Astronomia

A pedagogia Freiriana e o ensino de física: um relato de experiência

João Berkson Araujo

João Berkson Araujo

João Berkson Araujo é licenciado em Física pela Universidades Estadual do Vale do Acaraú, ativista em defesa de uma educação emancipadora e professor de Física da Rede Estadual de Minas Gerais

e-mail: berksonjuntos@gmail.com

A pesquisa sobre o ensino de Física já tem certa tradição no Brasil, com sua aceleração ocorrendo a partir da década de 1980 (MOREIRA, 2018). Porém, mesmo esses intensos debates sobre o tema ainda não foram capazes de apresentar soluções para os inúmeros problemas que se apresentam no cotidiano escolar em torno da aprendizagem em Física.

Nesse contexto a busca por saídas, tanto pelos pesquisadores na academia quanto pelos professores no “chão da sala de aula”, é extremamente importante. Porém, não é qualquer saída. Não pode nos interessar apenas uma didática ou método de ensino-aprendizagem que garanta que os conceitos da Física sejam apreendidos de forma abstrata, como algo que está fora da vida dos alunos e que surge apenas em momentos de avaliações ou vestibulares.

A educação em geral e o ensino de Física em particular que devemos construir devem estar socialmente engajados e ser libertadores, como Freire preconizava. Nesse sentido, esse artigo busca, através de um relato de experiência, trazer a luz sobre as possibilidades e dificuldades da aplicação do método freiriano no ensino de Física.

Tal experiência ocorreu na Escola de Ensino Médio e Integral Professora Carmosina Ferreira Gomes, localizada na periferia da cidade de Sobral/CE. Nessa experiência busco aplicar o método freiriano na introdução do tema Termodinâmica para uma turma do 2º ano do ensino médio da escola. Acredito que essa e outras experiências produzidas a partir da escola pelos professores e professoras que buscam orientar suas aulas para a libertação dos educandos e sua própria dentro do sistema de opressões em que vivemos devem ganhar espaço para que possibilitem reflexões, críticas e sínteses na construção de uma educação de novo tipo em nosso país.

FREIRE E O ENSINO DE FÍSICA

A educação bancária (FREIRE 2019) é um tipo de educação em que cabe ao educador, como proprietário do conhecimento, transferir e “depositar” no educando, considerado receptor ingênuo e alienado, seus ensinamentos, de forma mecânica, cabendo a este meramente a função de memorizador e repetidor.

Esse modelo de educação é instrumental aos opressores (FREIRE, 2019), justamente por ser uma educação conservadora, que não busca transformação e sim a manutenção das relações de opressão, em uma permanente tentativa de manter o educando e também o educador seres passivos no mundo. Ao mesmo tempo que Freire coloca luz sobre as raízes e razões de ser desse modelo educacional, ele também coloca sua contradição intrínseca: “É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo ou tarde, perceber a contradição em que a “educação bancária” pretende mantê-los e engajar-se na luta por sua libertação.” (FREIRE, 2019, p. 86).

Para Freire, a resposta ao modelo de educação bancária vem a partir da construção de uma educação problematizadora, capaz de libertar educador e educando. Essa educação não poderia partir do método de “depósitos” de conhecimento, mas sim “da problematização do homem em suas relações com o mundo” (FREIRE, 2020, p. 98).

Concordamos com essa concepção e acreditamos que um “educador revolucionário”, como Freire define, deve orientar sua prática nesse sentido. Seja no processo de alfabetização de jovens e adultos ou ainda em uma aula de Física no ensino médio.

O ensino de Física, aliás, é considerado por muitos como um espaço árido para maiores reflexões sobre todas as contradições sociais e também para a prática de uma educação libertadora. É comum acreditar que, por se tratar de uma ciência que estuda a natureza e suas leis, ela está automaticamente desconectada das questões sociais mais proeminentes do nosso tempo, reduzindo-se dessa maneira a enxergar a natureza apenas numa linguagem matemática e técnica. Desse modo, cabe, em especial às ciências humanas, promover a prática da reflexão dos educandos sobre as contradições sociais ao seu redor.

Essa visão mostra-se equivocada, visto que Freire não delimita quais os tipos de conhecimentos que seriam apropriados para gerar reflexões e a criticidade dos educadores e educandos. Uma das características da educação libertadora é que (FREIRE, 2019, p. 97) “o objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos educandos”, ou seja, o que caracteriza uma educação libertadora é o fato de o “objeto cognoscível” ser um gerador de reflexão dos seres cognoscentes, sejam educadores ou educandos e não qual “objeto cognoscível” é esse ou em qual área do conhecimento ele se encontra (FREIRE, 2019).

Dessa forma, é possível abordar, em uma perspectiva de educação para a liberdade, desde as questões de discriminação em uma aula de Sociologia até o estudo de um plano inclinado em uma aula de Física. Para tanto, o mais importante é que o objeto de conhecimento deixe de ser uma propriedade do educador e que seja parte de uma reflexão dos “homens em suas relações com o mundo” (FREIRE, 2019, p. 98).

O ensino de Física, bem como de todas as demais áreas do conhecimento, pode e deve ser apreendido a partir de um modelo de educação problematizadora. Tal abordagem ganha ainda mais relevância dentro da crise do ensino dessa disciplina no Brasil, muito bem apontada por Moreira (2017, p.3), que destaca como o esse ensino é “desatualizado em termos de conteúdos e tecnologias, centrado no docente, comportamentalista, focado no treinamento para as provas e aborda a Física como uma ciência acabada”.

Acredito ainda que esses problemas não terão solução a partir de perspectivas pedagógicas técnicas que ajudem numa melhor compreensão abstrata dos conceitos de Física desligadas da realidade.

TRAJETÓRIAS E ENCONTRO COM FREIRE

Antes da descrição e reflexão sobre a experiência freireana no ensino de Física, acredito que seja relevante, mesmo que brevemente, falar um pouco da minha trajetória acadêmica e do meu encontro com as ideias do filósofo e pedagogo se deu a partir da minha atuação no movimento estudantil na Universidade Estadual do Vale do Acaraú, Sobral-CE.

Embora estivesse cursando uma licenciatura em Física, vale destacar que as disciplinas pedagógicas eram pouco valorizadas pelo sistema curricular do curso e privilegiavam o estudo das disciplinas específicas dos conteúdos de Física, quase sempre tratados de modo distante daquilo que era utilizado em salas de aula.

Tal constatação sempre foi uma crítica minha ao curso, que acabava por não educar os futuros professores desde a universidade a buscar novos recursos didáticos que pudessem utilizar em sala de aula. Schnetzle (2000) expõe que “as disciplinas de conteúdo específico, propriamente ditas, seguem seu curso independente e isolado das disciplinas pedagógicas e vice-versa”, fazendo com que muitos cursos de licenciatura sejam na verdade cursos de bacharéis com disciplinas pedagógicas que confere diplomas de licenciados.

Desse modo, permanece um círculo vicioso em que os professores universitários ensinam como há 30 anos, formando professores que no ensino médio reproduzem o mesmo método que aprenderam durante suas graduações. Nesse ponto, reconhecemos o importante avanço que significou o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID).

O PIBID permitiu o aperfeiçoamento, embora de maneira ainda insuficiente, em alguns aspectos no processo de formação de professores de Física e de outras áreas, levando os graduandos a terem um contato maior com as escolas, enquanto futuro espaços de trabalho, e também oportunizando aos professores universitários refletirem mais sobre a questão da educação e de suas formações não apenas enquanto físicos, mas enquanto professores de Física.

Ressalto a insuficiência desse avanço, mesmo sem desprezá-lo, justamente porque o PIBID, embora tenha permitido que se discutisse mais sobre novas práticas pedagógicas em meu curso em especial, não aprofundou uma reflexão sobre as finalidades e o modelo de ensino de Física e de educação em geral que deveríamos buscar.

Desse modo, meu encontro com Freire deu-se menos pelo espaço das salas de aulas da academia ou no PIBID e mais pela inserção nos próprios movimentos sociais. Desde 2011 me engajei no movimento estudantil da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), entrando assim em contato com o método freireano de educação, amplamente debatido nos círculos do movimento. Tal método foi fundamental em minha formação, pois dava sentido às ferramentas de novas práticas pedagógicas trazidas pelo PIBID com os conhecimentos sobre a Física em si para uma construção que utilizasse tais ferramentas dos conceitos da Física na compreensão do funcionamento da natureza, não apenas no seu aspecto científico abstrato e matemático, mas principalmente num sentido de sua utilização na construção de uma educação libertadora.

Foram esses processos que inspiraram inúmeras experiências ao longo dos meus 10 anos em sala de aula na busca de uma educação que permitisse não apenas ao aluno conhecer a Física, mas principalmente que a partir dela se libertasse e compreendesse melhor suas relações com o mundo, ao lado, por óbvio, do próprio educador.

A APLICAÇÃO DO MÉTODO FREIREANO

A experiência de aplicação do método freireano no ensino de Física ocorreu na Escola Estadual de Ensino Médio Professora Carmosina Ferreira Gomes, localizada na periferia de Sobral/CE. A escolha por essa escola se deu por vários motivos, dentre eles o fato de esta ser a escola onde eu já estava lotado há alguns anos e por ter um corpo pedagógico aberto a novas possibilidades e experiências de ensino.

Além disso, seguindo a reflexão de SOLINO e GEHLEN (2015, p.912), que afirmam ser necessária para a realização da educação freireana que “os problemas [sejam] significativos para os estudantes e estruturadores de todo o processo didático-pedagógico, com o intuito de favorecerem a aprendizagem dos alunos”, a realização da experiência nessa escola deu-se principalmente pelo fato de a abordagem do tema conectar-se diretamente às experiências de vida dos alunos, de suas famílias e comunidade.

A maior parte dos estudantes da escola eram de famílias de baixa renda e têm em suas histórias familiares e comunitárias a relação com a empresa de calçados Grendene, que fica localizada no município. Poucos eram os alunos que não tinham familiares trabalhando ou que já haviam trabalho na empresa, e estes também não estavam alheios ao cotidiano da empresa e dos seus trabalhadores.

O método utilizado por mim na aula e no seu planejamento aproximou-se muito da investigação temática sistematizada por SOLINO e GEHLEN:

(1) Levantamento Preliminar: mapeamento das principais situações significativas envolvidas na realidade local dos alunos e comunidade; (2) Codificação: análise e escolha das situações problemáticas vivenciadas pelos estudantes e comunidade; (3) Descodificação: diálogos estabelecidos com os sujeitos envolvidos no processo, a fim de obter os Temas Geradores; (4) Redução Temática: seleção dos conteúdos/conceitos necessários para compreensão do tema e planejamento das atividades seguindo os Momentos Pedagógicos e os Conceitos Unificadores; (5) Desenvolvimento em Sala de Aula: implementação da proposta em sala de aula. (DELIZOICOV, apud SOLINO, GEHLEN, ANO, p. 913).

Partindo desse método e da realidade dos alunos e da escola, realizamos nossa experiência a partir do estudo da Termodinâmica, na parte introdutória do conteúdo. Tal escolha deu-se pela sua conexão direta com a Primeira Revolução Industrial e consequentemente com o modo de produção de mercadorias, a relação com o meio ambiente, a influência da tecnologia em nossas vidas e as relações de trabalho.

A Termodinâmica é o estudo sobre como a energia em suas formas de calor e trabalho podem converter-se uma na outra, sendo fundamental para a construção das primeiras máquinas a vapor e seus conceitos básicos. Ainda hoje são utilizados em equipamentos como o motor a combustão e o próprio processo de refrigeração de uma geladeira, por exemplo. Porém, além dessa contextualização, o que buscamos nas aulas iniciais foi refletir com os alunos sobre como o desenvolvimento da Termodinâmica tinha implicações muito mais profundas do que apenas a construção de máquinas.

O próprio livro didático foi usado nesse contexto, já que ele buscava relacionar esse estudo com seus aspectos históricos e sua importância na construção das primeiras fábricas na Inglaterra e como a construção da máquina a vapor revolucionou o modo de se produzir mercadorias no mundo.

Aproveitando essa relação, propus aos estudantes uma reflexão sobre a influência das tecnologias nos modos de organização da sociedade, trazendo em especial o tema da fábrica e do trabalho. Nesse ponto os estudantes trouxeram uma série de exemplos de familiares que revelaram como as condições precárias de trabalho na Grendene geravam adoecimento físico e mental aos trabalhadores, além de relatarem os baixos salários e a falta de benefícios, combinada com um assédio moral por parte dos chefes da fábrica. Eles também discutiram a contradição entre essa situação e os enormes lucros obtidos pela empresa que segue crescendo.

Além disso, durante a aula, os educandos e eu fomos instigados a refletir sobre o avanço tecnológico que havia possibilitado a existência da empresa e os consequentes empregos e depois refletimos sobre as condições de trabalho, comparando as condições na época da máquina a vapor e atualmente.

Outro ponto abordado foi a importância central do trabalhador na produção em oposição à pequena parte que ele recebia daquilo que produzia, caracterizando dessa forma as relações de trabalho como uma forma de exploração.

Os alunos também – na esteira da discussão sobre as revoluções tecnológicas, visto que, após compreendermos a relação da Termodinâmica com a Primeira Revolução Industrial, o tema da Segunda e Terceira Revolução Industrial surgiu espontaneamente no debate por parte deles – buscaram refletir e expressaram em suas falas as influências das novas tecnologias em suas vidas. Nesse caso menos a partir das relações de trabalho, mas principalmente através de suas relações de sociabilidade através da internet, celulares, redes sociais e televisão.

Esse processo deu-se ao longo de uma aula em que organizamos a sala em círculo e utilizamos principalmente elementos do contexto da experiência cotidiana dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A realização das aulas cumpriu alguns objetivos iniciais, como levar a uma conexão da ciência com a história e as consequentes relações de desigualdades e injustiças sociais, além de ter uma introdução ao conteúdo de Física de modo mais leve e com uma perspectiva mais integralizadora de conhecimento, relacionando diferentes áreas do conhecimento.

Em relação à reflexão sobre o papel da Grendene em suas vidas, de seus familiares e da comunidade, salta aos olhos as enormes críticas que os alunos tecem à empresa ao mesmo tempo que ela ainda é uma das principais vias de emprego para a juventude na cidade – eles também têm essa percepção–. Nesse sentido essa contradição entre o capital e o trabalho manifesta-se e está latente dentro dos jovens, que puderam discutir e refletir tal tema à luz do avanço das tecnologias que ajudou a formar tal regime de desigualdades.

Para além dessas discussões, pude perceber que, ao longo das aulas posteriores, ao estudarmos os diferentes conceitos da Termodinâmica, como a expansão de gases, conservação de energia na forma trabalho e calor, ciclo de Carnot, etc., a questão sobre como essas descobertas científicas impactaram o mundo sempre surgiu.

Extrapolando os objetivos iniciais, a curiosidade dos alunos em relacionar a tecnologia com as suas vidas foi uma grata surpresa e uma demonstração de que a discussão expansiva do conteúdo programático curricular é uma necessidade urgente nas escolas.

Desse modo, vejo que existe uma necessidade de aplicar o método freiriano no ensino de Física. Elementos como a busca de uma aprendizagem mediada pelas relações do ser humano com o mundo, bem como a tentativa de apreender o conhecimento a partir do início de um diálogo com as vivências dos alunos são aspectos germinais instigantes sobre como Freire é sim aplicável dentro das escolas mesmo nas condições mais difíceis.

Obviamente, tal experiência demonstrou que essas iniciativas são muito mais laboriosas do que as tradicionais aulas que há décadas são repetidas exaustivamente de geração para geração de professores. Porém, num contexto de crise do ensino de Física no Brasil, problemas de modelo na educação brasileira e principalmente na necessidade urgente de construção de uma educação libertadora, tal esforço mostra ser não apenas justificável, mas também necessário e urgente.

REFERÊNCIAS

FREIREPauloPedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2019, 71.ª edição.

MOREIRA, M. A. Grandes desafios para o ensino da física na educação contemporânea. Revista do Professor de Física, Brasília, vol. 1, n. 1, 2017. Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/cb80/f35674fe707490d5910b3cd58f30553e40d2.pdf. Acesso em 22 jul.  2021.

SOLINO, Ana Paula; GEHLEN, Simoni Tormölhen. O papel da problematização freireana em aulas de ciências/física: articulações entre a abordagem temática freireana e o ensino de ciências por investigação. Ciênc. Educ., Bauru, v. 21, n. 4, p. 911-930, 2015.

SCHNETZLER, R.P. O professor de ciências: Problemas e tendências de sua formação. In SCHNETZLER, R. e ARAGÃO, R. (orgs.) Ensino de Ciências: Fundamentos e abordagens. Campinas, R. Vieira/UNIMEP, 2000.

ARAÚJO, João Berkson. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 5, Número Especial Paulo Freire, setembro, 2021, ISSN 2526-1126. Disponível em: <link>. Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Christian Nielsen/Unsplash

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