jovens? Vivíamos numa época sombria. Após o Ato Institucional número 5 do general Garrastazu Médici que governava o País, as poucas liberdades existentes com o Golpe de 64 foram extintas. Nenhum movimento de reivindicação, nenhum protesto, nada nada mais era permitido. Qualquer transgressão da regra era punida com prisão, tortura e morte.
Nessa época, Idalísio era presidente do DA FAFICH e Walquiria, tinha fundado o DA FAE. Ambos na mira dos carrascos. Não tinham para onde ir, não queriam sair do País. Queriam justiça, liberdade e igualdade para todos. Queriam o socialismo, uma sociedade alternativa ao capitalismo; sem opressão e de plena liberdade.
Por tanto querer, foram para o Araguaia e lá terminaram suas curtas vidas.
Aos olhos de hoje, pode parecer sonhador e mesmo insano o que esses jovens queriam. Mas, voltemos aos tristes anos de chumbo do País, mergulhado numa brutal ditadura militar, que não vacilava, assassinava, torturava, matava todos que a ela se opunham. Muitos brasileiros já haviam sido mortos, torturados, exilados com ou sem armas nas mãos como Rubens Paiva, Marighela, Mario Alves, José Carlos da Matta Machado, Gildo Macedo Lacerda, entre vários outros.
Quem se opunha, quem ansiava pela liberdade, quem ansiava pelo fim da opressão humana, não tinha para onde ir. Se aqui ficassem, poderiam ser presos e mortos, como foi o caso de Wladimir Herzog. A situação chegava ao limite: ir para a clandestinidade, resistir ou, se possível, sair do País.
Muitos optaram por ficar e resistir. Foi o caso de Idalísio e Walquiria. E pagaram com a própria vida por essa ousadia.
A Ditadura Militar chegava a requintes de sadismos como o fato que relatarei para vocês. Anatólio Soares Aranha, outro irmão, advogado. Tentou auxiliar José Carlos da Mata Machado para fugir da prisão. Zé, como era chamado, também estudante de Direito da UFMG, militante da Ação Popular, que nunca pegou em armas (diga-se de passagem) estava sendo caçado como bicho pelos algozes da ditadura. Pois bem, Anatólio aceitou participar de um plano de fuga de Zé, para ir para o exterior. Esse plano infelizmente foi descoberto, Zé foi preso, torturado e assassinado. Meu irmão, Anatólio e sua mulher foram presos no DOI-CODI de São Paulo. Um dos motivos de sua tortura era dizer onde estava Idalisio! Porém ele foi preso em 1973 e Idalísio já tinha sido morto em 1972…
Em 1979, após uma grande mobilização popular exigindo uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita conquistamos a Lei da Anistia. Muitos exilados puderam voltar, presos políticos foram soltos. Mas a situação dos mortos e desaparecidos continuava sem esclarecimento. A anistia não foi tão irrestrita assim. Só foi para os torturadores e assassinos da Ditadura, que nunca pagaram pelos crimes que cometeram.
Como na situação atual, utilizando o mote da anistia, muitos militares, reconhecidamente assassinos e torturadores como o Brilhante Ustra, continuaram impunes.
Voltando para os dias atuais, quero situar vocês em outro patamar. Nós, familiares de mortos e desaparecidos pela Ditadura Militar, nunca desistimos de resgatar suas histórias, de saber onde estão os seus corpos, de realçar suas contribuições para o fim da Ditadura e o resgaste da, ainda imperfeita, democracia brasileira. Fomos inúmeras vezes a Brasília falar com nossos dirigentes, fomos às selvas do Araguaia, resgatar, nós mesmos, as histórias dos nossos familiares. Fomos e continuaremos a ir, onde for necessário, onde nossos pés alcançarem. Como diz uma dos familiares: relembrar sempre, esquecer jamais. Fazemos parte de um grupo do WhatsApp, intitulado Lista dos Familiares, que reúne cerca de 100 familiares de todos os cantos do País, das mais diversas histórias de mortos e desaparecidos.
Pois bem. Nosso Presidente Lula, eleito com o apoio irrestrito da maioria desses familiares, recebeu familiares de mortos e desaparecidos da Argentina, mas em outubro, se negou a receber os familiares brasileiros. Não me perguntem o porquê.
Recentemente, ele tem se manifestado bravamente e corretamente contra o genocídio feito pelo Governo de Israel, ao povo palestino. E merece todo o nosso aplauso.
Mas, infelizmente, fez pronunciamentos, no mínimo, inadequados e desrespeitosos com relação ao Golpe Militar de 64. Desrespeitosos com relação à vida de muitos brasileiros e brasileiras que tombaram para por fim à ditadura civil-militar de 1964. Desrespeitosos com relação aos familiares dos mesmos que procuram insistentemente saber o que houve com eles e onde estão seus restos mortais.
E, os equívocos do Presidente Lula não pararam por aí. Recentemente se pronunciou dizendo que não desejava remoer o Golpe de 64. E mais: cancelou a inauguração de um museu sobre a Ditadura e chegou a proibir seus ministros de se manifestarem contra a mesma.
Em resposta a ele, a Coalizão Brasil, Memória, Verdade, Justiça, que aglutina familiares de ontem e de hoje, mortos ontem e hoje, por forças repressivas do Estado Brasileiro como familiares dos Mortos e Desaparecidos pela DM, familiares de jovens negros das periferias das grandes capitais, mortos pelas polícias militares, emitiu esse documento. Documento esse que passo a ler:
“FALAR SOBRE 64 NÃO É REMOER O PASSADO, É DISCUTIR O FUTURO
Em entrevista para o jornalista Kennedy Alencar, o presidente Lula afirmou que seu governo não pretende pautar o tema dos 60 anos do golpe, porque ele deseja olhar para o futuro, não remoer o passado.
Entendemos que a fala do presidente é equivocada, e gostaríamos de convidar o governo e a sociedade civil a refletir sobre a questão.
Queremos começar destacando que falar sobre os 60 anos do golpe de Estado não se trata de remoer o passado. Pelo contrário, trata-se de colocar em debate o que queremos para o futuro do Brasil.
Lula apresenta um contraponto entre falar sobre o passado ou reconstruir o Brasil e fazer o país se desenvolver economicamente. Pois então, presidente, o golpe de 64 foi dado para impor um projeto econômico ao país, defendido pelos mesmos setores que seu governo busca enfrentar hoje.
A verdade é que as elites econômicas do Brasil nunca tiveram problema em abraçar o fascismo para impor sua agenda econômica regressiva e de aprofundamento das desigualdades. Foi assim em 1964, em 2016 contra Dilma e em 2018 com Bolsonaro. E é por isso que setores dessas elites financiaram a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023.
Por isso, falar sobre 1964 é falar sobre os projetos autoritários e elitistas da sociedade que continuam ameaçando a possibilidade de o Brasil se afirmar como um país soberano, capaz de produzir desenvolvimento econômico e socioambiental com inclusão e democracia. É, portanto, falar sobre o futuro.
O segundo ponto da fala do presidente que gostaríamos de discutir é sua fala de que ele está mais interessado em discutir o 8 de janeiro do que 1964. Pois nós queremos defender que é impossível falar de um sem abordar o outro.
É a tradição histórica de não punir os golpistas e torturadores do passado que faz com que essas elites econômicas e setores amplos das Forças Armadas se sintam à vontade para continuar buscando soluções de força para impor seus projetos ao país, ao largo da democracia e da soberania popular.
Não é à toa que a nova palavra de ordem do Bolsonarismo seja por Anistia. Bolsonaro e seus aliados sabem que o instrumento da anistia sempre funcionou na história do Brasil para perdoar os que atentam contra a democracia. O que eles querem é repetir esse padrão histórico.
Por isso, repudiar veementemente o golpe de 64 é uma forma de reafirmar o compromisso de punir os golpes também presente e eventuais tentativas futuras.
Lula tem razão quando diz que pela primeira vez militares de alta patente estão sendo chamados para depor e para responder por seus atos. E temos convicção de que o governo não aceitará qualquer chantagem por uma anistia a Bolsonaro e seus cúmplices.
Ao mesmo tempo, porém, Lula diz que a política adotada pelo seu Ministro de Defesa, José Múcio Monteiro é adequada. Pois aqui há uma contradição gritante: de nada adiantará a punição a indivíduos específicos se o Brasil não colocar na mesa definitivamente um debate sobre as necessárias reformas institucionais nas Forças Armadas. Punir meia dúzia de generais mas não promover mecanismos de adequação da caserna à democracia e de subordinação dos militares ao poder civil significa, em última instância, que o pedido de Bolsonaro por uma borracha no passado estará sendo atendido.
Gostaríamos de enfatizar que o próprio presidente faz uma ressalva em sua fala, ao admitir que ainda há desaparecidos no país. Pois bem, presidente, está em sua mãos enfrentar esse tema. É urgente a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, cujo decreto está na Casa Civil há quase um ano. O processo de reparação não foi plenamente reconstruído: a Comissão de Anistia está julgando menos que o governo Bolsonaro, não retomou os projetos de memória das gestões passadas: Marcas da Memória, Caravanas da Anistia, Memória da Anistia, Clínicas do Testemunho. Nessa seara a reconstrução não chegou. E ainda falta avançar na implementação das recomendações da Comissão Nacional da Verdade e no cumprimento das sentenças internacionais ao redor do tema da Anistia como impunidade. Ademais, como pedir às filhas, filhos, irmãos, irmãs, netos e netas, sobrinhos e sobrinhas de desaparecidos políticos, cujos corpos jamais foram encontrados para que esqueçam os seus entes queridos numa vala qualquer desconhecida e abandonada pela própria história?
Ao mesmo tempo, chamamos a atenção para o fato de que essas não são as únicas pendências do Brasil em relação à ditadura militar. Localizar os desaparecidos deve ser parte de uma agenda mais ampla, que passa inclusive por uma discussão sobre o quanto inúmeros setores da sociedade foram atingidos pela ditadura e até hoje nem foram reconhecidos como vítimas do regime. Indígenas, camponeses, moradores de favelas e periferias, a população negra, os LGBTQI+, os trabalhadores – é fundamental que reconheçamos, enquanto país, o quanto o golpe de 1964 impactou esses setores da sociedade, que historicamente foram e continuam sendo alvos preferenciais da violência do Estado. Nesse sentido, há uma pendência enorme do Brasil em termos de memória, verdade, justiça e reparação em relação a essas violências.
Não aceitaremos que, mais uma vez, os governos negociem ou abdiquem dos direitos das vítimas para poder contemporizar com os militares. Não aceitaremos mais tutela cujo preço histórico quem tem pago são os familiares, todos os que foram atingidos por atos de excessão, todos que trabalham pela construção da memória para a defesa de democracia.
Por isso tudo, presidente, falar sobre o golpe de 1964 não é remoer o passado. É algo fundamental para que o senhor e seu governo continuem avançando em uma agenda voltada para transformar o futuro do país, com vistas a construir um país cada vez mais justo e democrático.”
E para finalizar, repetirei: Relembrar sempre, esquecer jamais!
Antônia Vitória Soares Aranha
Antonia Vitória Soares Aranha, Ex-diretora da FAE-UFMG (2006-2010) e ex-Pro-Reitora de Graduação da UFMG (2010-2014). Faz parte do coletivo Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça Reparação e Democracia que reúne familiares de mortos e desaparecidos pela Ditadura Militar e é irmã de Idalisio Soares Aranha Filho, Guerrilheiro do Araguaia (morto em 1972).
E-mail: antoniavitoria@uol.com.br
ARANHA, Antônia Vitória Soares. O Golpe de 1964, a ditadura e a educação no Brasil: uma história inconclusa. Revista Brasileira de Educação Básica Online. Disponível em: <URL>. Acesso em: dia mês ano.
Imagem de destaque: Cartaz de divulgação do evento O Golpe de 1964, a ditadura e a educação no Brasil: uma história inconclusa (2024)