Rogério Alves/TV Senado

A influência do módulo II na prática pedagógica de professores em uma escola do campo atingida pelo rompimento da barragem de fundão

Simone Silva

Simone Maria da Silva

Professora de Artes, ensino fundamental,médio e EJA; Mãe em tempo integral; Comissão dos atingidos de Barra Longa/MG; Militante do Movimento dos atingidos por barragens (MAB)

e-mail: simonebarrasilva@hotmail.com

O contexto: escola do campo e atingida

Esse Relato de Experiência apresenta como a formação continuada dos professores foi realizada na Escola Estadual Padre José Epifânio Gonçalves (EEPJEG) e como os temas como a Educação do Campo, o Crime de Rompimento da Barragem de Fundão (CRBF) da mineradora Samarco (controlada pelas mineradoras Vale S.A e BHP Billinton) ocorrido em 2015 (PINHEIRO et al., 2019) e a Mineração, foram incluídos na pauta das discussões, e da prática pedagógica dos professores. Esses assuntos fazem parte da trajetória da escola, mas até então não faziam parte do seu contexto formativo.

Segundo Andrade (2018), dos 50 milhões de m³ de rejeitos de mineração de ferro contidos pela Barragem de Fundão, 34 milhões de m³ de lama atingiram cerca de 600 km de rios com o seu rompimento, causando expressivo impacto ambiental às áreas atingidas. A lama percorreu os rios Gualaxo do Norte e do Carmo, alcançando o curso do rio Doce até sua foz em Linhares, no estado do Espírito Santo. Nesse percurso estava a EEPJEG, em Barra Longa, onde o rio Gualaxo encontra-se com o rio do Carmo (Figura 1). Andrade (2018) afirma que os impactos socioeconômicos e ambientais, afetaram atividades econômicas de pequenos agricultores, pescadores, comerciantes, produtores de queijos, geleias, iogurte, entre outros. Além disso, verificou-se impactos no turismo em alguns municípios atingidos.

Figura 1: Áreas afetadas pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Barra Longa (MG)
Fonte: G1, 2015.

Barra Longa, cidade vizinha de Mariana, localizada aproximadamente a 45 km de Bento Rodrigues (vilarejo de Mariana mais próximo e atingido pelo CRBF), não apresentava e não apresenta a atividade minerária – especialmente a megamineração – como principal fonte econômica. Antes do CRBF havia garimpeiros que buscavam seu sustento nos rios Gualaxo do Norte e do Carmo. Porém, a exploração do ouro de aluvião foi uma das atividades que incentivou a formação do povoado que hoje tem na agricultura e pecuária leiteira as principais fontes de renda do município.

Nos primórdios da penetração das Minas Gerais, vários colonizadores chegaram à região Mata de Ponte Nova, formando aí pequenos núcleos de povoação. Nessa época, o Coronel Matias Barbosa da Silva, Senhor de muitos escravos e poderoso em armas, lançou nestas partes várias posses, legalizadas anos depois por cartas de sesmarias. Na principal destas posses, fundou ele entre 1701 e 1704 o pequeno arraial de Barra de Matias Barbosa, mandando erigir uma capela, em torno da qual desenvolveu o povoado. A fertilidade das terras, próprias para a agricultura e a exploração do ouro de aluvião, abundantes nos rios Carmo e Gualaxo do Norte, foram fatores determinantes na fixação dos primeiros habitantes e no desenvolvimento do povoado, atual Cidade de Barra Longa. O topônimo do município é proveniente da confluência (Barra) dos rios do Carmo e Gualaxo do Norte, que nascem nas serranias de Ouro Preto, vindo fundir-se a pouco mais de 1 km a oeste de Barra Longa, sugerindo por este motivo a toponímia (IBGE, 2017) 

Em 2016 a EEPJEG foi reconhecida pela Secretaria do Estado de Minas Gerais (SEE/MG), como escola do Campo com base na Resolução 2820 de 11 de dezembro de 2015 (MINAS GERAIS, 2015), que institui as Diretrizes para a Educação Básica nas Escolas do Campo de Minas Gerais, “um marco do reconhecimento de uma educação diferenciada para os povos do campo no Estado” (MENDONÇA; FREITAS, 2017). Fato que evidencia ainda mais a importância de os professores conhecerem a trajetória da escola e inserí-la na prática pedagógica, especialmente após a escola ser atingida pelo CRBF.

Escola do campo é compreendida como aquela situada em área rural, conforme definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – ou aquela situada em área urbana, desde que atenda, predominantemente, às populações do campo, como determina o decreto nº 7.352 (BRASIL, 2010). A Educação do Campo por sua vez, surge num contexto de organização coletiva em busca de reconhecimento de direitos e potencialidades, e é nesse contexto que encontramos os Princípios da Educação do Campo. O poder da organização dos povos campesinos pode ser confirmado em conquistas que garantem esses princípios por legislação, como o Decreto Nº 7.352 de 4 de novembro de 2010 que “Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA” (BRASIL, 2010), e a Resolução SEE Nº 2820 de 11 de dezembro de 2015 que “Institui as Diretrizes para a Educação Básica nas Escolas do Campo de Minas Gerais” (MINAS GERAIS, 2015).

O trabalho pedagógico com base na Educação do Campo inclui o envolvimento do conhecimento escolar com o contexto dos sujeitos. Assim, esse relato “norteia-se por princípios, os quais devem ser atendidos para que um projeto possa ser denominado de Educação do Campo” (OLIVEIRA, 2019). No caso desta proposta de estruturação da Educação do Campo, especialmente onde a devastação do CRBF chegou, foi necessária a problematização sobre o lugar que a mineração ocupa na educação. Para Andrade (2018), o desastre ocorrido passa agora a fazer parte da história e da memória dos locais atingidos. Nesse relato a discussão entre mineração e educação pautou-se em Hunzicker (2019) que, ao estudar os temas mineração e CRBF na escola atingida em Bento Rodrigues, Mariana, constatou indícios do silêncio nas práticas.

No ano de 2016, a EEPJEG deparou-se com duas novas situações: ser atingida pela lama do CRBF e ser reconhecida como Escola do Campo. Os professores e funcionários da escola, além de terem o seu dia-a-dia afetado por trabalharem em uma escola atingida, também, na sua grande maioria, o foram enquanto moradores (na sede da cidade e nas áreas rurais), configurando-se, portanto, uma vivência de múltiplos afetamentos. Embora a escola tenha sido atingida e siga até hoje sofrendo as consequências do ocorrido, seus profissionais não estão incluídos dentre as categorias rpofissionais os atingidas pelo RBF de Barra Longa (Quadro 1), segundo a categorização da Assessoria Técnica Independente – ATI (AEDAS, 2021).

Quadro 1: Categorias Profissionais de Barra Longa atingidas pelo RBF
Fonte: Elaborado com base em AEDAS (2021).

Em 2020 a EEPJEG corroborou a formação continuada dos professores, trabalhando temas como as afetações da escola com o CRBF ao longo dos anos; sua adequação quanto a construção da identidade como escola do campo, somando-se aos desafios diante da pandemia da Covid-19. As reuniões de atividades extraclasse, de caráter coletivo, também chamadas de reuniões de Módulo II, conforme instrui o Ofício Circular GS Nº 2663/16 (MINAS GERAIS, 2016), são de cumprimento obrigatório pelos professores e devem ser programadas pela Direção Escolar, em conjunto com os Especialistas de Educação Básica, para o desenvolvimento de temas pedagógicos, administrativos ou institucionais de forma a atender às diretrizes do Projeto Político Pedagógico.

Nesse relato apresentamos resultados e possibilidades de trabalhar de maneira a integrar o cotidiano dos sujeitos da EEPJEG ao reconhecimento e construção de identidade da escola enquanto escola atingida e do campo.

A trajetória na Escola Padre Epifânio: do sonho em ser professora à realidade da lama

A EEPJEG, localizada em Barra Longa – MG às margens do rio do Carmo, é a única escola do município a oferecer formação nos Anos Finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e Educação Profissional. A escola foi fundada na década de 1960, funcionou como particular e atendia, em sua maioria, ao público urbano ou àqueles estudantes do meio rural que conseguiam lugar para ficar na cidade, em troca de trabalho. Na década 1970 ela foi transformada em “estadual”, e como escola pública foi aberta a todos. Entretanto, o acesso ainda era restrito devido à distância entre a sede do município e as comunidades rurais, o que foi minimizado com a oferta do transporte escolar a todos os estudantes (CARVALHO, 2022). Atualmente, o transporte escolar ainda é um desafio devido a precariedade de algumas estradas não pavimentadas, sobretudo no período chuvoso.

Sou da comunidade de Gesteira (distrito de Barra Longa, também atingido pelo CRBF), e lá estudei até ingressar na EEPJEG. Quando chegava à escola para estudar e via os profissionais eu pensava: “um dia serei professora aqui”. Eu achava chique, sabe?! E ainda acho. Ser professora para mim é o caminho de buscarmos a transformação em nós mesmos por meio do conhecimento. Integrar os conhecimentos da vivência individual com os escolares, compartilhar e trocar com os que são trazidos pelos estudantes. Isso é fascinante!

Consegui! Sou uma profissional da escola onde sempre sonhei. Comecei como Auxiliar de Serviços Gerais – cargo que inclusive ocupava na escola à época do CRBF – continuei meus estudos, me formei em Artes, e hoje sou professora na escola.

Vivenciei todo o desassossego que começou no dia 6 de novembro de 2015 quando chegamos para trabalhar e deparamos com aquela situação. Até chegar à escola naquele dia foi difícil. Eu só consegui porque não estava em Gesteira no dia anterior. A situação local estava complexa e o deslocamento no município também estava muito difícil pelo fato da lama ter interditado diversos locais da cidade.  Vários profissionais não chegaram na EEPJEG, pois foram impedidos pela lama. A praça da cidade de Barra Longa era só lama. Então a escola também se deparou com a triste realidade: fomos atingidos e agora? Vários espaços da escola foram avassalados pela lama (Figura 2) que já não era somente de rejeitos. Junto da lama que invadiu a cidade, as casas, a escola…, havia vidas açoitadas, lares destruídos, casas, objetos, documentos, amores, viveres, histórias. 

No dia do rompimento (5 de novembro de 2015), às 17 horas, os professores estavam em reunião na escola. Alguém comentou sobre o ocorrido, que hoje sabemos que foi um crime, mas ninguém deu ouvidos. Pensaram que era uma barragem de água e que seria normal como outras enchentes já ocorridas. As aulas da EJA no turno noturno ocorreram normalmente, mesmo com pessoas conhecidas ou parentes ligando e avisando do perigo.

Foram várias comunidades atingidas, e minha Gesteira se foi… Que dor! A escola onde estudei as primeiras letras, onde eu brincava nas tardes com meus amigos, amigos-parentes, afinal todos éramos parentes. Quando não era parente de sangue era parente do parente. A lama roubou a minha história! Minha vó, meu tio… vidas que foram por causa da tristeza da chegada da lama, que não suportaram a dor das perdas. Alguns perderam tudo, outros quase tudo. Quando a lama chegou, as pessoas queriam resolver a situação, limpar suas casas, comércios, voltar à vida normal. Não houve nenhuma orientação por parte da gestão municipal ou da Samarco quanto aos cuidados ao se lidar com a lama, não se sabia o que havia na lama. Na escola tudo coberto por ela: o laboratório de informática, o laboratório de ciências, salão nobre, biblioteca, sala de leitura. Tudo foi embora na lama. Fomos nos adaptando, os professores tiveram que encontrar novo jeito de trabalhar. Lecionar onde era possível considerando-se a redução do espaço da escola devido aos impactos da lama.

O CRBF levou para dentro da escola situações adversas onde os profissionais e estudantes tiveram que conviver sem entender estes novos acontecimentos. No primeiro dia ninguém conseguiu fazer nada, ficamos em choque. Depois fomos nos inteirando dos acontecimentos e impactos da lama no município: pontes caíram, estradas interditadas, árvores, animais, casas, tudo seguia em meio à lama, rio abaixo. Era difícil de acreditar. Algumas pessoas da zona rural, quando ouviram o barulho do impacto da lama chegando, subiram morro acima, sem pegar documentos, roupas, nada…Perderam tudo. Passaram a noite no meio do pasto, sem nenhuma orientação, sem saber o que estava acontecendo.

Na escola, estávamos ali, perdidos no meio daquela lama e nem ao menos nos víamos como atingidos. Sem compreender o que acontecia e sem saber o que aconteceria com toda aquela lama que adentrou em nossas vidas, enquanto trabalhadores da escola e moradores de Barra Longa. Muitos das nossas famílias, já tinham perdido tudo na roça devido à lama. O sentimento era de impotência, era tudo muito estranho e novo. Seguíamos diariamente tentando retirar a lama, na escola, em nossas casas. Trabalhávamos sem máscara, sem luvas, sem nenhuma proteção ou orientação. Simplesmente trabalhávamos em meio ao barulho ensurdecedor de máquinas e caminhões pesados, aquele cheiro horroroso em nossas narinas. A escola tentando se adaptar com espaço limitado para os estudantes e professores desenvolverem as atividades, pessoas estranhas entrando e saindo da escola, mas nada era discutido.

Dói ainda hoje, porque as pessoas “de fora” não entendiam a situação que estávamos vivendo. Nem a gestão escolar e municipal estavam preparadas para uma situação como aquela.

Figura 2- Fotos da EEPJEG atingida pela lama do CRBF, novembro de 2015.
Fonte: Arquivo da EEPJEG (2015).

E, em meio ao caos, ainda vivíamos o medo de um novo rompimento, visto que não se sabia se alguma das outras barragens localizadas próximas à do Fundão, no complexo Germano da Samarco, teriam sido comprometidas a ponto de também romperem. A desinformação era tão grande que estávamos constantemente tensos, tanto que um certo dia, quando uma colega falou que a barragem de Germano – que era muito maior que a de Fundão – havia rompido, quando estávamos fazendo a limpeza da escola, passei mal e fui parar no hospital por elevação de minha pressão arterial. De fato, a barragem de Germano não havia rompido, mas ninguém sabia ao certo o que estava, ou o que poderia ocorrer. Até hoje, passados mais de 6 anos, o sentimento que temos enquanto trabalhadores da educação é de que nada foi feito, não houve e nem haverá justiça. Nós, professores e demais trabalhadores da EEPJEG, fomos multiplamente atingidos pelo CRBF pois, já havíamos sido atingidos em nossas propriedades rurais ou urbanas, e a lama também nos alcançou na escola. E não somos reconhecidos, enquanto trabalhadores da educação, como tal.

Vivenciei ser trabalhadora atingida enquanto auxiliar de serviços gerais, e hoje vivencio, como professora na mesma escola. Nesse percurso, enquanto moradora e trabalhadora atingida, também me constituí como uma ativista na luta por direitos. Os relatos que apresento neste texto são frutos de uma construção identitária de atingida ao longo destes 6 anos do CRBF, portanto, são frutos das formações na EEPJEG, da convivência e também da formação política que tenho no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Hoje me considero um sujeito de direitos! Minha formação de professora foi marcada pela lama e levo essa vivência para minhas práticas pedagógicas.

Estudantes e profissionais da EEPJEG conviveram e convivem com as consequências do rompimento. A Samarco apesar de ter feito as obras no interior da escola em tempo recorde, elas foram insuficientes, e não vieram acompanhadas de um trabalho de qualidade. Até hoje faltam livros para a biblioteca, um piso adequado para o salão. O piso da rampa de acesso está afundando, a horta não produz mais, a quadra agora é desnivelada e tem problemas no telhado, entre outros vários problemas. Sem contar o fato de que a lama que foi retirada da escola e de outras partes baixas da cidade, foi levada para os morros, locais que residem pessoas que já vivenciam situação de vulnerabilidade socioambiental, caracterizando-se o “Racismo Ambiental”.

A prática pedagógica no contexto do rompimento

As limitações e desafios impostos pelo CRBF à escola fez com que ao longo dos anos sua identidade e de seus trabalhadores fossem também se reconstruindo enquanto escola do Campo e atingida. A lama e sucessão de danos e violações que vieram com ela, levou-nos a questionar a nossa própria postura, enquanto educadores diante do processo de rompimento que perdura por anos. Buscamos por possíveis caminhos, para se desenvolver atividades que contribuíssem para a promoção do conhecimento a respeito da própria realidade da escola. Uma dessas medidas foi firmar, no ano de 2020, parcerias com instituições e entidades para realizar a formação continuada dos professores. A parceria com o Grupo de Pesquisa e Ação em Educação do Campo no Território dos Inconfidentes (GiraCampo) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), por exemplo, proporcionou nossa participação no projeto de extensão intitulado “Educação do Campo: Caminhos para Soberania Alimentar e Formação Continuada de Professores da rede pública do Território dos Inconfidentes”. A proposta foi desenvolver um trabalho pedagógico à luz da educação do campo, que promovesse o desenvolvimento integral dos sujeitos e abrangesse metodologias que incentivassem o protagonismo, a coletividade, a contextualidade.

Para estruturar propostas pedagógicas diante desse contexto, buscamos os princípios da Educação do Campo e reconhecemos o campo como espaço de possibilidades, sobretudo, pedagógicas. A formação continuada dos professores é, portanto, um direito conquistado. Entretanto é necessário compreender o lugar que a EEPJEG ocupa no processo de formação para promoção de vida, de reconstrução, de reconhecimento da própria identidade e como é constituída a relação entre a Educação do Campo e a educação-mineração. Neste sentido, a formação continuada destaca-se por fortalecer a prática pedagógica no contexto do CRBF e da Educação do Campo, que segundo Menezes (2013), pode ser compreendida a partir de três princípios: o protagonismo dos sujeitos; a escola como direito, e a produção sustentável de vida. Uma escola do campo carece de orientar sua prática pedagógica baseada nesses princípios e para a EEPJEG, uma escola que teve sua realidade modificada por situações tão marcantes, essa necessidade torna-se ainda mais evidente.

O projeto organizado pela escola em 2020 baseou-se em sua realidade e considerou os contextos: pedagógico, humano e administrativo. Desenvolvido por Áreas de Conhecimento, foi inicialmente planejado para ser desenvolvido de maneira presencial, com participação efetiva dos sujeitos que compõem a EEPJEG. Entretanto, com o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19, foi necessário um replanejamento. A formação continuada dos professores, que estavam muito engajados com os cursos, foi permeada pelo tema do projeto com encontros entre as quatro áreas de conhecimento que contavam com a participação dos integrantes do GiraCampo/UFOP. Com apoio de um dos programas de formação, a escola desenvolveu uma proposta de projeto que visava levantar e sistematizar informações sobre o processo de produção e aquisição de alimentos pela agricultura familiar do município de Barra Longa, que foi denominado “Soberania e Segurança Alimentar na Pe. Epifânio” (Figura 3). A alimentação escolar, segundo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), deve advir de no mínimo 30% (trinta por cento) da agricultura familiar (BRASIL, 2009).  Na EEPJEG esse alimento vinha das comunidades do entorno que foram atingidas e, portanto, o abastecimento da escola foi comprometido com o CRBF, bem como a segurança alimentar devido ao grande número de quintais afetados pela lama do rompimento.

Figura 3: Infográfico do Projeto “Soberania e Segurança Alimentar na Pe. Epifânio”
Fonte: Arquivo da EEPJEG (2020).

Essas discussões proporcionaram uma nova organização da prática pedagógica para o ano de 2021. Os professores inseriram à ela, temas relacionados com a realidade da escola como: mineração, rompimento de barragens, Educação do Campo,  que continuou com o Projeto Interdisciplinar e a parceria com o GiraCampo, contudo, o planejamento teve como foco a formação continuada dos professores utilizando os horários destinados ao Módulo II, com encontros mensais nomeados de “Veredas Pedagógicas” Esta era uma iniciativa da direção da escola (Cilésia e Ângela), que na ocasião  continha 62 profissionais, dos quais 44 eram professores da educação básica (PEB).

Os encontros visavam discutir e aprofundar o conhecimento sobre os temas de relevância para a escola, o que fundamental para interligar o diálogo sobre a Educação do Campo e os impactos da mineração, especialmente do CRBF, e tinham a duração de 2 horas. Em 2020 e 2021 esses encontros aconteceram de maneira remota pelo Google Meet, o que contribuiu para a maior participação interna da escola e também para garantir a presença de grandes educadores externos, nas Veredas Pedagógicas.

Dois dos encontros foram marcantes. O primeiro aconteceu no mês de março de 2021, com o tema “Educação do Campo” tendo como convidado o Prof.º Dr.º Marcelo Loures (do GiraCampo/UFOP). No encontro ele apresentou a Educação do Campo de maneira contextualizada com nossa realidade e nos inseriu no debate, proporcionando-nos reflexões e aprendizados como: o que é campo? Como trabalhar com temas do campo sem criar uma dicotomia campo-cidade? Como trabalhar com a alimentação na prática pedagógica? 

O segundo encontro, aqui destacado, aconteceu no mês de outubro de 2021 com o tema: “O Silêncio Pedagógico sobre a Mineração e a Educação do Campo na prática escolar”, e teve como convidada a professora Adriane Hunziker (doutoranda em Educação na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – FaE/UFMG). Ela trouxe uma reflexão dialogada com os professores a respeito da existência desse silenciamento acerca de temas que fazem parte do contexto da escola (Figura 4). Esse encontro foi fundamental para que o papel da escola atingida fosse questionado e se tornasse um assunto de pauta nos planejamentos e práticas pedagógicas.

Figura 4: Cartaz de divulgação do Encontro do mês de outubro de 2021, do Projeto “Veredas Pedagógicas”
Fonte: Arquivos da EEPJEG (2021). Elaborado pela direção da EEPJEG.

Outra grande contribuição para a formação continuada foi a participação de 7 professores, dente eles eu, no Projeto de Extensão “Educação em Tempos de Pandemia: construindo caminhos para a escolarização básica na região da Bacia do Rio Doce – MG”, promovido pela UFMG e UFOP (Figura 5). A participação nesse projeto elevou o nível do diálogo na escola a respeito do tema, pois quinzenalmente nos encontrávamos numa formação com participantes de diferentes territórios atingidos pelo CRBF, e que vivenciavam desafios semelhantes. As reflexões realizadas foram compartilhadas na EEPJEG nos horários de planejamento, o que foi muito significativo para a nossa prática, pois seus efeitos foram estendidos também aos estudantes e aos outros profissionais da escola.

A participação no “Projeto Pandemia” como ficou conhecido, proporcionou a interação entre professores de diferentes municípios, e permitiu que conhecêssemos a realidade vivenciada por outros municípios atingidos pelo CRBF como nós. Mas também envolveu desafios como a dificuldade de acesso dos professores aos estudantes no contexto de isolamento social; o lidar com as questões psicológicas; e como inserir a mineração e o CRBF na prática pedagógica. 

Figura 5: Cartaz de divulgação do “Projeto Pandemia”

Fonte: Material recebido do “Projeto Pandemia” maio/2021

Considerações finais

Sabemos que ainda estamos caminhando, mas hoje os professores da EEPJEG têm a consciência da importância de inserir em sua prática pedagógica os temas que estão presentes no nosso cotidiano como o CRBF, a mineração e a construção da identidade enquanto escola campesina. Esses não podem ser silenciados e sabemos que o Módulo II é um importante momento para dialogarmos e aprofundarmos nossos conhecimentos e principalmente, nos organizarmos para garantir uma escola de direito que proporcione o protagonismo dos sujeitos que tem como meta a formação cidadã.

Enquanto faço a revisão deste texto (janeiro de 2022), a EEPJEG e a cidade de Barra Longa passam por mais um desafio: os alagamentos diante de fortes chuvas. Embora a questão do aumento de precipitação devido as mudanças climáticas seja uma realidade, acreditamos que esse alagamento também reaviva de alguma forma o CRBF, pois o fundo do rio é remexido e a lama volta para a escola e casas. E como lidar com essa repercussão constante da lama na escola? Como ficar diante dessa situação? A escola segue com suas perdas, porque a lama está de volta ao solo da escola, a horta ainda “morta”, a quadra… recebem novamente a lama. Muitas coisas perdidas e as violações seguem, sem perspectivas de justiça e reparação.

Temos consciência da importância de falarmos, discutirmos, refletirmos e desenvolvermos práticas pedagógicas que expressem nossa realidade enquanto escola do campo atingida. Certamente esse será um tema para nossas discussões e práticas pedagógicas em 2022. Enquanto as aulas não chegam, as águas chegaram e trouxeram novamente a lama, a dor, o odor, a lembrança, a cobrança, a fala, a vala, a consequência. Vamos seguir, agora como professores cientes de nossos direitos, de nosso papel enquanto indivíduos e principalmente enquanto educadores. Nossa indignação em não sermos classificados como trabalhadores afetados pelo CRBF alimenta nossa busca por conhecimento, formação e direitos.

Mas, não estamos sozinhos. Em meio a esse contexto a parceria com projetos de extensão de universidades e movimentos ativistas nos possibilita a formação continuada e a interação coletiva dos professores de diferentes territórios atingidos pelo CRBF. Experiências que oportunizam contatos com o conhecimento científico, o desenvolvimento de práticas pedagógicas contextualizadas e nossa constituição como professores e sujeitos de direitos.

Referências bibliográficas

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AEDAS –Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social. Categorias Profissionais de Barra Longa Atingidas pelo Rompimento da Barragem de Fundão. Belo Horizonte: AEDAS, 2021. Disponível em: https://aedasmg.org/wp-content/uploads/2021/10/Livro-Trabalho-e-renda-Barra-Longa.pdf

BRASIL. Decreto Nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA. Brasília, 2010. Disponível em: http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/ mn_decreto_presidencial_7.352_de_4_de_novembro_de_2010.pdf

CARVALHO, Cilésia Maria de Oliveira. Desafios da Escola Estadual Padre José Epifânio Gonçalves no contexto do rompimento da barragem de Fundão: um estudo das Representações Sociais dos Professores por meio de análise de atas de reuniões. 2022. Dissertação (Mestrado em andamento) – Mestrado Profissional em Educação e Docência (Promestre), Universidade Federal de Minas Gerais, 2022. 

G1. Infográfico rompimento da barragem de Fundão. 2015. Disponível em: https://g1.globo.com/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/2015/11/criancas-de-barra-longa-falam-sobre-destruicao-da-lama-video.html. Acesso em 11 de janeiro de 2022.  

HUNZICKER, Adriane Cristina De Melo. O Rompimento da Barragem de Fundão: repercussões nos saberes e práticas dos professores da escola de Bento Rodrigues. 2019. 170 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.

INSTITO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSITCA – I BGE, 2017. Cidade de Barra Longa. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/mg/barra-longa/historico Acesso em: 11 de janeiro de 2022.

MENDONÇA, Augusta Aparecida Neves de; FREITAS, Érica Fernanda Justino. Carta às Escolas. Impresso. SEE-MG. Belo Horizonte, 2017.

MENEZES, Luciana de Souza Diniz. Representações sociais sobre a educação do campo construídas por educandos do curso de licenciatura em educação do campo. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação: conhecimento e inclusão social. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Educação. Ofício circular GS Nº 2663/16. 2016. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1wFu7nSF5ip-xmZadXX7KAjwGLsMrFks2/view  Acesso em 2 jan. 2022.

OLIVEIRA, Cristhianne Antunes David. O ensino de língua portuguesa em uma escola do campo do município de Francisco Sá/MG: a proposição de uma Sequência didática como incentivo para o exercício da participação de jovens educandos camponeses em suas comunidades. 2019. 176 f. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019.

PINHEIRO, Tarcísio Márcio Magalhães; POLIGNANO, Marcus Vinícius; GOULART, Eugênio Marcos Andrade; PROCÓPIO, José de Castro. (Orgs.) Mar de lama da Samarco na bacia do rio Doce: em busca de respostas. Belo Horizonte: Instituto Guaycui / Projeto Manuelzão da UFMG, 2019. 316p. Disponível em: https://manuelzao.ufmg.br/biblioteca/o-livro-mar-de-lama-ja-esta-disponivel-em-formato-digital/. Acesso em: 02 fev. 2021.

SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Resolução SEE nº 2.820, de 11 de dezembro de 2015. Disponível em: https://www2.educacao.mg.gov.br/images/documentos/2820-15-r.pdf. Acesso 16 jan. 2022.

SILVA, Simone Maria da.Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 5, Número Especial Educação e desastres minerários,janeiro,2022, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque:  Rogério Alves/TV Senado

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