Territorialidades de alunos migrantes na escola
Liliane Tosta Costa
Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal de Goiás, especialista em Métodos e técnicas de ensino pela Universidade Salgado de Oliveira e mestra em Ensino na Educação Básica pela Universidade Federal de Goiás. É professora da Rede Municipal de Ensino de Goiânia e atua na formação de professores como orientadora de estudos do Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).
E-mail: lilianetc@yahoo.com.br
INTRODUÇÃO
Iniciei esta pesquisa[1] com a hipótese de que os alunos migrantes nordestinos eram vítimas de preconceito e bullying. Através da pesquisa foi possível constatar que as diferenças culturais que compõem as identidades regionais são fluidas e a escola se torna o “entre-lugar” (BHABHA, 2013), espaço de negociação que abre possibilidades para trocas culturais e aceitação das experiências e vivências. Entretanto, existem situações no contexto escolar que dificultam o desenvolvimento pleno do aluno migrante na escola. Buscamos compreender o lugar do migrante no contexto escolar a partir da concepção de professores e alunos migrantes nordestinos e da análise dos documentos oficiais que delineiam o trabalho pedagógico escolar.
A pesquisa de campo busca elucidar os impactos e desajustes nas relações estabelecidas com os migrantes. A metodologia utilizada é de cunho qualitativo. Assim, fizemos análise dos documentos curriculares oficiais, observações, aplicamos questionários para professores e fizemos entrevistas com alunos migrantes. Com relação à análise dos documentos curriculares oficiais, fizemos um recorte nos documentos referentes ao ensino de História.
O LUGAR DO MIGRANTE NOS DOCUMENTOS OFICIAIS
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de História apontam que o advento da mobilidade populacional redirecionou os objetivos do ensino de História nas instituições de ensino. Por um lado, há um perfil cultural tradicionalmente estabelecido em cada região que pode receber influências de outras culturas a partir dos deslocamentos populacionais. Por outro, pode haver perda de alguns aspectos da identidade regional provocada pela migração, o que dificulta o processo de (re)territorialização dos recém-chegados. Esse crescente fenômeno social “desarticulou formas tradicionais de relações sociais e culturais” (BRASIL, 1997, p. 26).
Qual o lugar do migrante nos PCN? Ele exerce um papel “desarticulador” que, em certa medida, desestrutura relações tradicionalmente estabelecidas. Esse lugar de “estrangeiro” o torna estranho à realidade sociocultural. “Nesse processo migratório, a perda da identidade tem apresentado situações alarmantes, desestruturando relações historicamente estabelecidas, desagregando valores cujo alcance ainda não se pode avaliar” (BRASIL, 1997, p. 26). O documento elucida a existência do problema e apresenta o ensino de História como forma de compreensão das relações existentes entre construção de identidades e processos migratórios. A forma como os sujeitos envolvidos no processo educativo interpretam esse “papel desarticulador” pode levar ao estabelecimento de atitudes preconceituosas com relação a alunos migrantes no contexto escolar.
Os PCN estão defasados com relação a concepções teóricas importantes referentes a deslocamentos populacionais e construção de identidades. A construção da identidade é um processo híbrido e as trocas culturais decorrentes das diferenças culturais são negociadas e não impostas. A educação escolar se torna o entrelugar que possibilita os processos de negociação e trocas culturais. Como a história de vida dos estudantes será abordada quando o seu lugar nos documentos oficiais remete a desarticulação do que é convencional? O próprio documento aponta a importância de conhecer as características fundamentais da identidade nacional, relacionando-a com a identidade individual e regional. No entanto, parece contraditório pensar que a nação é concebida a partir da influência de diversas culturas, tornando-se uma nação multicultural, mas, ao mesmo tempo, o documento coloca o migrante como desestruturador de identidades regionais estabelecidas historicamente.
Essa concepção é permeada por uma visão tradicional da construção identitária, tendo em vista que se torna um fenômeno fechado, fruto de tradições rígidas e que se desestabiliza com a presença do outro. O fato de destoar tanto da identidade regional padronizada pode torná-lo invisível perante professores e alunos. Essa invisibilidade o excluí da proposta pedagógica e o coloca à margem do processo de ensino e aprendizagem.
TERRITORIALIZAÇÃO E DESTERRITORIALIZAÇÃO
A figura do migrante é complexa. Ele deixa o seu território de origem por motivações diversas, podendo ser de cunho econômico, político, cultural, social ou ambiental, e se fixa em outra região, levando consigo uma bagagem cultural com características identitárias comuns à região da qual saiu. O migrante passa por um processo de (re)territorialização na cidade destino e isso pode refletir no espaço escolar.
Adotamos a ideia de território em uma “perspectiva integradora” (HAESBAERT, 2006, p. 74). O território é híbrido, não é estritamente natural, político, econômico ou cultural, mas todas essas dimensões se agregam. O sujeito “territorializado” é aquele que participa do espaço em todas as suas dimensões (econômica, política e cultural). Deixar de partilhar do território em algum de seus aspectos não leva a desterritorialização de forma definitiva, segundo Haesbaert (2006), mas propicia a (re)territorialização. O fenômeno migratório é um exemplo de (re)territorialização.
Desterritorialização é um conceito tanto simbólico e/ou cultural quanto material. Segundo Haesbaert (2006, p. 143), “desterritorialização, muito mais do que representar a extinção do território, relaciona-se com uma recusa em reconhecer ou uma dificuldade em definir o novo tipo de território”. Os grupos sociais que são marginalizados e/ou excluídos da sociedade e que não se “encaixam” nas relações sociais estabelecidas com o espaço estariam desterritorializados. Assim, sujeitos desterritorializados em determinada região podem migrar para outra em busca de uma possível (re)territorialização.
A pesquisa explicita que um dos maiores desafios para o processo de (re)territorialização dos alunos migrantes nordestinos no espaço escolar refere-se à política da Rede Municipal de Ensino em Goiânia. A organização das escolas municipais não acolhe os alunos que vêm de outras redes de ensino. Quando a escola se omite diante dessas situações segregadoras, ela está se posicionando politicamente e corrobora para a perpetuação de preconceitos contra o migrante no contexto escolar.
(RE)TERRITORIALIZAÇÃO NO ESPAÇO ESCOLAR
O professor é um dos principais agentes da efetivação curricular. A relação entre o currículo prescrito e sua prática é uma via de mão dupla, ou seja, “o currículo molda os docentes, mas é traduzido na prática por eles mesmos – a influência é recíproca” (SACRISTÁN, 1998, p. 165). O professor não é um receptor passivo daquilo que é proposto pelas políticas educacionais. Destarte, ele age, interage, modifica de acordo com suas vivências e condições objetivas de execução da prática pedagógica.
Um processo educativo humanizador exige que os professores estejam imbuídos num projeto de emancipação social, o que requer uma prática reflexiva. O professor tem que se distanciar das ações inerentes à urgência da ação pedagógica e se inserir em uma relação prática analítica da ação. Nas palavras de Perrenoud (2002),
Visando chegar a uma verdadeira prática reflexiva, essa postura deve se tornar quase permanente, inserir-se em uma relação analítica com a ação, a qual se torna relativamente independente dos obstáculos encontrados ou das decepções. Uma prática reflexiva pressupõe uma postura, uma forma de identidade, um habitus. Sua realidade não é medida por discursos ou por intenções, mas pelo lugar, pela natureza e pelas consequências da reflexão no exercício cotidiano da profissão, seja em situação de crise ou de fracasso seja em velocidade de cruzeiro (PERRENOUD, 2002, p. 13, grifos no original).
O que é planejado tem que possibilitar a emancipação do sujeito e isso inclui o auxílio à (re)territorialização dos alunos migrantes. Assim, faz-se necessário criar espaços que deem voz aos alunos que estão socialmente marginalizados. Ter uma escuta sensível que perceba até o silêncio como um pedido de ajuda. Isso deve fazer parte do habitus do professor.
Observei algumas aulas de História Regional, no Agrupamento E, cujo conteúdo foi a descoberta do ouro e a ocupação de Goiás pelos portugueses. O professor passou a música “Frutos da Terra” de Hamilton Carneiro e Genésio Tocantins e abordou as características do território goiano, questões geográficas e culturais. O professor realizou um levantamento dos alunos migrantes, fazendo um paralelo entre semelhanças e diferenças de Goiás em relação à cidade de origem dos migrantes. Em determinado momento, um aluno chegou perto de mim e perguntou: “Tia, você vem todos os dias?”. Eu respondi que não. O aluno respondeu: “Ah, que pena! Quando você vem, o professor não passa tarefa no quadro; a aula é diferente”.
Com esse comentário percebi que a metodologia utilizada pelo professor não fazia parte da rotina escolar dele. Isso se confirmou quando, no final, o professor me perguntou: “E aí, Liliane, foi do jeito que você queria?”. Há uma tentativa de superar as dificuldades encontradas no território escolar, mas essas ações precisam se encontrar com as reais necessidades dos alunos.
Pela fala dos professores ficou claro que a escola não realiza ações que visem auxiliar os recém-chegados no seu processo de inserção e apropriação dos novos códigos culturais do território. Isso pode gerar vários outros problemas como indisciplina e desmotivação no processo de ensino-aprendizagem. Muitas vezes, essas ações pontuais que surgem a partir da percepção da necessidade são tardias. Medidas preventivas são mais eficazes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A educação escolar é um espaço de diversidade, logo, pode ser o entrelugar, esse espaço (re)territorializador que possibilita a inserção do aluno migrante à nova realidade cultural. Os alunos migrantes da escola pesquisada são rotulados pela defasagem curricular que apresentam ao serem matriculados. A percepção de que alunos migrantes nordestinos apresentam “mais” dificuldade de aprendizagem do que outros alunos é uma concepção estabelecida no imaginário do coletivo de professores da escola pesquisada, os quais apontavam a dificuldade de aprendizagem como principal diferença cultural entre os alunos migrantes e não migrantes.
O que ocorre é que o histórico escolar do aluno não é respeitado, pois ao ser matriculado na escola ele é colocado no agrupamento de acordo com a sua idade. Isso gera problemas no processo de ensino-aprendizagem, tornando-se a maior dificuldade de (re)territorialização do aluno migrante na escola. As práticas que visam superar esse problema são insuficientes e precisam ser revistas. E isso está além dos muros da escola. Trata-se de uma política de rede. As escolas municipais precisam elaborar uma forma de acolhimento para os alunos que não são de redes cicladas, para que estes se apropriem dos códigos necessários à sua inserção à cultura escolar.
REFERÊNCIAS
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2013.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história, geografia. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. Disponível em: <https://goo.gl/DQ5eZF>. Acesso em: 19 out. 2017.
HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
PERRENOUD, P. A prática reflexiva no ofício de professor: profissionais e razão pedagógica. Porto Alegre: Artmed, 2002.
SACRISTÁN, J. G. O currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 1998.
[1]A discussão realizada é resultado da pesquisa de dissertação de mestrado apresentada em 2015 ao Programa de Pós-Graduação em Ensino na Educação Básica do Cepae/UFG cujo título é “Numa fôrma seriada o conteúdo é ‘ciclo’: territorialidades de escolares migrantes, do texto ao contexto”.