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Memorelas: o jogo de memória das mulheres brasileiras

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Joana Schossler

Graduada em História pela UNISC, mestre em História na PUC-RS e doutora em História pela UNICAMP, com especialização em Conservação do Patrimônio pelo Institut National de Paris. Pesquisou a cultura balneária no Brasil e publicou o livro “História do Veraneio no Rio Grande do Sul” (2013) e o livro infantil “Minha Praia”, além dos jogo de memória Memorelas e do Quebra-cabeça Revolucionárias.

Contato: mergulhandonolitoral@gmail.com

Na nossa infância, muitas perguntas alimentam a nossa curiosidade. Contudo, as respostas que recebemos ou formulamos são aquelas que muitas vezes constituem nossas narrativas, reforçando os enredos ou rompendo com as estruturas impostas e consagradas. 

Pensar na independência de um país é também refletir sobre como se constitui esse processo de aprendizagem e identificação com uma nação. Entretanto, muitas perguntas pertinentes surgem e o trabalho de professoras e professores torna possível a revisão dos enredos de dependência e independência que ecoam o grito “para quem?”. 

Se todo o processo de aprendizagem em torno da independência do Brasil nos remete à administração portuguesa, à política da corte, à cultura europeia instalada nos trópicos, à escrivadão, às revoltas e à política oligárquica, o bicentenário nos permite revisar imagens e personagens consagrados, ampliando nosso repertório sobre a história do Brasil. Desse modo, celebrar é rever narrativas oficiais e formular novas perguntas sobre esse passado, para o qual poderemos reconstruir memórias menos submissas, menos gloriosas, menos patriarcais, menos soberanas e absolutas, dando visibilidade para narrativas e personagens esquecidos, massacrados, apagados ou  desvalorizados. 

Nesse sentido, trago aqui o relato de experiência da criação e execução de um jogo de memória das mulheres brasileiras, o Memorelas. A ideia é provocar os seguintes questionamentos: Quem são as mulheres brasileiras que estão na nossa memória? Quem são as mulheres brasileiras que fizeram e fazem parte da nossa aprendizagem e da construção dos sujeitos da história?

II.

Uma pergunta simples, mas nem sempre fácil de responder, norteia o jogo de memória Memorelas: “Quem é a mulher brasileira que você admira ou pensa que merece ser lembrada?”. Talvez você esteja refletindo em busca desse nome e, se pesquisar bem, várias das quais pensou talvez não sejam brasileiras.  

Se a resposta estava na ponta da sua língua, excelente, significa que seu olhar, sua atenção, seu conhecimento, sua aprendizagem e sua sensibilidade já estão correspondendo às perguntas presentes. Mas caso você tenha pensado no nome de um homem, saiba que muitas pessoas deram a mesma resposta que você, afinal, aprendemos sobre Pedro, João, Bonifácio, Joaquim, Henrique e outros, devido ao fato de que o protagonismo das mulheres, na maior parte das vezes, estava atrelado aos homens ou a um contexto determinante. Cabe destacar que isso se deve a um controle patriarcal cuja autoridade repreendia seus comportamentos, submetendo-as à reclusão do espaço privado da casa ou das atividades domésticas¹.

Porém, muitas são as mulheres que tiveram destaque na história do Brasil. Nascidas ou não em território brasileiro, a perspectiva feminista tem nos possibilitado olhar cada vez mais para a multiplicidade dessas personagens, seus protagonismos, percusros e atuações únicas. Infelizmente, ainda temos poucas informações e fontes sobre muitas delas, como nos demonstra a publicação “Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade”, organizado por Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil, publicado inicialmente pela Editora Zahar e atualmente pela Companhia das Letras. 

Este livro, com cerca de 900 verbetes, foi uma referência importante para descobrir mulheres sobre as quais eu jamais ouvi e vi na história. Contudo, outras tantas também não estavam ali, afinal, uma publicação requer escolhas, e eu também  precisava escolher apenas 15 mulheres para o jogo de memória. E agora? Quem entrará e quem ficará de fora?  

III.

Memorelas começou a ser pensado em 2018, após a inquietação que um trabalho realizado com meus alunos(as) do 8º ano do fundamental II deixou em mim. Na ocasião, eles realizaram uma atividade interdisciplinar com a disciplina de Artes e História, na qual construíram o perfil de mulheres históricas, fazendo uma pesquisa e depois um “retrato” das mulheres escolhidas por eles, o qual mesclava desenho e colagem. 

Algumas dessas mulheres não tinham uma fotografia, uma pintura, não apareciam no livro didático, não estavam entre as narrativas e os destaques da história e, por isso, os alunos(as) precisaram imaginar e criar a imagem com as informações encontradas.

No auge das minhas três décadas de vida, eu comecei a me questionar quem eram essas mulheres para mim. O que eu tinha aprendido sobre elas na escola e mesmo na faculdade de História, onde a teoria feminista passou a ter protagonismo muito tempo depois da minha formação. Foi por isso que passei a perguntar para as pessoas próximas: “Quem é a mulher brasileira que você admira ou pensa que merece ser lembrada?”. 

Observando as respostas, percebi que essa pergunta não era tão simples para muitos de nós, e que novas e velhas gerações mereciam revisitar os aprendizados sobre a memória das mulheres brasileiras por meio de um jogo que nos fizesse (re)pensar personagens consagrados e olhar para as mulheres como protagonistas da história.

IV.

Neste ponto, cabe um relato breve da minha paixão pelo universo lúdico da infância, pelas ilustrações e pelos livros infantis. Quando eu era pequena, tinha um jogo de memória muito feio e pouco interessante, o que me fez perguntar muitas vezes se não era possível existir brinquedos bonitos. Por isso, estas foram premissas muito importantes ao criar o Memorelas: ser bonito, educativo, durável, interessante e apaixonante. 

Para selecionar as 15 mulheres, estabeleci critérios como: ser nascida no Brasil, raça,  classe e atuação profissional em diferentes períodos do século XIX ao XXI. Desse modo, a escolha se deu de forma coletiva, afetiva e cultural, por meio das respostas que as pessoas deram para a pergunta diretiva, bem como de uma cuidadosa pesquisa histórica. 

Gostaria de enfatizar que a atuação profissional foi um quesito muito importante, pois um dos principais objetivos era dar visibilidade à atuação das mulheres em diferentes áreas de trabalho, bem como às questões culturais do nosso país: música, dança e futebol.

 As demais mulheres foram escolhidas pela frequência que apareceram na memória coletiva; outras por terem pouca visibilidade profissional, algumas por estarem em nosso cotidiano e não sabermos dar crédito ao seu trabalho e, ainda, pelas lutas e atuação monumental, que infelizmente ainda têm pouco reconhecimento. A partir dessa escolha, o objetivo foi provocar uma reação que ouço muito pelos brincantes: “eu não conheço todas essas mulheres!”.  

V.

Após a seleção, a ilustradora e designer gráfica Joana Heck iniciou o processo de ilustração e materialização do Memorelas. Ela desenhou os perfis e colocou no verso das cartas os elementos que identificam suas profissões, buscando assim criar uma forma de brincar com esses elementos. 

Para que os brincantes pudessem conhecer um pouco mais sobre essas mulheres, foi criado um livrinho com minibiografias que aproximam o leitor-brincante das personagens. Para resolver a questão da mulher favorita que não está no jogo, inserimos um par de cartas em branco, no qual é possível desenhar e incluir a mulher que você quiser. 

Figura 1 e 2: Carta em branco para desenhar e incluir a mulher que quiser no jogo e algumas cartas dos 15 pares do jogo Memorelas.  
Fonte:  Acervo divulgação Cecerelê.

(#paratodesverem: A figura 1 mostra as cartas do jogo da memória empilhadas. Em seus versos há 5 faixas coloridas de amarelo, azul, verde, rosa e laranja com desenho de livros, microfone, corações, bolas, filmadoras, microscópio, animais em branco. Apoiada na pilha há uma carta do jogo com a parte da frente toda branca para os jogadores desenharem uma mulher que não encontraram no jogo. A figura 2 mostra três das cartas do jogo. Uma delas, com fundo laranja, tem a imagem de uma mulher branca,  cabelos brancos e óculos de aro preto. Seu nome não está legível. Outra, de fundo amarelo, mostra uma mulher negra, cabelos castanhos curtos, vestido laranja de bolas amarelas, livro e caneta na mão. Abaixo o seu nome, Carolina de Jesus. A terceira imagem, de fundo azul, mostra uma mulher parda de cabelos lisos presos em um rabo de cavalo, vestindo camiseta da seleção brasileira de futebol feminino. Abaixo o seu nome, Marta.)

Como exemplo de personalização das cartas pelos brincantes, tivemos a inclusão da primeira presidenta do Brasil, Dilma Rousseff. Uma criança também se desenhou e destacou os símbolos profissionais relacionados à profissão que ela sonha desempenhar quando adulta, aspectos que demonstram reconhecimento e representatividade².

Figuras 3 e 4: Carta personalizada pela brincante Maira Daniel com a presidente Dilma Rousseff e carta personalizada pela Mariana com o símbolo da saúde, que representa seu sonho em ser médica veterinária. 
Fonte: Acervo pessoal.


(#paratodesverem: A figura 3 mostra a caixa do jogo Memorelas. Uma caixa quadrada, de fundo rosa, com o nome Memorelas: jogo de memória escrito de azul e diferentes mulheres desenhadas ao redor. Apoiada na caixa, há uma carta do jogo com o desenho de Dilma Rousseff – mulher branca, de cabelos curtos cacheados e castanhos, blazer cinza e atrás dela uma estrela amarela e o desenho do Palácio do Planalto; abaixo está manuscrito Dilma Rousseff.  A figura 4 mostra duas cartas desenhadas pela jogadora Mariana: uma menina branca de cabelo loiro liso e roupa de enfermeira, sorrindo. Ao fundo uma parede listrada de rosa e laranja e o símbolo da Cruz Vermelha. Abaixo o nome Mariana. )

Outra experiência muito comum aconteceu durante a Olimpíada de 2020, na qual algumas crianças reconheceram a jogadora Marta a partir de sua experiência com o jogo Memorelas. 

Sabe que aqui em casa sempre jogamos o Memorelas. Aí, assistindo às olimpíadas esse ano, meu filho olhou a Marta na TV e disse: olha mãe, a Marta do nosso jogo! Achei fantástico!! – relato de Helen Ortiz. 

Também é comum ver crianças imaginando e criando narrativas para as personagens do jogo, ou se identificando com elas, como me disse uma criança ao ver a carta da Clara Nunes: “ela tem o mesmo sobrenome que eu, deve ser da minha família!”.  

Cabe destacar que muitas crianças também fazem associações e reflexões com as mulheres que foram estudadas em algum momento da sua alfabetização ou com outras mulheres próximas a si, que têm profissões ou trajetórias semelhantes. Nesse sentido, o jogo incentiva o reconhecimento e o valor de mulheres que estão próximas das crianças, como mães, tias, avós, professoras, empregadas domésticas, vizinhas, amigas…

Memorelas também convida os brincantes para momentos de partilha, de conexão entre crianças e adultos, fato que demonstra que a função da sociabilidade do jogo ensina sobre a cultura e humaniza nossos instintos de vida em comunidade. 

Para albergar o Memorelas, criei, em 2019, a Editora Cecerelê, que já conta com outras publicações, como o quebra-cabeça Revolucionárias,  o livro de colorir “Minha Praia” e a tradução do livro francês Papai, por que você votou no Hitler? O jogo Memorelas só foi possível porque muitas pessoas toparam participar da brincadeira e, sobretudo, porque contei com o trabalho maravilhoso da designer Joana Heck, das revisoras das palavras e da escrita, Raquel Torres e Fabrina Camilotti, e da produção gráfica de Andressa Carrion. 

Em 2021, o jogo Memorelas foi premiado com o 1º lugar no Festival Games for Change América Latina, recebendo o reconhecimento que considero importante para todas as mulheres que até então não receberam o destaque merecido ou que ainda não fazem parte da  nossa memória. 

Desejo que Memorelas possa brincar cada vez mais com crianças pequenas e grandes, para que nossa aprendizagem seja cada vez mais independente, mais igualitária, laica e justa, tornando as mulheres cada vez mais protagonistas da nossa sociedade, desconstruindo os discursos e papéis de gêneros instituídos, estimulando novas perguntas, novas respostas, novas memórias individuais e coletivas e formando novas narrativas e reconhecimento para celebrar, enfim, nossa independência. 

  1. HAHNER, June E (Org.). Mulheres e sociedade, em meados do século XIX. In: Emancipação do sexo feminino. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003, p. 40.
  2. Os brincantes citados no texto são do interior de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Memorelas está presente em todo o Brasil, sendo as regiões Sudeste, Centro-Oeste, Sul e Nordeste as de maior acesso ao brinquedo. Cabe enfatizar que este acesso está ligado ao valor do frete, que infelizmente acaba ficando mais caro para algumas regiões do Norte e do Nordeste.

SCHOSSLER, Joana. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 6, Número Especial Bicentenário da Independência,setembro,2022, ISSN 2526-1126. Disponível em: . Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagens Divulgação Cecerelê – Joana Heck

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