Creche e/na universidade: Duas reflexões e várias preocupações
A desativação de creches da USP como perda de espaço de estágio, pesquisa e parceria
Mais como testemunho do que como pesquisa, cabe dizer que, no final da década de 1970[1], estudantes da Universidade de São Paulo (USP) empreenderam diferentes frentes de luta, desde o enfrentamento possível às forças da ditadura, representadas, no município de São Paulo, pelas tropas comandadas pelo Coronel Erasmo Dias, passando pela reconstrução dos centros e diretórios acadêmicos, efeito da reativação do movimento estudantil, e enfatizando as melhores condições de ensino e a universidade pública para todos. Em meio a essa movimentação, havia a demanda por creches na universidade que fazia parte de um contexto maior, relacionado ao Movimento de Luta por Creches, e parecia ser conteúdo principalmente de funcionárias administrativas e docentes, representando, para as alunas, a possibilidade de maior participação nas diferentes possibilidades abertas pela experiência na universidade pública, com garantia de apoio pedagógico e segurança para suas crianças.
Se for certo que recortamos na memória aquilo que foi significativo e que podemos reconfigurar as lembranças de acordo com seu maior ou menor significado, é também certo que a criação das creches da USP, há mais de 30 anos[2], representou, mais do que o apoio às mulheres na condição de mães, mas também um salto qualitativo no que diz respeito à educação de crianças pequenas, garantindo o seu direito à educação – de qualidade – desde o nascimento. Nessa linha, foram publicados livros[3] e vídeos[4] sobre o trabalho das creches, além de organizados eventos[5] de estudos e de discussão do projeto pedagógico que era construído em seu interior. No entanto, desde 2015, o projeto das creches da USP se viu ameaçado pelo impedimento de novas matrículas de crianças, que, se, em princípio, não comprometeu a proposta pedagógica, viu a redução de crianças atendidas, a realocação das profissionais, a reorganização dos espaços e, no início de 2017, a desativação da Creche Oeste, do campus Butantã, São Paulo.
Em relação à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), principalmente ao curso de Pedagogia e à formação de professores de Educação Infantil, esse movimento de fechamento gradativo das creches, além de propiciar a constatação da perda de trabalho de vanguarda, alinhado ao que de mais avançado tem acontecido na educação de crianças pequenas, constitui a eliminação de rico espaço de estágio, na ruptura com a possibilidade de parte da equipe apresentar e discutir seu trabalho nas aulas da disciplina obrigatória Educação Infantil, como era feito já há nove anos[6], no desaparecimento de campo privilegiado de pesquisa[7] sobre os estudos da infância e de formação de professores.
Parece interessante, aqui, reforçar que, ainda que a creche possa ser entendida como um benefício a funcionárias, essa é a menor dimensão para a compreensão e a validação dessa instituição. Como já dito em outras oportunidades[8], tem constituído uma forte referência no campo dos estudos da infância o trabalho desenvolvido com as crianças, a partir de uma pedagogia da infância; o olhar sobre a escuta das crianças, capaz de desencadear projetos de educação interdisciplinares, em resposta às suas demandas; e o compartilhamento dessas experiências com pesquisadores nacionais e internacionais, docentes e discentes da USP e de outras universidades, professores e professoras de diferentes redes públicas, que são recebidos para visitas agendadas. Nessa perspectiva, tomando em consideração os pontos aqui apresentados, qual será a dimensão da perda de uma unidade? E de todas?
Pelas ruas da USP havia crianças: o adultecer da paisagem e a possível perda de um projeto de sociedade com as creches
Ao caminhar pelas ruas e avenidas da conhecida USP, campus Butantã, onde está situada a Creche Oeste, diferentes paisagens sonoras vão nos tomando: automóveis de vários tipos, estudantes e funcionários de diferentes institutos e faculdades em passos, ora mais rápidos, ora menos apressados, buscam seus destinos. Juntos, fazem arranjos que compõem o cotidiano universitário. Mas não é raro ouvir alguns deles que, dissonantes, chamam a atenção, rompem com os desígnios desse dia a dia. Referimo-nos às crianças das creches que entoam canções, lidam umas com as outras, choram, gargalham. Mas há algo ainda mais a destacar. Elas têm como prática frequente sair em caminhadas pelos espaços da USP e com seus ritmos implicam muitos às suas vistas e visitas a distintos espaços. Espaço concebido, segundo Henri Lefebvre (2016), em suas dimensões mentais, tocantes ao que é percebido, concebido, representado e àquelas sociais no que é construído e projetado. Trata-se de uma universidade e, portanto, poderíamos nos distrair confiantes, esperando um espaço exclusivamente adulto. No fim de contas, muitos têm se perguntado: para quê crianças nesse universo de estudos e pesquisas de adultos e com adultos? Contudo, somos arrebatadas por outras questões. Quais projetos de infância, de universidade e relações sociais estão sendo evidenciados a partir da creche? É possível compreendê-las também pelo ângulo de uma projeção social mais ampla, com representações peculiares à infância? É possível alcançá-la a partir da luta pelo direito à cidade, ou parte dela, abarcando a universidade como espaço a ser apropriado por todos e todas em extensão à cidade em que se situa? Trata-se de complexa temática que será apenas tocada ligeiramente aqui. Objetiva-se apenas dar continuidade ao já exposto, aliando a isso outros modos de pensar a importância da creche na Cidade Universitária para não estendermos a reflexão à sua relevância para toda a sociedade em geral: comunidades, famílias e, claro, para as próprias crianças frequentadoras.
Como já salientado, inegavelmente a desativação das creches resultará em profundas perdas: pesquisa e extensão, alvo de projetos de estudantes e professores que envolvem também escolas de redes públicas de ensino e não somente estudantes da USP. Vimos nisso pontos fundamentais para a constituição de uma universidade e dos processos formativos dos envolvidos em distintas áreas e que encontram certo comprometimento relativo à qualidade que se pretende obter com uma formação menos aligeirada e mais participativa. As mães, estudantes e/ou trabalhadoras, lutadoras históricas pelo direito à creche e à creche universitária, são fortemente prejudicadas pela desativação desse local de vida entre as crianças. Porém, outras implicações somam-se a essas. Trata-se da compreensão de práticas democráticas no espaço público que envolvam também as crianças presentes em qualquer território, assim, incluímos a universidade.
Na década de 1970, Richard Sennett (2016) apontava para a perda do reconhecimento de universos para além daqueles em que vigoram relações pessoais. Permite perceber, cada vez mais claramente, que o que há para afora, na ordem pública, fora obliterado. Retiramo-nos ou fomos retirados do mundo de relações entre os diferentes e nos comportamos como se as agruras de um cotidiano agressivo e tirano fossem naturais. Há forte relação disso com a luta pela manutenção das creches em diferentes focos e mostras de resistência, já que sua presença motiva relações de caráter horizontal na vida pública, ou, ao menos, interpela o atual estado e as condições em que nos encontramos nas esferas econômicas, política e social. Ocupações presentes têm esse mote resistindo à unilateralidade imposta às relações de uso desse espaço.
A desativação de creches, de uma ou mais delas, promove vagarosamente alterações nas paisagens físicas e de relações encontradas na universidade. Justifica-se: ao transitarem por suas ruas e avenidas fazendo uso de seus diferentes espaços, a partir da creche, as crianças provocam modos distintos de ver o outro e aprender com ele. Meninas e meninos em caminhadas pela Cidade Universitária podem provocar deslocamentos naqueles que com elas se deparam. Percorrem-na desde bebezinhos, tendo-a como local de encontros e confrontos, algo de que carecemos, quando mergulhados numa tessitura puída num cotidiano temperado com invariáveis e óbvios sabores. O direito às diferenças de idade, gênero, credo, etnia e classe social, comuns aos espaços públicos citadinos, consiste em usos e aprendizados que podem ter início numa creche universitária e em suas conexões com o entorno. Sua presença é resistência e luta pelo direito à cidade, em que se pode esboçar conjuntamente projetos de sociedade e cidades apropriadas para todos também a partir da universidade. E de suas creches, por que não?
REFERÊNCIAS
MELLO, A. M. Muitos olhares: as creches como lugares de construção de culturas, relações e histórias. In: ______. O dia a dia nas creches e pré-escolas: crônicas brasileiras. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 166-179.
SENNETT, R. O declínio do Homem público. Rio de Janeiro: Record, 2016.
[1] Fui aluna do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) entre 1976 e 1980.
[2] A Creche Central, situada no campus Butantã, de São Paulo, foi criada em 1982, seguida pela Creche Carochinha, de Ribeirão Preto, em 1985.
[3] Como exemplo, os livros: Creches: criança, faz-de-conta e cia, de Zilma de M. Ramos de Oliveira e Maria Clotilde Rosseti Ferreira; Os fazeres na Educação Infantil, de Maria Clotilde Rossetti Ferreira e Ana Maria Mello; O dia a dia nas creches e pré-escolas: crônicas brasileiras, de Ana Maria Mello; Histórias da Carochinha: contribuições para o ensino, a pesquisa e a extensão de uma creche universitária, de Débora Cristina Piotto, Letícia de Almeida Martins e Bianca Cristina Corrêa.
[4] Elaborados em parceria com o Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (Cindedi), da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (USP-RP).
[5] Por exemplo, o “I Encontro Faculdade de Educação e Creches/Pré-Escolas da USP/SP: parcerias e perspectivas para Educação Infantil”, realizado nos dias 17 e 18 de setembro de 2015, na FEUSP.
[6] As professoras da Creche Oeste e sua diretora apresentavam aos estudantes alguns dos projetos elaborados e desenvolvidos na instituição a partir da escuta das crianças.
[7] É possível citar alguns dos estudos realizados na FEUSP: “Creche e família na constituição do eu: um estudo sobre as imagens e as representações de crianças no terceiro ano de vida na cidade de São Paulo”, tese de Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento; “Conflito na Educação Infantil: o que as crianças têm a dizer sobre ele?”, dissertação de mestrado de Bianca Rodriguez Corsi; “A formação de professoras em uma creche universitária: o papel da documentação no processo formativo”, dissertação de mestrado de Flaviana Rodrigues Vieira; e “A documentação pedagógica e o trabalho com bebês: estudo de caso em uma creche universitária”, dissertação de mestrado de Juliana Guerreiro Lichy Cardoso.
[8] Ver Mello (2010).
Marcia Aparecida Gobbi
Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1992), mestrado em Educação, na área de Ciências Sociais, Cultura e Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1997) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2004). Atualmente é professora doutora da Universidade de São Paulo. Tem experiência na área de Educação Infantil e ensino de sociologia. atuando principalmente nos seguintes temas: educação infantil e infância, fotografia e desenho de crianças pequenas e ensino de sociologia.
E-mail: mgobbi@usp.br
Maria Letícia Barros Pedroso Nascimento
Pedagoga pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (1981), Mestre (1997) e Doutora (2003) em Educação pela FEUSP. Pós-doutorado (sociologia da infância) na University of Sussex, UK (2014). Professora Livre Docente Associada (2016). Desde 2007 é docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP. Trabalha e pesquisa os campos da Educação Infantil, com destaque à creche, e da Sociologia da Infância. Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Sociologia da Infância e Educação Infantil (GEPSI).
E-mail: letician@usp.br