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Práticas de alfabetização e letramento: um (re)pensar

Carla Mariana

Carla Mariana Rocha Brittes da Silva

Possui graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), especialização em Psicopedagogia pelo Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH), concluiu o Mestrado Profissional na Universidade Federal de Minas Gerais (Promestre – UFMG) e é doutoranda pelo Programa de Pós Graduação em Educação Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT – UFSC). Atualmente é professora da Educação Infantil na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, professora do 1º ano do Ensino Fundamental no Centro Pedagógico Verde Vida onde também atua como Coordenadora Pedagógica.

Contato: carlamarianapsicopedagoga@gmail.com

Introdução

Este relato tem por objetivo geral refletir sobre uma das metodologias adotadas em sala de aula para se trabalhar a Língua Portuguesa com crianças do 1º Ano do Ensino Fundamental de uma instituição privada, localizada na região Oeste de Belo Horizonte. Para isso, destaca-se a importância de se (re)pensar propostas que atendam as especificidades da infância, pautadas, principalmente, na criança como protagonista do seu conhecimento (CORSARO, 2011).

De forma específica, pretende-se apresentar as contribuições da metodologia utilizada para o desenvolvimento da escrita, além de oportunizar que professores possam (re)pensar as práticas de alfabetização e letramento. Tal relato se baseia nas vivências realizadas com as crianças sobre a escrita de texto dissertativo-argumentativo no período de fevereiro a junho de 2019.

Base teórica: compreendendo o contexto do desenvolvimento da língua escrita

Há uma intensa discussão sobre a variabilidade da Língua Portuguesa, o que se leva a pensar: como ensiná-la no atual contexto? Cardoso (2005) esclarece que as escolas e professores precisam se adequar às novas demandas sociais, já que os estudantes de hoje não são os mesmos do passado, quando a escola era voltada apenas para a elite, e hoje ela é direito de todos, sendo, inclusive, uma forma de ascensão social.

Ao se vislumbrar documentos oficiais, como o Currículo Referência de Minas Gerais[1], percebe-se que a Língua Portuguesa precisa ser desenvolvida na sala de aula de forma prática e contextualizada. Pode-se afirmar isso, por exemplo, ao citar os campos de atuação previstos, para a área, nos anos iniciais do Ensino Fundamental: da vida cotidiana, artístico-literário, da vida pública, das práticas de estudo e pesquisa. Com isso, percebe-se que

[…] o texto passa a ser considerado o centro de todo o processo de ensino/aprendizagem de língua materna. O conteúdo a ser trabalhado na sala de aula é a própria linguagem, por intermédio de três práticas interdependentes: leitura, produção de texto e análise linguística. (CARDOSO, 2005, p. 29).

Isso significa que se faz necessário trazer para as aulas questões que permeiam o dia a dia do estudante, situações em que ele terá que utilizar a língua de uma forma crítica e criativa, não apenas como reprodução ou cópia de conteúdo, mas na perspectiva do letramento. Ele é compreendido aqui como prática social da leitura e da escrita,

[…] é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como estas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras, letramento não é pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social. (SOARES, 1998, p.72, grifo da autora).

É por meio da alfabetização, na perspectiva do letramento, que o sujeito será capaz de compreender o uso da língua em seus diversos contextos, pensando-se em suas funções e variabilidade. Porém, isso só será possível por meio de práticas pedagógicas que levem tal questão em consideração. É a partir desta necessidade, de se (re)pensar as práticas e propor novas possibilidades, que foi realizada a prática apresentada neste relato.

 

O relato: a língua como processo de construção da aprendizagem

Levando em consideração as especificidades da infância e a necessidade de se alfabetizar letrando, no início do ano de 2019, realizou-se o levantamento dos conhecimentos prévios das crianças em relação à escrita, percebendo que a turma, composta por dez meninas, estava dividida da seguinte forma: cinco meninas encontravam-se no nível Alfabético da escrita[2] (para compreender mais acesse: https://educacaopublica.cederj.edu.br/artigos/15/11/emilia-ferreiro-ana-teberosky-e-a-gnese-da-lngua-escrita) e, as outras cinco, no nível Pré-silábico migrando para o Silábico. Assim, seria necessário aplicar práticas que pudessem auxiliar no desenvolvimento da leitura e da escrita com todas, pois, apesar de a metade das crianças se encontrar no nível Alfabético, elas ainda não compreendiam bem como poderiam utilizar a escrita nas relações sociais.

Lembramos que o foco não é apenas no objeto do conhecimento, em si. Ele deve ser, além do objeto, devem também ser pensadas as questões didáticas implicadas no ensino. Por isso, o professor deve estar atento aos conhecimentos prévios dos estudantes sobre o que será estudado em relação aos gêneros, às práticas de leitura e produção de textos ou aos conhecimentos linguísticos para acompanhar a progressão das habilidades que serão desenvolvidas pelos estudantes. (MINAS GERAIS, 2018, p. 219, grifos da autora).

A partir desse cenário, a professora propôs às crianças a escrita semanal de um texto: em uma semana seria coletivo e na outra individual. Os assuntos abordados nos textos eram definidos de acordo com a temática que estava sendo desenvolvida naquele período, como, por exemplo, quando realizavam uma excursão, o texto a ser escrito na próxima aula teria essa temática. Tal prática foi adotada já que a produção de texto coletivo possibilita, além da troca de ideias e saber respeitar a opinião do outro, um contato direto com a escrita convencional, em que o professor é o escriba e vai apresentando as convenções da língua, como gramática, sinais de pontuação e parágrafo. Já a produção individual possibilita à criança realizar os seus ensaios e demonstrar ao professor as habilidades adquiridas, os seus limites e suas potencialidades.

[…] Todo esse processo deve se dar através de uma aprendizagem ativa, onde o estudante se faz protagonista do processo ensino-aprendizagem devendo se engajar de maneira participativa e colaborativa na aquisição do conhecimento.

Na aprendizagem ativa, o professor parte das habilidades que pretende desenvolver em seus estudantes, mais do que no conteúdo a ser transmitido. (MINAS GERAIS, 2018, p. 214-215).

Isso significa dizer que as crianças são vistas como seres ativos diante da aprendizagem e foi a partir de suas necessidades e vivências que as atividades foram realizadas pela professora e serão detalhadas a seguir.

O desdobrar das produções textuais: percepções iniciais e avanços

Ao realizar as primeiras escritas coletivas, as crianças demonstravam um pouco de dificuldade em organizar as ideias, por exemplo: se a proposta era escrever um texto sobre uma festividade, elas logo já queriam relatar algo que aconteceu no final do evento. Com o tempo, foram percebendo que o texto escrito não pode ser o retrato da fala, ou seja, fala-se de um jeito e escreve-se de outro, pois, ao escrever, a pessoa direciona a sua escrita para um leitor que precisa compreender a informação.

Nas culturas ocidentais, alfabetizar-se é mais do que aprender o abecedário: é aprender a utilizar os recursos da escrita num conjunto de tarefas e procedimentos definidos pela cultura. […] a alfabetização não é apenas um conjunto de habilitações mentais isoladas; é a competência para explorar um conjunto específico de recursos culturais. Ela corresponde à evolução desses recursos, em conjunção com o conhecimento e a capacidade de explorá-los com objetivos determinados. (OLSON, p. 59, 1997).

Para a escrita do primeiro texto individual, sugeriu-se às crianças fazer a reescrita da história “O Anjinho Verde”, com o qual elas têm contato desde 1 ano de idade. Ao realizar as primeiras escritas, elas utilizaram desenhos e letras. Para as crianças pequenas, o desenho é mais importante que as letras, além disso, elas podem ter usado como modelo os próprios livros de literatura infantil, como a própria história do Anjinho. Percebe-se que elas ainda não internalizaram as regras e ordem da escrita convencional. Foi possível perceber avanços na produção do texto escrito em si, já que cada uma escreveu da forma que julgou ser a mais adequada.

Na figura 1, que se trata da produção do primeiro texto, observa-se que a criança ainda não estava na fase de escrita alfabética, no entanto, ela já apresentava um avanço no que diz respeito à função da escrita: mesmo não escrevendo convencionalmente, ela tentou comunicar algo por meio das letras.

Figura 1 – Primeiro texto individual escrito por uma das crianças que se encontrava no nível Pré-silábico da escrita
Fonte: Acervo da professora

Na figura 2, que também se trata do primeiro texto, observa-se que a criança se encontrava no nível Alfabético da escrita, no entanto, o seu texto não apresentava uma organização linear, como a da escrita convencional, também misturando escrita e desenho. A criança escreveu o texto em torno do desenho, que teve destaque central na produção e que também parece seguir o modelo de livros de literatura infantil. Nele está escrito: “UM ANJINHO VERDE (título) – ERA UMA VEZ UM ANJINHO VERDE. O ANJINHO O VIA O MUNDO SENDO MALTRATADO. AI O ANJINHO ENCONTROM UM LUGAR BEM LEGAL VERDE VIDA A ESCOLA DO VERDE E DA VIDA. (SIC)”.

Figura 2 – Primeiro texto individual escrito por uma das crianças que se encontrava no nível Alfabético de escrita
Fonte: Acervo da professora

Assim, foram se passando alguns meses dando continuidade à proposta inicial: em uma semana escrita coletiva, na outra, individual. No mês de maio, foi possível perceber grandes avanços na escrita das crianças. As que se encontravam no nível Alfabético passaram a organizar a escrita e a fazer o uso da ortografia e de sinais de pontuação de forma convencional. Já as crianças que estavam no nível inicial da escrita passaram para o nível Alfabético e começaram a fazer o uso da ortografia convencional e a utilizar os sinais de pontuação.

 Na figura 3, observa-se o texto de uma criança que, no início do ano de 2019, estava no nível Pré-silábico e, na circunstância da produção textual, já apresentava-se alfabética, quando era possível ler: “O DIA DA MAES (título) O DIA DAS MAES FOI LEGAU COMEMOS CANTAMUZICA (cantamos músicas) TEVECORAU (teve coral) DA TERAMAMO (tiramos) FOTO AS MAS (mães) GOSTARO DEMAIS (SIC)”.

 

Figura 3 – Texto individual escrito por uma criança, no final do mês de maio, que no início do ano se apresentava no nível Pré-silábico de escrita, agora está no nível alfabético.
Fonte: Acervo da professora

A figura 4 trata do texto de uma criança que já estava no nível Alfabético de escrita desde o início do ano de 2019, porém não apresentava uma sequência lógica na escrita e nem fazia uso das convenções da língua, algo que neste texto passou a ser observável. Nele está escrito: “TURMA DA PAZ E OS DICIONÁRIOS (título) – (parágrafo) TODA TERÇA-FEIRA A TURMA DA PAZ TRÁS OS SEUS DICIONÁRIOS NÓS PESQUISAMOS VÁRIAS VIRTUDES: AMOR, CARINHO, JUVENTUDE, AMISADE E MUITO MAIS. (parágrafo) NÓS LEVAMOS DESCOBERTAS E AS VEZES PRECISAMOS DE AJUDA DOS DICIONARIOS. AMAMOS FAZER ISTO!!! (parágrafo) APRENDEMOS VÁRIAS VIRTUDES!! (SIC)”.

Figura 4 – Texto individual escrito por uma criança, no final do mês de maio, que desde o início do ano se encontrava no nível Alfabético de escrita, mas que não apresentava uma escrita que seguia as normas da língua
Fonte: Acervo da professora

Além dos avanços nos textos escritos individualmente, também se observou maior engajamento da turma em se tratando da escrita coletiva, quando todas as crianças participavam de alguma forma, seja para introduzir o assunto do texto ou para sua finalização, além de discussões embasadas em justificativas reais sobre qual o título mais adequado para o que se estava produzindo. As crianças, que antes nem opinavam, passaram a justificar a escolha do título, bem como realizar a releitura do texto para a verificação de possíveis erros.

A figura 5 traz um texto que foi produzido coletivamente: a professora solicitou que as crianças pesquisassem sobre os seus animais preferidos que vivem na escola. Após a pesquisa, que foi realizada em casa, as crianças, de forma colaborativa tendo a professora como escriba, foram construindo o texto. Após a escrita pela professora no quadro, cada uma realizou a cópia individualmente. O texto ficou da seguinte forma, de acordo com a cópia de uma das crianças: “OS BICHINHOS DE JARDIM (título) – (parágrafo) NO VERDE VIDA TEM MUITOS BICHINHOS: COELHO, CABRITA, PIXE (peixe), JABUTIS, CÁGADO, GALINHA, GALO, PORQUINHO E PÁSSAROS. FALAREMOS UM POUCO SOBRE CADA UM DESTES ANIMAIS. (parágrafo) OS COELHOS SÃO MAMÍFEROS E TEM (têm) PERNAR E ORELHAS LONGAS. OS PEIXES SÃO VERTEBRADOS E RESPIRAM PELAS BRÂNQUEAS (brânquias). A CABRITA É UM (h)ERBÍVORO. O PERU ABRE A CAUDA PARA ENCANTAR A FÊMEA. (parágrafo) NÓS AMAMOS E CUIDAMOS DOS BICHINHOS DO VERDE VIDA. (SIC)”.     

Figura 5 – Cópia da produção textual coletiva realizada por uma das crianças
Fonte: Acervo da professora

Considerações finais

A prática de produção textual coletiva e individual colaborou para o desenvolvimento da produção escrita da turma do 1º Ano do Ensino Fundamental, já que possibilitou a aquisição de habilidades esperadas nesta faixa etária[3].

O foco maior foi na produção textual dissertativa-argumentativa, mas isso não significa que, em outros momentos, o professor não possa lançar mão de tipos e gêneros textuais diversos, inclusive, segundo o Currículo Referência de Minas Gerais (2018), isso é algo de suma importância, já que o objetivo principal dos primeiros anos do Ensino Fundamental é o processo de alfabetizar letrando, ou seja, compreender os usos da língua materna, além de dominar a escrita/leitura convencional.

A partir deste relato, espera-se que outros professores possam refletir e (re)pensar práticas que viabilizem o desenvolvimento da leitura e da escrita na perspectiva do letramento, colocando o estudante na posição de protagonista do próprio conhecimento.

  

Referências

BARBOSA, P. M. R. Emília Ferreiro, Ana Teberosky e a gênese da língua escrita. Educação Pública, v. 15, nº 11, 9 de junho de 2015.

CARDOSO, S. H. B. Considerações teóricas. In: CARDOSO, S. H. B. Discursos e Ensino. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 15-89.

CORSARO, William A. O estudo sociológico da infância. In: CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Trad. Lia Gabriele R. Reis. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 13-40.

MINAS GERAIS. Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. Currículo Referência de Minas Gerais. Belo Horizonte: MG, 2018. Disponível em:  http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/implementacao/curriculos_estados/documento_curricular_mg.pdf . Acesso em: 28 jun. 2019.

OLSON, D. R. A escrita sem mitos. In: OLSON, D. R. O Mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997, p. 17-36.

OLSON, D. R. Teorias da escrita e da mente: de l.evy-Bruhl a Scribner e Cole. In: OLSON, D. R. O Mundo no papel: as implicações conceituais e cognitivas da leitura e da escrita. São Paulo: Ática, 1997, p. 37-60.

SOARES, Magda. Letramento: como definir, como medir, como avaliar. In: SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 1998, p. 63-125.

______

[1] O Currículo Referência de Minas Gerais foi elaborado a partir da Constituição Federal (CF/1988), da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394/96), do Plano Nacional de Educação (PNE/2014) e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC/2017). (MINAS GERAIS, 2018, p. 2).

[2] Segundo a teoria da Psicogênese da escrita, de forma geral, as crianças passam pelos seguintes níveis de escrita: Pré-silábico (escrita aleatória sem correspondência sonora), Silábico (cada grafema corresponde a um fonema), Silábico-alfabético (ora escreve de forma silábica, ora alfabética) e Alfabético.

[3] A professora desta turma também realizava outras práticas com outros gêneros textuais, no entanto, não foram abordadas neste momento, já que este relato objetivou ressaltar a prática de produção textual (dissertativa-argumentativa) coletiva e individual adotada nesta turma.

Imagem de destaque: Carla Mariana Rocha Brittes da Silva

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