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Relações de Gênero nas Escolas: ainda é possível falar disso?

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Juliana Gonzaga Jayme

Graduada em Ciências Sociais pela UFMG, Mestre em Antropologia Social pela UNICAMP e Doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP. Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC Minas. Bolsista de Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) Processo no. 310477/2019-0

E-mail: julianajayme@pucminas.br

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Cláudio Eduardo Resende Alves

Pós-doutorando em Educação pela UFMG. Doutor em Psicologia pela PUC Minas. Mestre em Ensino pela PUC Minas. Graduado em Ciências Biológicas pela PUC Minas. Professor da Pós-Graduação em Psicopedagogia da Faculdade Pitágoras. Gestor de Políticas Públicas Educacionais da Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte

E-mail: cadubr@hotmail.com

Embora nem sempre o tema seja muito comentado, as assimetrias de gênero na educação impactam não apenas o cotidiano escolar, mas também revelam as desigualdades na aprendizagem entre meninos e meninas. Os dados do Programa Internacional de Avaliação de Aluno/as (PISA, 2015) apontam que meninos têm resultados superiores na aprendizagem de matemática em relação às meninas, que apresentam melhores resultados na aprendizagem de conteúdos de linguagem. A análise desses dados explicita a reprodução (e a naturalização) da desigualdade de gênero na escola: a inequidade do aprendizado entre meninos e meninas revela a desigualdade também do ensino. Há uma hierarquia dos conteúdos, que valoriza mais a habilidade matemática decorrente do raciocínio lógico, característica atribuída aos homens, enquanto que a habilidade de linguagem e comunicação é associada à sensibilidade, traço visto como próprio das mulheres.

No dia a dia da escola, a prática de violência de gênero — psicológica, física ou sexual, que se dá entre meninos e meninas, meninas e meninas ou meninos e meninos — é outro fenômeno que revela a desigualdade de gênero no espaço escolar e que, certamente, contribui para as dificuldades de aprendizagem e para o baixo rendimento escolar. É importante ressaltar que é comum a violência também entre pessoas do mesmo sexo, na maior parte das vezes entre meninos, seja para demonstração de força, seja por intolerância às manifestações de sexualidade não heteronormativas. Como aponta Richard Miskolci (2012), na escola se explicitam, na maior parte das vezes de forma impositiva e violenta, os ideais coletivos de como as pessoas devem agir, se comportar, numa palavra, ser. Essas expressões de violência revelam que a opressão de gênero não se dá apenas entre homens e mulheres, é, aliás, muito comum entre homens que, na verdade, constroem sua masculinidade, desde a mais tenra idade, de modo agressivo, usando a força. A violência é percebida e ensinada como um valor masculino.

Embora sejam problemas de grande complexidade, as dificuldades de aprendizagem e a violência de gênero muitas vezes têm explicações reducionistas e essencialistas, que atribuem as desigualdades à natureza (feminina e masculina) ou à diferença na socialização de meninos e meninas.

Desde 2015, por meio de uma parceria entre a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e os Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais e Psicologia e a Pró-Reitoria de Extensão da PUC Minas, temos realizado projetos de intervenção que visam à formação continuada de professoras/es nas questões relativas ao gênero, para que possam, no cotidiano escolar, contribuir para a promoção da equidade nesse âmbito. É sobre essa experiência que este artigo pretende refletir e, para tanto, é importante explicitar como vem sendo realizado o projeto.

Em 2015, a elaboração e o lançamento do Caderno das “Diretrizes da Educação para as Relações de Gênero na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte” buscava a um só tempo problematizar as assimetrias de gênero comuns na escola e contribuir com a construção de práticas pedagógicas e políticas públicas educacionais de enfrentamento às práticas sexistas nas escolas (BELO HORIZONTE, 2015).

A partir das demandas das/os docentes apresentadas em 2015, foram realizados os projetos “Meninas e Meninos aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e aprendizagem”, em 2016, e “Gênero, Educação e Cultura: Estratégias de Intervenção”, em 2017. Ambos tinham como objetivo, além da formação de professoras/es da Rede Municipal de Educação no campo teórico-metodológico de gênero, contribuir para o delineamento de políticas públicas educacionais comprometidas com a equidade de gênero (MOREIRA et al, 2017).

Em um primeiro momento foi realizado um diagnóstico para que compreendêssemos o perfil do corpo docente (sexo, idade, estado civil, religião) e uma pergunta que se referia às diferenças de interesse/aprendizagem entre meninos e meninas. Não cabe aqui detalhar, mas a análise dos questionários, de modo geral, revelou que as explicações em relação às diferenças e aos papéis sociais de meninos e meninas eram de modo geral essencialistas, seja do ponto de vista da natureza (por exemplo, as meninas são mais frágeis e têm atenção difusa, enquanto os meninos são fortes e focados) seja do ponto de vista da cultura (a socialização desigual era vista quase como destino, sem possibilidade de mudança); além disso, explicitou-se também a dificuldade em tratar do tema pedagogicamente na sala de aula e, em alguns casos, havia resistência de caráter pessoal, moral e religioso na própria problematização (e desconstrução) dos estereótipos de gênero. Ademais, no cenário político nacional e transnacional com a falaciosa ideologia de gênero, o movimento da escola sem partido e a presença de grupos conservadores nas instâncias federal, estadual e municipal com intuito de coibir a discussão nas escolas, é produzido certo pânico moral (MISKOLCI e CAMPANA, 2017) disseminado entre professores/as e gestores/as de escolas com reflexo nas relações com a comunidade escolar.

Depois de analisado o diagnóstico, foram realizadas, em 2016 e 2017, aulas expositivas e seminários teóricos sobre o tema, rodas de conversa e seminários de encerramento com demandas propostas pelos/as docentes (2016) e apresentação pelas/os docentes de casos ocorridos nas escolas e discussão/problematização a partir do campo teórico-metodológico das relações de gênero. Em 2017, foi constituído experimentalmente um grupo de estudos docente sobre “gênero, educação e cultura”, que realizava encontros mensais no Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte, tendo como mote a discussão das feminilidades e das masculinidades nos espaços culturais.

A partir da avaliação processual das experiências de 2015 a 2017, a ideia em 2018 foi criar estratégias formativas que a um só tempo não interrompessem o processo e respondessem às demandas das/os docentes que agora percebiam com mais eficácia os impactos das assimetrias de gênero no cotidiano escolar, tanto no que se refere às relações entre os/as estudantes quanto no que diz respeito à aprendizagem. As/os professoras/es demandavam ferramentas pedagógicas que contribuíssem para a intervenção no cotidiano escolar.

Assim, em 2018, foi realizado o projeto “Educação e Equidade: assimetrias entre meninos e meninas na escola” em quatro escolas localizadas em diferentes regionais da cidade de Belo Horizonte. O critério de escolha das escolas teve como base a participação em ações dos anos anteriores, desenvolvimento de projetos pedagógicos sobre a temática e interesse pela continuidade da discussão. No primeiro contato com a direção e coordenação pedagógica das escolas selecionadas, foram explicitados os objetivos do projeto, o cronograma de ações, o compromisso ético da pesquisa e o processo de inscrição e acompanhamento docente.

Simultaneamente aos encontros mensais com docentes inscritos/as, dessa vez realizados no campus da PUC Minas, foi feita uma pesquisa de campo nas quatro escolas, com observação participante do cotidiano, conversas informais e entrevistas semiestruturadas com docentes. Para tanto, contamos com a colaboração de estudantes extensionistas dos Programas de Pós-Graduação em Psicologia e Ciências Sociais da PUC Minas. A partir dessa experiência é possível apontar algumas práticas de desigualdade de gênero naturalizadas na escola, como, por exemplo, uso das quadras de esporte preferencialmente por meninos durante os intervalos, enquanto as meninas ficavam nos cantos conversando, posturas diferenciadas de docentes com meninos (tratados com rigor e severidade) e com meninas (tratadas com carinho e delicadeza), atividades por gênero na educação integrada (oficinas de dança para meninas e oficina de tambor para meninos), filas de meninas e meninos e ausência das discussões de gênero em materiais didáticos e paradidáticos comumente utilizados em sala de aula.

Em 2019, diversificamos mais uma vez as ações: foram realizados 1. Estado da arte em plataformas de pesquisas acadêmicas nacionais a partir das palavras-chave: gênero, educação, diversidade, equidade e sexualidade; 2. Levantamento de questões de gênero, ou da ausência delas, em livros didáticos usados nas escolas; 3. Participação e apresentação do histórico da pesquisa no IX Congresso Ibero-americano de Estudos de Gênero na Argentina; 4. Incentivo e acompanhamento de duas escolas que se inscreveram no Programa de Escolas Associadas da UNESCO com foco nos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS), dentre os quais destaca-se o ODS 5 sobre a igualdade de gênero; 5. Integração no comitê permanente do “Plano Municipal de Equidade de Gênero” (BELO HORIZONTE, 2019) elaborado pela Prefeitura de Belo Horizonte a partir da adesão do município à Plataforma 50/50 da ONU Mulheres. Vale ainda destacar que, em 2019, foi assinado institucionalmente um Acordo de Cooperação entre a Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte e a PUC Minas com ações previstas até 2021.

Depois de quatro anos de experiência, a equipe percebeu que era o momento de avaliar os impactos da formação e é o que vimos fazendo desde o ano passado. A análise das informações produzidas até o momento indica que se de um lado há certa sensibilidade para a observação das consequências das desigualdades naturalizadas de gênero, de outro lado não há a incorporação do arcabouço teórico-metodológico do campo de gênero. Desse modo, as/os professoras/es têm dificuldade em planejar de forma sistemática intervenções que promovam a equidade de gênero conectada à própria atividade de ensino-aprendizagem. Em outras palavras, as relações assimétricas só são percebidas nos episódios “problemáticos”, como os atos de violência, as discrepâncias no desempenho nas avaliações de aprendizagem entre meninos e meninas ou a utilização desigual do espaço físico da escola. As relações de gênero não são ainda consideradas como um aspecto do processo de socialização de meninos e meninas, tampouco como dimensão da própria aprendizagem escolar.

Por fim, no ano de 2020, houve uma expansão da equipe com a inclusão de uma estudante de doutorado em Psicologia e duas estudantes de iniciação científica, além das duas extensionistas. Dessa forma, o conhecimento produzido tende a circular de forma interdisciplinar em diferentes modalidades acadêmicas. A articulação da educação básica com a academia propicia a sistematização de saberes, a verificação de hipóteses, a troca de experiências e a experimentação de outros possíveis no enfrentamento às desigualdades de gênero nas escolas.

Respondendo à pergunta título desse texto, sim, é possível e necessário que falemos cada vez mais de gênero nas escolas, principalmente em um país que ocupa o 5º lugar em feminicídio no mundo e o 1º lugar no assassinato da população LGBT (segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020). Nesse sentido, urge pensar currículos que escapem da normalização dos lugares de meninas e meninos na educação. Um currículo que seja inclusivo e permeável às diferenças (PARAÍSO, 2010), um currículo em ação que promova uma ampliação de consciência sobre o mundo e sobre o outro. Para além do currículo dito escolar (com disciplinas, horários, estruturas, regulamentações e sequências), é preciso conceber práticas curriculares que evidenciem e valorizem as relações de gênero, de raça, de classe e de idade, sempre com a intencionalidade de promover a equidade entre meninas e meninos nos processos de ensino e aprendizagem.

Referências:

BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte. Diretrizes da Educação para as Relações de Gênero na Rede Municipal de Educação de Belo Horizonte. Belo Horizonte, 2015.

BELO HORIZONTE. Diário Oficial do Município de Belo Horizonte. Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania. Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. Resolução CMDM nº 03, 2019.

MISKOLCI, Richard e CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de gênero”: notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, set/dez, p. 725-747, 2017.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, UFOP, 2012.

MOREIRA, Maria Ignez Costa et al. Meninas e meninos aprendem a mesma coisa? Desigualdades no processo de ensino e aprendizagem. In: ALVES, Cláudio Eduardo Resende e SOUZA, Magner Miranda de. Educação para as relações de gênero: eventos de letramento na escola. Curitiba: CRV, 2017.

PARAÍSO, Marlucy Alves. Diferença no currículo. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.140, mai/ago, p. 587-604, 2010.

Imagem de destaque: Juliana Gonzaga

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