Destaque Jeaniny Santos

Experiências de ensino sobre temas sensíveis

O início da experiência como docente é um misto de emoções: o saltar no desconhecido, o preparo das aulas, a expectativa em como os estudantes são e como vão reagir e participar das aulas, e outras tantas problemáticas que nos possibilitam em sala de aula desenvolver a prática. Ao seguir o currículo escolar, a ditadura civil-militar, como componente didático, está nos planos e abre problematizações para a prática docente em sala de aula. A proposta deste texto é um exercício sobre a prática do Ensino de História, com objetivo de discutir as potencialidades e as tensões do uso de temas sensíveis[1] no currículo de História e as práticas pedagógicas comprometidas com a promoção dos direitos humanos. Para tanto, procuro dialogar com autores que tiveram experiências práticas semelhantes ou que pesquisam sobre o processo de investigação prática.

Para Verena Alberti, “as dificuldades de trabalhar com assuntos dessa natureza em sala de aula são evidentes, mas não podemos deixar de enfrentá-las” (2015, p. 286). Um dos meus questionamentos ao preparar as aulas era de quais maneiras iria abordar um tema sensível como o período da Ditadura civil-militar no Brasil, ao tratar da história que passa por uma disputa de narrativa e memória. Para isso, ainda dialogando com os escritos de Alberti, a autora completa sobre essa prática que, “estão relacionadas com toda uma discussão, também recente, em torno da ideia de “dever de memória” (ALBERTI, 2015, p. 286), como eles não são consenso de tratar nem em sala de aula nem em lugar nenhum, por serem temas que mobilizam a sociedade.

Desse modo, precisamos refletir o papel da escola enquanto um lugar de fazer conhecimento, para junto dos alunos questionar todos os temas que estão no currículo escolar, como o aqui abordado em nosso artigo, relacionado à disciplina de História. Assim, ao debater junto com os estudantes nas aulas de história sobre a ditadura civil-militar, estamos buscando quebrar a ideia de um espaço de ensino que aborda apenas datas e alguns acontecimentos heróicos ou vistos como confortável em muitos currículos. Havia por objetivo, enquanto docente, apresentar e discutir a ditadura com elementos que fazem parte do contexto da época, e que precisavam ser questionados junto aos alunos como a participação civil no golpe, a presença feminina, o genocídio dos povos indígenas e o fortalecimento do movimento negro. Na prática docente ao optar por um caminho um pouco diferente, – ver a sala de aula como espaço de construção cidadã – e, para isso, fazer leituras que me inspirasse, encontrei a apresentação do Dossiê “Ensino de História, Direitos Humanos e Temas Sensíveis”,  de Juliana Andrade, Carmem Gil e Juliana Balestra. Esse texto se aproxima de ideias e conceitos que busco para minha construção como docente, pois as autoras apontam que: “defendemos que a escola se torne efetivamente um espaço capaz de refletir as desigualdades, as violações, as precariedades e os motivos pelos quais” (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018, p. 7). Assim, as aulas viram lugar de causar incômodos, de dar espaço para opiniões e questionar os acontecimentos trabalhados com os alunos, o que leva a todo momento a se questionar como docente sobre as razões subjacentes às suas decisões educativas. “‘Ensinar história está longe de ser transmitir conhecimento previamente existente” (ALBERTI, 2015, p. 287).

Compreender os desafios do nosso fazer pedagógico

Afinal, por quê e para quê ensinamos sobre esse período histórico? Para além de denúncia e fazer pensar (ALBERTI, 2015, P. 289). Se iniciar cada planejamento de aula fazia-se com uma reflexão sobre qual o objetivo de cada aula, construindo unidades temáticas dentro desse período de 21 anos da ditadura civil-militar, buscou-se um equilíbrio entre os fatos que são recorrentes e caem em avaliações externas à escola e temáticas que são relevantes para a formação dos educandos, assim como a mobilização de temáticas que ficam à margem dos debates escolares ou que são sensíveis, como as torturas e desaparecimentos, mas que em algum nível conversam com o cotidiano dos alunos, ou comunidade que os cerca, para dessa forma mostrar que o que está sendo ensinado não é tão distante das suas realidades como pode parecer. A história ensinada nas escolas é apenas uma das formas de contato dos alunos e dos cidadãos em geral com a história (ALBERTI, 2015, p. 284), e que lhe permite pensar sobre si mesmo.

Sabemos que as ditaduras, no geral, ainda são um tema sensível e discutido pela sociedade atual com diversas narrativas construídas e que podem se contrapor. Dessa maneira, teremos aulas e debates que podem sair dos nossos objetivos, visto que na prática do ensino de história vamos ao encontro com questões de memória e narrativa, sobretudo, no campo na política e suas dualidades. Dessa maneira, para a construção do planejamento das aulas foi essencial ter o embasamento em fontes históricas. Assim, ao dialogar com a docente Juliana Balestra[2] em seu estudo sobre as ditaduras no Brasil e Argentina essa prática é presente:

Se considerarmos as fontes documentais, a presença do ensino de história das ditaduras nas escolas argentinas é incontestável: ela está presente nas propostas curriculares, nas efemérides, nos livros didáticos e nos programas de formação docente, na maioria das vezes a partir do imperativo moral: “recordar para no repetir” (BALESTRA, 2016, p. 253).

Podemos observar que em ambos os países, o terrorismo foi aplicado de forma sistemática pelo Estado, com abrangência internacional. Em uma breve comparação no Ensino de História dos dois países, ao destacar a experiência de Paula Gonzalez em artigo publicado em 2018, cuja autora analisou as práticas docentes na Argentina, podemos salientar que na sua pesquisa a autora buscava mostrar que:

Investigar o ensino de história recente em sala de aula vai além do estudo das regulamentações educacionais ou da análise de propostas pedagógicas. Contudo, também é inevitável saber em que contexto – tanto político como didático – um docente constrói a sua prática, uma vez que são dimensões que a atravessam (tradução nossa) (GONZÁLEZ, 2018, p. 62).

Paula caracteriza o ensino de história a partir das possibilidades e não dos problemas; poder pensar o ensino de história recente quando este não é determinado pela falta de formação docente. Portanto, as escolhas nossas como docentes podem impactar como vamos contribuir na formação dos alunos e como eles vão perceber cada período ensinado. Para os temas sensíveis, como a ditadura civil-militar, os docentes também fazem escolhas por qual caminho irão abordar, por que faz algumas escolhas e as coisas como faz. Sabemos que algumas delas têm optado por assuntos mais “tranquilos”, igualmente legítimos, mas já consolidados. Temas que foram sensíveis em outras épocas, mas que já incorporaram as disputas por sua significação (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018, p. 7). Diante disso vale ressaltar que a prática de ensino de história também vai:

Discutir algumas formas de trazer para a sala de aula questões que podemos chamar de “espinhosas” e defendendo a necessidade de agirmos dessa maneira com base em três pressupostos: a) a história é complicada; b) precisamos correr riscos ao ensiná-la; c) a história ensinada nas escolas precisa tratar de questões controversas para continuar relevante (ALBERTI, 2015, p. 284).

Verena Alberti aponta que um tema nominado de sensível ou controverso no ensino de história já foi objeto de extenso debate (ALBERTI, 2015, p. 289), por isso:

No Brasil, a abordagem recorrente no ensino de história persistiu muito tempo com a ideia de que não cabe à História ou ao seu ensino tomar partido nas disputas sobre a construção de memórias e, com isso, se perpetua a estratégia de não estudar a história “mais recente”. O principal argumento é que essa história ainda não foi escrita e, portanto, não pode ser ensinada (BALESTRA, 2016, p. 258).

Quando adentrava no tema sensível em sala de aula, buscava mostrar a importância de discutir aquilo ainda hoje, que “não basta atrair o aluno para o tema controverso, emocioná-lo para que sinta empatia e talvez até compaixão, e dar a tarefa por encerrada” (ALBERTI, 2015, p. 293); era preciso que a aprendizagem sobre a ditadura civil-militar fosse compreendida por meio de construções próprias, para além do que fosse apresentado a cada aula. Em acordo com as experiências de Balestra (2016) e González (2018) apontadas em seus textos, procurava criar meio para que os alunos percebessem a luta pelos direitos humanos e a importância das fontes para conseguirmos ver detalhes que fogem dos materiais didáticos, ou das narrativas que circulam, que através das fontes fossem apontadas suas percepções.

Em ambos os casos, o que está em jogo é a história, como construção social, e os sentidos que ela oferece ao presente. Desse modo, o passado permanece mutável e segue disposto a ser modelado pelas ideias e experiências do presente” (BALESTRA, 2016, p. 251).

Em uma das propostas de aula prática para tratar sobre os desaparecidos da ditadura, a turma foi dividida em duplas, e foi solicitado que respondessem algumas perguntas em um formulário sobre um dos desaparecidos políticos. O objetivo era que, ao lerem as respostas acerca dos perfis daqueles desaparecidos,  os alunos notassem que não havia um perfil homogêneo de resistência ao regime. Em muitos casos variavam suas profissões, idade e experiências de vida. Com isso, possibilita-se refletir quais as razões das perseguições e prisões, sem deixar de questionar se ocorreram violações de direitos humanos nas descritas fichas de cada pessoa. “E tudo isto valoriza o trabalho dos alunos, forma-os como leitores e espectadores, dá-lhes ferramentas para ver, olhar, analisar, suspeitar, deduzir, comparar, interpretar, etc.” (GONZÁLEZ, 2018, p. 78 – tradução nossa).

Nesse processo de definir os meios de aprendizagem promove-se uma comoção de como levar um tema que é importante para a história do país, e que precisamos perceber consequências nos dias atuais. Assim, ensaiar propostas de como elaborar um material para apresentar à turma pode ser uma tarefa que leva tempo, preocupações e sensibilidades.  Desse modo:

Como em todo o processo de ensino-aprendizagem, cabe ao professor de história fornecer meios para que os alunos discutam contextos e razões históricas, e o façam autonomamente – pois é essa a garantia de que haverá aprendizado, de que algo fique como resultado de sua pesquisa. A primeira preocupação, então, em relação à escolha do material, é que ele deve ser adequado para gerar discussão. Uma vez que a questão esteja apresentada, cabe oferecer aos alunos fontes para que eles mesmos possam explicar o que aconteceu” (ALBERTI, 2015, p. 294).

Enquanto docente posso relatar que tal receio ocorreu em alguns momentos, por poder ser interpretada e apontada como doutrinadora e outras tantas falácias que são ditas sobre professores de história. Mas houve um acolhimento escolar como docente, o que contribuiu para a segurança em desenvolver o planejamento sobre esse tema sensível, especialmente quando as torturas e mortes foram temas das aulas. “É necessário, antes de tudo, um ambiente seguro, onde alunos e professores se sintam confortáveis para debater e correr riscos. Nesse ponto, o apoio da escola é fundamental” (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018, p. 8). Entretanto, era preciso questionar com a turma tal evento histórico e suas interpretações para entender questões complexas e se apropriar dos conhecimentos novos que elas têm, para que percebam a narrativa mais que dualismos e estereótipos, que os horrores das ditaduras não estavam restritos a uma tipologia de pessoa, e que diversas situações poderiam ser vistas como subversivas.

Diante dos desafios enfrentados por professoras e professores no cotidiano escolar para discutir temas do passado recente e a reação das crianças e adolescentes no momento de problematizar questões relacionadas à violação de direitos humanos na América latina durante os regimes autoritários, decidimos mobilizar os pesquisadores da América do Sul para se debruçarem sobre questões complexas que perpassam a ação educativa, a prática pedagógica e a função social do saber histórico escolar. Questões importantes – “Como organiza um cenário para aprender e ensinar temas sensíveis?” “Como as aulas de história podem contribuir para a construção da cultura de paz?” “Quais são as  estratégias utilizadas para explorar os temas sensíveis em sala de aula?” (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018, p. 12)

Por isso, a importância de se apoiar em diversas formas de fontes históricas, como jornais, imagens, cinema e depoimentos de vítimas da ditadura, para trabalhar junto aos alunos. Buscar mostrar para a turma as diferentes maneiras que a época retrata os acontecimentos. A leitura e interpretação desses materiais deram a oportunidade de fazermos nossas interpretações e tecer algumas opiniões sobre as fontes. “O uso de narrativas e experiências pessoais pode ser um recurso importante nesse processo” (ALBERTI, 2015, p. 295). Para o debate que se pretendia trabalhar as fontes se tornam mais tátil, deixam de ser apenas uma apresentação de narrativa, enriquecem questões importantes a serem discutidas. Contudo, como afirma González, é importante “incorporar diversidade de textos históricos que sejam representativos das distintas correntes historiográficas” (GONZÁLEZ, 2018, p. 63 – tradução nossa). Ainda ressalta o uso de relatos como fundamental para incluir os atores sociais e políticos que estavam vivenciando e rememorando suas experiências, suas lutas e suas dores. Essa abordagem é utilizada para criar uma aproximação e sensibilizar os estudantes com os depoimentos. O desafio é pensar como a aprendizagem histórica no espaço escolar tem colaborado para uma educação em direitos humanos ao explorar temas sensíveis e que mobilizam um passado recente, repleto de sentidos e sentimentos (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018, p. 8).

Nesse sentido, os casos de ambos os países relatados permitem entender brevemente as diversas dimensões e características da prática docente, bem como os múltiplos aspectos de um trabalho tão complexo. Mas o que vimos como consenso foi a preocupação em uma prática que possibilita o ensino a partir dos materiais, textos e leituras apresentados pelos professores.

Considerações finais

O Ensino de História de temas sensíveis é, sobretudo, trabalhar com as sensibilidades e suas limitações, abrir espaço para debates éticos, políticos e sobre a violação dos direitos humanos e sua importância. A partir disso, é preciso pensar e repensar quais materiais para ensinar, quando privilegiar alguns conteúdos dentro do tema que se deve dar mais destaque; tudo isso são escolhas que os docentes precisam fazer. Dentro desse contexto, acredito que utilizando as teorias da História como base para suas aulas, os professores conseguirão realizar uma prática docente que está embasada em discussões fundamentadas, o que possibilita ter segurança em tratar de temas sensíveis na escola.

Por meio deste artigo, procurei destacar as experiências e práticas docentes para o ensino das ditaduras enquanto tema sensível no currículo escolar, com pesquisas sobre as práticas que promovem possibilidades e diálogos de como o docente comunica para os estudantes a respeito das ditaduras. A relação entre escola e sociedade ainda é complicada, em especial em temas como a ditadura militar, por estar envolto de disputas de memórias e narrativas, impactando o docente e sua prática.

Referências

ALBERTI, Verena. História e memória na sala de aula e o ensino de temas controversos. In: QUADRAT, Samantha Viz; ROLLEMBERG, Denise (org.). História e memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 283-300.

ANDRADE, J. A. de; GIL, C. Z. de V.; BALESTRA, J. P. Apresentação- Dossiê: Ensino de História, Direitos Humanos e Temas Sensíveis. Revista História Hoje, [S. l.], v. 7, n. 13, p. 4–13, 2018. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/458 . Acesso em: 10 jan. 2024.

BALESTRA, J. P. História e ensino de história das ditaduras no Brasil e na Argentina. Antíteses, [S. l.], v. 9, n. 18, p. 249–274, 2017. Disponível em: https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/26750 . Acesso em: 11 jan. 2024.

GONZALEZ, P. La última dictadura argentina en el aula: entre materiales, textos y lecturas. Revista História Hoje, [S. l.], v. 7, n. 13, p. 60–82, 2018. Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/426 . Acesso em: 12 jan. 2024.

 

[1]No ensino de história brasileiro temos diferentes formas de nomeá-las: questões sensíveis e controversas (ALBERTI, 2016); passados sensíveis (PEREIRA; PAIM, 2018); passados vivos (PEREIRA; SEFFNER, 2018); história difícil/temas controversos (SCHMIDT; CAINELLI; MIRALLES, 2018); temas sensíveis (ANDRADE; GIL; BALESTRA, 2018).

[2]As Ditaduras civil-militares de Segurança Nacional fazem parte das semelhanças dos distintos países da América do Sul no século XX. No Brasil, a ditadura permaneceu vinte e um anos no poder (1964-1985), enquanto, na Argentina, a última ditadura teve a duração de sete anos (1976-1983).

SANTOS, Jeaniny Silva dos. Experiências de ensino sobre temas sensíveis. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Jeaniny Silva dos Santos

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