Entrevista | Analise da Silva

Para a edição de número 25 entrevistamos Analise da Silva. A entrevista foi realizada e gravada no dia 3 de outubro e teve como objetivo conhecer e ampliar a discussão sobre a relação da Universidade Federal de Minas Gerais com a Educação Básica.

Entrevista por Vanessa Macêdo, editora executiva da RBEB

REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO BÁSICA: Então, pensamos em você, Analise, para a entrevista que vai ao ar agora na edição de número vinte e quatro da RBEB, essa é a nossa penúltima edição do ano, considerando as edições correntes. Já tivemos duas outras edições especiais este ano. Dito isso, desde o ano passado tem muita coisa se acumulando sobre o pós-isolamento social, que ainda é uma realidade que a gente está lidando. E uma das questões que nós apresentamos na revista na última edição é um pouco do que veio diante desse pós-isolamento social.

Pensando um pouco como foi o impacto do isolamento social para as instituições, a gente foi adentrando em algumas tensões e formulando algumas perguntas. Acabou que a pergunta inicial ficou para o fim, mas foi ela que puxou essas pautas. Elas foram discutidas dentro da editoria da revista, mas também na coordenação do Pensar a Educação, Pensar o Brasil e pensamos em você por ser uma pessoa que vem se articulando em diversos setores da educação, em diversos espaços e que possui agendas e militâncias em torno da educação.

No entanto, eu gostaria de convidá-la, em primeiro lugar, para que você se apresentasse, falasse um pouco sobre você para quem lê a Revista Brasileira de Educação Básica, para professoras, professores da educação básica que escrevem para nossa revista, que são autores da revista e que você falasse, também um pouco sobre sua trajetória, quem é você no meio dessas militâncias em torno da educação e em seguida eu inicio as perguntas.

ANALISE DA SILVA: Bom, primeiro é agradecer muito pois com esse mar de gente aí para se pensar, o meu nome ter sido acolhido, de ter sido reconhecido, isso é de extremo carinho. Então, eu sou Analise da Silva, sou uma mulher negra de sessenta anos de idade, trinta e nove de casamento, com dois filhos lindos. E em relação à educação, o meu primeiro contato com ela, sem ser do lugar de estudante, foi quando eu tinha quatorze anos de idade, fui fazer o primeiro ano de um curso técnico e uma professora que tinha sido minha professora no segundo ano primário precisou se afastar da docência. Então, eu fui convidada para substituí-la. (Naquela época a gente não tinha ainda instrumentos do tipo licença para questões particulares. Não tinha esse tipo de coisa).

E foi uma experiência fantástica porque eu trabalhei com uma turma a qual era uma turma que, no meu terceiro dia na escola, a supervisora me disse que eu tinha sido pensada para estar ali substituindo a professora visto que eu sempre fui uma aluna muito inteligente, e sempre tive as melhores notas. E tinha mesmo. Inclusive, eu coroei Nossa Senhora todos os anos porque só coroava quem tinha a melhor nota etc. E que ela achava que eu precisava ficar muito atenta para não permitir que o envolvimento com aqueles meninos acabasse me tirando do estudo e ela, inclusive, terminou a frase dessa conversa que tivemos enquanto a gente descia as escaas que aqueles meninos não tinham nenhuma perspectiva de aprovação, que eu não precisava ficar preocupada com isso porque eles não seriam aprovados. E eu achei aquilo um desafio, pensei: bom, então deixa eu tentar ensiná-los. Será que eu não consigo mesmo? Será que eles não conseguem mesmo aprender? Acho que esse desafio foi o meu primeiro namoro com a educação, que até ali era uma coisa super legal de fazer.

Analise da Silva / Créditos: UFMG

Era um trabalho meio horário, eu estava recebendo por ele, até aquele dia era isso. Mas, a partir da fala dessa supervisora mudou tudo para mim. E no final do ano, quando, com exceção de três, os outros estudantes foram aprovados, a supervisora foi a sala de aula e levou uma outra prova que não era a prova que eu tinha aplicado, aplicou nos meninos e falou que estava impressionada pois eles realmente haviam aprendido. Eu tomei uma birra dessa dona que eu fiquei pensando: o que ela achou? Ela achou que eu tinha feito a prova para os meninos ou alguma coisa do tipo? Foi muito chato, mas dali eu resolvi, e aí cheguei em casa, no final do ano, e disse que não ia mais continuar no 2º grau que poderia fazer de mim  uma engenheira, porque que eu iria ser professora.

Não foi uma satisfação para as pessoas de minha família. Elas realmente passaram por muitas dificuldades para garantir que eu tivesse condições de estudar. Quando terminei a quarta série e fui perguntada se eu queria continuar,  eu fui a primeira pessoa da família a dizer: quero continuar. E recebi como incumbência, lembro perfeitamente dessa conversa, disseram: então, seu trabalho vai ser estudar. E eu levei a sério mesmo. E aí essa família era composta por uma mãe lavadeira, um servente de pedreiro, uma doméstica e um funcionário público daquela época. Essa família já tinha passado por várias situações em que os quatro, os avós e os pais tinham se privado de um monte de coisa para que eu pudesse fazer o que eu queria, que era continuar estudando. E quando eu disse para eles que eu não seria engenheira, eu seria professora, eles não gostaram muito, mas passou.

Anos depois, quando eu disse para eles que  tinha passado no vestibular da UFMG, eles ficaram muito felizes. E como naquele tempo o vestibular era bem distinto do que acontece hoje, dependendo da pontuação que a gente fizesse, aí então é que a gente selecionava o curso. E eu tinha pontuação para fazer o que eles queriam. Eu tinha pontuação para ser uma dentista como meu pai queria ou advogada, como minha avó queria. Eu tinha pontuação para tudo isso, só que o que eu queria mesmo era ser professora e era ser professora de História.

Bom, logo quando eu terminei o magistério eu fui aprovada para fazer Pedagogia no Curso do Instituto de Educação (atual UEMG), dois anos depois eu fiz vestibular para História na UFMG, fui aprovada e então eu fiz Pedagogia e História concomitantemente durante dois anos e, enquanto eu fazia isso, eu dava aula, porque eu já tinha sido aprovada no concurso da prefeitura de Belo Horizonte. E o meu salário naquele momento significava, assim, o salário de todas as outras pessoas da minha casa juntas e era uma satisfação enorme poder retribuir tudo o que aqueles homens e aquelas mulheres fizeram para que eu pudesse estudar. E bom, eu acho que foi assim que cheguei na escola. Começo com dezessete anos, pois fui aprovada no concurso da Prefeitura com essa idade. Começar, eu começo lá naquela história da escada, aos quatorze anos de idade, mas oficialmente aos dezessete anos.

A minha mãe precisou fazer um processo que naquela época se chamava emancipação, que é diferente, é algo muito parecido com o que a gente tem hoje no ECA, mas ele era específico para algumas situações, minha mãe sempre ficava me lembrando assim quando ela achava que eu estava namorando ou alguma coisa do tipo, rsrs “lembra que você está emancipada é para trabalhar, o delegado falou isso; emancipação para trabalhar.” Porque essas coisas naquele momento da história aconteciam em delegacia de polícia, que era o delegado quem dava para gente o atestado de pobreza, assim como o atestado de emancipação. E era bastante constrangedor. E é muito bom que hoje o ECA livre as pessoas que sao crianças e adolescentes e suas famílias de passar por isso. Ainda que alguns  delegados fossem pessoas muito legais, muito gentis, a gente não deixava de estar indo para uma delegacia e estavamos no período da Ditadura…

Então eu fui aprovada, entrei com dezessete anos na Prefeitura e aí eu tinha uma perspectiva de futuro que estava colocada, que era a seguinte: dali há 25 anos de trabalho eu me aposentaria. Então, pelos meus cálculos, com quarenta e dois anos de idade eu estaria aposentada e poderia, portanto, fazer um monte de coisa que eu não pude fazer na infância e na adolescência. Eu poderia aprender a nadar, a tocar violão, eu poderia andar de bicicleta etc. mas aí quando faltavam três anos para eu me aposentar, veio a reforma de 2003, que dizia que eu poderia me aposentar com vinte e cinco anos de trabalho desde que com cinquenta anos de idade. Eu tinha quarenta e dois, eu tinha que ficar mais oito. Cinco anos depois disso, eu tive uma situação familiar que me exigiu uma tomada de decisão e, embora eu tivesse certeza absoluta que ia morrer dando aula na educação básica, em outubro de 2008 vim fazer um concurso na UFMG. Eram dezessete pessoas disputando a vaga, cinco dessas pessoas eram professoras e professores da educação superior em outras universidades federais e eu fui a candidata aprovada. Daí vim pra cá. E assim, na hora que eu cheguei, eu tive certeza e informei à minha família (agora marido e dois filhos): “Eu vou trabalhar com formação de pessoas futuras docentes  para educação básica, é isso que eu  quero fazer lá”.

Porque nesses anos, que agora são quarenta e quatro, (29 de educação básica e 15, completados agora em dezembro, de educação superior) o que eu vi durante todo o tempo foi uma depreciação da profissão, foi um desrespeito, foi uma precarização das condições de trabalho. Se nas décadas de 1980 e 1990 a gente conquistou um monte de coisa, a partir da década de 2000 a gente só via as coisas sendo destruídas, desmanteladas. E não só por governos conservadores, mas também por governos progressistas que nós ajudamos a eleger. Algumas medidas foram realmente muito impactantes e, na minha avaliação, contribuíram muito para a precarização do que a gente tem hoje, da formação, do trabalho, das condições de trabalho, da formação continuada, da qualificação do trabalho, das pessoas docentes na educação básica. Eu acho que a chegada das avaliações externas, as avaliações padronizadas, isso não chega num Governo conservador, isso chega aqui para nós enquanto ainda estávamos em um governo progressista. E isso vai definitivamente marcar a educação de qualidade social que a gente vinha construindo desde a década de 1980 e faz com que essa educação passe a ser agora uma… uma disputa entre pessoas, uma disputa entre escolas, uma disputa entre profissionais e entre as próprias crianças, adolescentes, jovens para saber quem fica melhor no IDEP. E isso, as avaliações externas, não chegaram até nós por meio dos governos autoritários ou dos governos conservadores. 

RBEB: Então, considerando esse seu envolvimento com a educação, essa sua trajetória, como você foi construindo esses vínculos, especialmente no campo da luta? Você falou num desafio de educação e logo após você falou também em depreciação da educação a partir da década de 90. Então, assim, como que isso foi te orientando para determinadas questões no campo da educação, ou seja, o seu envolvimento e essa trajetória, porque nós te observamos como uma pessoa que articula muitas pautas, que articula esses campos da militância da educação, mas como isso foi aparecendo na trajetória?

AS: Então, logo que eu cheguei na Rede Municipal, eu fui aprovada em 1978 e tomei posse no início de 1979. E logo que eu cheguei, a grande discussão que se fazia na Rede era uma discussão puxada por homens brancos, professores do ensino médio, os chamados P3, a discussão que eles puxavam era da necessidade da gente constituir uma associação. Naquele momento, a gente ainda não tinha a liberdade constitucional para criar sindicatos, então, era associação, união, coletivos, entre outros nomes. E no caso, o que se estava construindo era a união dos trabalhadores do ensino, a UTE.

E quatro meses depois que eu cheguei na Rede, nós começamos uma greve. Nós éramos as P1, as professoras de 1ª a 4ª série. Os P2 eram os professores da 6ª a 8ª série e os P3, por sua vez, eram os do ensino médio. E os salários eram diferentes de acordo com o nível ou etapa da educação básica em que se trabalhava. E uma das questões que nós  P1s pontuávamos, é que nós éramos a maioria da Rede. E a gente não conseguia entender por que os Comandos de Greve, assim como tudo que a gente fazia era coordenado por eles: homens, P2 ou P3. E se havia alguma P1 lá, era uma ou duas. Então um dia nós resolvemos que iríamos falar isso em uma  assembleia que iria acontecer, que a gente queria conversar a respeito disso e entender o que estava acontecendo, porque, se algumas de nós éramos novatas, a maior parte deles e de nós não era, já estava na Rede há muito tempo. E a Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte não criou as P1 com a nossa chegada. Tinha gente que já estava se aposentando quando a gente chegou, portanto, já existiam as P1. Por que então as P1 não estavam naquele movimento? Isso quer dizer, elas não estavam na direção daquele movimento. E na hora que eu fiz a pergunta quem estava na mesa, na direção da assembleia era o professor Fernando Cabral; nisso várias P1 manifestaram, aplaudiram e tal. Ele falou: eu queria sugerir que esta assembleia aprovasse, professora, que você integrasse o comando. E aí eu disse: “acho que eu não me fiz entender; eu não perguntei por que que eu não faço parte do comando, a minha questão para vocês é porque tem pouquíssimas P1 no comando se nós somos a maioria da Rede. Eu não estou pedindo para que eu faça parte.”

E isso foi uma discussão que não passou pela minha cabeça nem das poucas pessoas com as quais eu havia conversado que isso fosse uma discussão a render tanto. E rendeu até que nas Regionais de Greve, as pessoas começaram a ser eleitas para fazer parte do comando. E aí, com isso, o número de P1s atuantes  aumentou. Isso foi muito interessante.

Então, eu acho que posso dizer que a minha chegada vem daí. Ela não parte daí, pois eu fiz parte do movimento estudantil e eu fui coordenadora, eu fui presidente de diretório acadêmico, eu fazia parte da gestão que criou e que assumiu o diretório acadêmico do curso de Pedagogia do Instituto de Educação, fui e fiz parte de uma gestão de DCE,. Então, tem toda uma história de movimento estudantil que vem antes da história com o movimento sindical. E esse envolvimento, que não para ali, continua, atualmente. Fiquei durante muito tempo, mais de década fora do movimento sindical. Agora, eu estou na diretoria do APUBH, que é o Sindicato dos Professores aqui na UFMG. Mas acho que já dá para explicar por aí.

RBEB: Então, a partir da sua avaliação sobre as pautas que circulam no APUBH, já que a gente o mencionou, desde esse lugar de professora engajada e pesquisadora, como você tem observado a presença da educação básica nos debates e nas discussões das pautas da educação nessa entidade?

AS: Ao mesmo tempo que com muito desejo de que se amplie, também com uma certa preocupação porque é mínima ainda. Daqui alguns dias, acho que mês que vem, vai ter um um encontro nacional do ANDES, que é o Sindicato Nacional dos professores da educação superior, onde se  irá discutir a questão dos EBTTs, os profissionais da educação básica técnica e tecnológica. E aqui na UFMG, a gente tem o TU (Teatro Universitário), temos também o Coltec (Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais) e temos também o CP (Centro Pedagógico da UFMG), que são unidades nas quais trabalham pessoas EBTTs (docentes do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico). O que eu propus e a gente aprovou fazer no APUBH e estamos encaminhando é que a gente consultou as três unidades para ver se alguma pessoa docente filiada teria  interesse em participar, tal, se comprometendo a retornar, fazer uma atividade, um evento em que a gente convide todas as pessoas docentes EBTTs para participar, para ouvir o relato desses três – pois o APUBH vai bancar a viagem, a estadia – com isso, trazer para nós o que foi discutido lá e o que eles estão propondo. A discussão nacional, relacionando esta com como estamos aqui na UFMG e qual é a proposta deles. Então acho que eu posso dizer isso em termos do que o APUBH tem buscado fazer. Eu tenho muita preocupação porque eu acho que ainda está pouquíssimo as coisas que se faz em relação aos EBTTs. E  eu acredito que essa direção que está entrando agora vai se ocupar mais disso, eu acho que a gente fez algumas coisas, mas penso que foram muito incipientes, agora a gente vai dar conta de fazer alguma coisa mais concreta. Espero.

RBEB: Antes de pular para a UFMG de uma maneira geral, eu queria te perguntar pois acho que cabe aqui nesse intervalo, que é como você percebe que é possível fazer essa articulação entre – a gente está dentro de uma instituição, um sindicato dos funcionários, dos servidores dessa instituição como é que se articula essas pautas? Elas estão tão distantes umas das outras porque, às vezes, dá a impressão que elas são muito diferentes, no entanto, em termos de questão nacional, como é que aproxima o que está circulando na APUBH e o que está circulando em termos de ensino básico?

AS: Essas iniciativas (agora é um começo disso) me preocupa porque na UFMG, eu acho que o APUBH de alguma forma (e aí eu não estou falando a diretoria, estou falando a entidade) reproduz bastante daquilo que, na minha leitura, a UFMG faz. Eu entendo que o CP, o TU ou COLTEC, entendo que eles aqui dentro são tratados, ainda, como sendo colégios de aplicação. É como se eles ainda fossem aquele espaço lá que estava discutido na LDB, que era 5692/1971 durante o período da Ditadura. Ou seja,  a gente faz a teoria aqui na faculdade de educação e aplica lá, por isso, eles eram assim denominados colégios de aplicação. Eles não são mais isso há algumas décadas, desde 1996, com a nova LDB (a 9394/1996)  que faz com que eles não estejam mais nessa situação, mas entendo que ainda sejam tratados assim os nossos colegas que atuam nesses espaços, embora, seja cobrado deles nos concursos de ingresso cada vez mais a mesma titulação que é cobrada de nós para o ingresso como educadores da educação superior, eles ainda são tratados de forma diferente, inclusive nos seus salários e carreiras.

Então, eu fico aqui pensando que ainda tem muito que caminhar. Por exemplo, eu fiz uma proposta bem recentemente para algumas professoras do CP para desenvolvermos um trabalho com o livro que eu recebi que se chama “Lute Como Uma Gordinha”. É um livro para crianças em que a ideia é fazer uma educação para relações gordofóbicas e a recepção delas foi muito legal assim tal, entende? Mas eu ainda quero muito que a coisa saia do lugar “eu sou a professora que está indo formá- las” Por que isso? Porque eu entendo essa relação da minha ida às redes públicas municipais, estaduais, federal, eu entendo, que muitas das pessoas docentes que eu encontro lá são leigas, muitas delas tem uma formação bem inicial e daí eu já acho complexo porque se o que a gente discute aqui quando tá formando pessoas futuras docentes é a necessidade da gente construir conhecimento de maneira coletiva, quando eu chego lá eu sou a palestrante, eu estou fora desse lugar que estou ensinando aqui (na Faculdade de Educação) que deve existir. Fico muito indignada quando isso é no trato com os meus colegas EBTTs aqui na UFMG porque nós todos somos servidores públicos daqui e aí acho muito deslocado da teoria que a gente tem aqui dentro esse tipo de prática.

RBEB: É, eu acho inclusive que você também foi pulando já para quarta (pergunta): Dentre as muitas políticas da Universidade Federal de Minas Gerais, quais especificamente têm sido destinadas para as relações com a educação básica? No meu entendimento, você falou que tem pouco, tem muito o que se fazer e que uma primeira janela é justamente essa da relação com os servidores que estão no no TU e no CP. Você gostaria de inserir mais alguma coisa sobre isso?

AS: Eu quero. Bom, então tem três coisas: a universidade faz parte de vários colegiados, fóruns, coletivos, entre outros e um desses espaços é o fórum permanente de educação de Minas Gerais, o FEPEMG. Eu estou no segundo mandato na gestão lá, representando a UFMG e esse mandato é eleito junto das outras 32 entidades que compõem o FEPEMG que vão desde  entidades patronais a entidades estudantis;  entidades de trabalhadores à entidades dos donos de escolas do setor privado; movimentos sociais, a estudantes da educação básica, a estudantes da educação superior, a  famílias de estudantes, enfim, é um leque.

Portanto, uma das atribuições desse fórum é contribuir na elaboração e na aplicação, verificando a efetividade da política de educação no território de Minas Gerais. Então, nós discutimos lá da educação infantil à pós-graduação no setor privado, bem como nas redes públicas, nas 853 redes municipais e mais a estadual. Na educação superior privada e pública. Se a técnica e tecnológica é educação? Está na pauta do FPEMG. E a gente tira algumas deliberações que são apontadas por nós para o Ministério Público, para o Tribunal de Contas do estado e para a comissão de educação da Assembleia Legislativa, para o Conselho Estadual de Educação, assim como para UNDME (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação). O FEPEMG é a entidade que reúne desde a AMM (associação mineira de municípios) que é a entidade que reúne os prefeitos e essas entidades todas que eu citei aqui anteriormente. E a UFMG, por meio da minha pessoa, coordenada tudo isso.

Então, a UFMG fazer parte e, mais que isso, ter sido eleita por dois mandatos consecutivos para coordenar esse fórum não é pouca coisa. Só que às vezes eu fico me perguntando se a UFMG sabe que ela faz isso. É, parece aquela coisa que quando a gente vai submeter projeto de pesquisa sempre vem escrito lá assim: qual é a contrapartida da entidade e tal e que aqui a gente brinca dizendo assim, la contrapartida soy yo. Às vezes, é essa a impressão que eu tenho. Eu já solicitei para a reitoria nesse segundo mandato da reitora que a gente tenha reuniões, eu não duvido e não tenho porque duvidar da relevância do FEPEMG no Estado de Minas Gerais. E nós somos chamados com frequência por gestores públicos, estaduais, municipais, pela comissão de educação da Assembleia Legislativa, pelo Ministério Público. Eu me preocupo se a UFMG sabe disso.

Uma outra coisa que eu acho que tem, que é legal na UFMG, porém, nem sempre muito valorizado mas existe é o colegiado da EBAP, que é o colegiado da educação básica profissional que cuida do TU, do do COLTEC, do CP, que eu acho que é uma coisa que super dialoga com a formação de pessoas futuras professoras da educação básica ou pelo menos deveria. A gente (a FAE) tem acento nesse colegiado no EBAPE. Eu já estive lá nos representando. E, por fim, uma outra coisa que eu acho que a UFMG faz e que ela precisava também se apropriar mais disso e além de aparecer em alguns momentos, eu sei que isso aqui é- é o mundo, mas é a questão do projeto de educação básica para jovens adultos e idosos, que acontece no CP. Nós temos o PROF1 (alfabetização e anos iniciais), o PROF2 ( do 6º ao 9º ano) e o PROEMJA(Ensino Médio), que funcionou no COLTEC durante muitos anos, mas que agora está aqui também no CP.

Portanto, a gente tem alfabetização, tem ensino fundamental e tem médio de pessoas jovens, adultas e idosas. E eu considero que isso é algo que precisava mesmo ter um olhar mais direcionado e mais efetivo. Nós temos aqui na faculdade de educação pessoas trabalhadoras terceirizadas ainda não alfabetizadas, sem ensino fundamental completo, sem ensino médio completo, sendo que é sair do trabalho e ir aqui. E isso, a divulgação institucional disso praticamente não existe, a gente é que sai detectando assim com esse olhar de professora de primeira à quarta série de décadas, com a sensibilidade aguçada pra isso, você sai detectando assim pela vista, deixa eu prestar mais atenção porque parece que fulano não está identificando a leitura ali. E aí você vai lá de uma forma bem cuidadosa até que você sugere: Mas isso demandaria uma campanha, um incentivo que fosse institucional, que fosse para dizer para essa pessoa: você vai poder jantar no bandejão sem ter que pagar por isso para poder sair daqui do seu trabalho e ir direto ali pro CP, você vai poder, na hora que a aula acabar vai ter seguranças aqui que vão te acompanhar até lá embaixo porque uma coisa é você sair daqui as 17h quando o dia está ainda iluminado e outra você sai daqui às 21h ou 22h da noite. Mas obviamente, a Reitoria não tem, ninguém tem como obrigar as pessoas. Mas eu tô falando de um chamamento que seja mais do que eu, – a professora aqui no corredor – a professora aqui na hora do café, a professora que, enquanto esperava o Uber, conversou comigo e falou que tem. Para esses sujeitos tal incentivo institucional faz muita diferença. Talvez, inclusive, colocar como um dos itens do contrato das empresas terceirizadoras que tem aqui dentro, essa obrigatoriedade da própria empresa divulgar para eles que existe, a própria empresa facilitar a vinda deles. De forma que a gente pudesse efetivamente fazer aqui na prática aquilo que a gente fala lá fora quando vai fazer palestra, é o que deve ser feito. E olha, não estou dizendo que a UFMG não faz coisa, mas ainda é muito incipiente. Nós temos 88 milhões, em Minas Gerais são 11 milhões de pessoas que são sujeitos de direitos da educação de jovens e adultos. Três milhões dessas pessoas são atendidas. Aqui na UFMG duzentas e quinze. Então dos oitenta e oito milhões, três milhões são atendidos. Então,oitenta milhões de pessoas destas fazem parte o povo terceirizado que está aqui dentro das instituições de educação. Então, é isso. Está bom.

RBEB: Agora, vou pular para nossa última pergunta, que na verdade foi a primeira a ser elaborada, no momento em que a gente considerou você, especialmente quando estávamos pensando sobre esse retorno às atividades presenciais. A gente ainda está nesse momento de como é que as coisas vão ficar, semestre passado foi muito difícil, este aqui ainda segue sendo difícil, mas vou te perguntar o seguinte: Observando as tensões pós-covid e o impacto do distanciaamento social, como essas consequências podem ser compreendidas e analisadas considerando aquelas pessoas crianças, adolescentes e adultas que agora retornam para o espaço da escola.

AS: Com responsabilidade. Você me pergunta sobre pessoas crianças, adolescentes, jovens e adultas e eu quero falar sobre pessoas que estão fazendo licenciatura na UFMG. Uma das disciplinas que eu leciono é a didática da licenciatura. Então, todo mundo que vai dar aula, passa nessa disciplina. Eles trabalham os conteúdos específicos lá nos institutos de origem e trabalham com a gente aqui na FAE, como que faz pra dar aula? Como é que dá a aula desse conteúdo? Dar aula é uma técnica, não é uma coisa que dá pra sair fazendo intuitivamente. Vira e mexe, a Globo mostra alguém, que está lá fazendo aquilo que o Estado não faz, alfabetizando pessoas que deveriam estar sendo alfabetizadas com o Estado cumprindo aquilo que está colocado lá no Art. 208 da Constituição Federal que é obrigação dele, mas isso não pode ser romantizado na minha avaliação. Então, se nós estamos aqui formando pessoas futuras professoras e aí a gente observa que no pré-pandemia, eu tinha todas as turmas com mais de 40 estudantes, na pandemia eu tive turmas com trinta e dois, trinta e cinco estudantes, porque teve gente que não conseguiu mesmo. Mesmo com tudo que se fez aqui dentro para garantir notebook etc. teve gente que não conseguiu mesmo, por exemplo ficar aqui para vários pessoas sem o bandejão funcionando, porque foi essa situação que elas viveram por causa do isolamento social necessário, foi inviável. E aí elas foram para casa, foram para roça, foram pro interior, aí não tem Wi-Fi rodando assim, perguntando “quem quer me usar?”. Não é assim e então diminuiu. Nesse período agora pós distanciamento social diminuiu mais ainda.

No semestre passado eu estava e eu conversava com eles direto para, inclusive, saber se eles conheciam alguém que não voltou esse semestre, dizia: pergunta para a pessoa o que está acontecendo. Por quê? Eu tive uma turma com trinta e dois, uma com vinte e seis e uma com vinte e cinco estudantes de licenciatura, é muita gente a menos. Eu até encaminhei uma mensagem de e-mail aqui na faculdade de educação para todo mundo perguntando assim:Eu tô vendo coisas? Foi só com a minha aula? E obtive um retorno de quase trinta por cento dos meus colegas, quase todos eles no privado, mas eu fiz uma tabelinha e a encaminhei para eles. E na tabelinha eu colocava os quantitativos de como era antes e de como estava, isso no semestre passado, e questionei o que explicaria aquilo. Não coloquei os nomes das pessoas e devolvi para o coletivo de novo. Naquele momento, final de semestre, “vamos discutir”… mas não discutimos. Este semestre tem mais gente. Mas ainda não chegou às quantidades de  quando estávamos na pandemia. Chegar aos mais de quarenta não tive ainda depois e já conversando com vários colegas ninguém teve. As turmas não voltaram a se encher. E elas não voltaram a se encher porque o país não saiu da situação que ele estava. E isso se reflete quando os professores de Minas Gerais, quando professores da rede estadual de Minas Gerais me chamam para conversar. Porque eles me dizem a mesma coisa. E me preocupa muito mais quando eles me dizem isso em relação a crianças porque o ECA está aí, no qual há trinta e dois anos diz que elas têm que estar na escola obrigatoriamente. Só que elas não voltaram. E aí o não voltar tem várias explicações e várias pesquisas também se fazendo ainda para entender os motivos. Então, tem desde as pessoas  adolescentes que descobriram que conseguem viver sem escola, o que é uma tragédia, porque isso significa que daqui algum tempo, nas camadas populares você vai ter um vácuo, uma lacuna geracional em relação às pessoas escolarizadas.

O número é muito grande. Os professores falam comigo nas reuniões assim, eu tenho 9 na turma x. A turma mais cheia que a gente está tendo aqui é a turma y que está com 15. Está entendendo o tamanho da coisa? E aí estar lá no FEPEMG, na coordenação representando a UFMG, significa lidar com isso. E aí em muitos momentos eu tenho que ficar pensando assim, mas a instituição não fez nada em relação aos que estão comigo lá na sala que ainda não voltaram, o que eu vou sugerir aqui para fazer na educação básica no território de Minas Gerais. Você tem um número significativo de crianças, adolescentes e jovens que ainda não voltou para Belo Horizonte que continua lá no lugar para onde foi durante o período do distancimanento social. E continua lá porque as famílias continuam desempregadas. E ele vai ajudar muito mais estando lá do que estando aqui, no entanto, acontece que estando lá ele perde a vaga dele aqui eu me lembro da minha mãe indo comigo na delegacia e da minha família se privando das coisas para que eu pudesse estudar. Isso é muito sério. Muito. E é algo que não dá pra tratar com número. Quando os meus colegas professores na UFMG me dizem (e aí eu estou te falando porque eu não ouvi isso uma, nem duas vezes) que a turma que tá cheia aqui é aquela que tem dezessete. Antes nós falávamos em turmas com mais de quarenta.

Na educação básica e o pleito era exatamente que não fizesse isso, porque a gente precisava de espaço, precisava de tocar naquele ali, de dialogar com aquele outro ali, focar naquele ali, mas, com 40, ninguém conseguia fazer isso na educação básica. O ensino médio fez assim, enxugou a educação da Rede Estadual e os números continuam aos borbotões nos índices. Entendeu? Só que eu estou indo lá quase toda semana. Não tem esse tanto de menino. Mas nos índices continua ótimo, “Os meninos do ensino médio estão entrando no negócio formativo lá do novo ensino médio”, eu estou indo lá quase toda semana. Não tem isso. Mas o governador foi reeleito. E o governo estadual continua informando que está tudo lindo no novo (SIC) ensino médio. 

RBEB: Assim, uma pergunta: por onde essa discussão está rolando assim, é claro que você está me chamando atenção do FEPEMG, mas onde é que essa discussão rola? Na minha leitura, esse impacto de longa duração, esse não retorno, onde é que está gestando isso?

AS: Tem um fórum nacional, eu esqueci o nome dele agora, mas posso providenciar de falar, reformado por entidades de pesquisa da educação superior. Então, a Anfope, Ampae, ANPEd, todas fazem parte do FEPEMG, diga-se de passagem. Está todo mundo junto nesse fórum, ele é pra discutir e apontar problemas e possibilidades para essa tragédia desse novo ensino médio. E tem um fórum que tem isso tudo também, essas entidades também tal que é para discutir a questão da resolução que é a portaria do MEC que altera agora a formação para professor. Então, nesses dois espaços o povo está fazendo essa discussão. Depois se precisar eu posso até achar eu te falo. Eu falo porque como elas estão no FEPEMG, logo, também fazem parte.

RBEB: Encerrando te agradeço demais pela fala, pela conversa… É muito bom te conhecer, te admiro muito, eu, Vanessa do Pensar A Educação, Pensar O Brasil. Então assim, super te agradeço pela disponibilidade. Sei que você anda muito ocupada, já dá para ter um petisco assim por onde você circula e o quanto você está em diálogo fazendo com que essas discussões em educação circulem e a gente possa encaminhar essas coisas que estão muito atrás, quando você falou assim da década de noventa, das pautas do quanto que a gente vai perdendo essa- esse espaço de referenciação de escola e então a gente tem muito o que correr atrás. Hm- huh. Nossa, quanto a gente tem. E agora nesse último ponto aqui sobre- sobre o pós isolamento social e sobre a ausência dessas pessoas no espaço da escola que segue, te agradeço muito, isso também serve para gente ir pautando as nossas questões dentro do Pensar A Educação, Pensar O Brasil, Analise. Enfim, te agradeço mais uma vez. 

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