Marcello Nicolato CC BY NC ND

Crônicas de um sentido não enunciado: para quê humanidades no Ensino Médio?

Pedro Henrique

Pedro Henrique de Oliveira Gomes

Graduado em História pela Universidade Estácio de Sá (2017) e em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Especialista em: Filosofia Contemporânea (PUCMINAS – 2019), em Ensino de Filosofia pelo Instituto Pedagógico Brasileiro (2024) e em Políticas Publicas em Educação pela Escola Mineira de Direito (2023). Mestrando em Educação e Docência pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou como professor de Filosofia na Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. Atualmente é educador popular, lecionando Filosofia no cursinho popular Consciência Barreiro e no Cursinho Popular Emancipa-BH e servidor público de carreira (AAE) na Secretaria Municipal de Educação de Belo Horizonte, em exercício nas escolas municipais. Mais recentemente tem interesse em Filosofia do ensino de Filosofia, Filosofia e Educação Popular e Ecofilosofia.

E-mail: pedrovasconcelos77@gmail.com

MATEUS SANTOS

Mateus Santos Ferreira

Professor de Sociologia na rede Estadual de Minas Gerais, licenciado em Ciências Sociais e mestrando do Promestre.

E-mail: mateussantos131313@gmail.com

Gabriel Nascimento

Gabriel Nascimento e Silva

Atuo como professor de Sociologia da rede estadual de Minas Gerais, lecionando em diferentes escolas, tanto do interior quanto da capital mineira. Minha formação é em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais, instituição em que atualmente participo do programa de mestrado profissional.

E-mail: gabriel_kabrito@hotmail.com

Bruno Ikennah Bratz Egonu

Bruno Ikennah Bratz Egonu

Professor de Geografia do Ensino Médio na rede particular no município de Belo Horizonte 

Mestrando no PROMESTRE. Faculdade de Educação – UFMG 

E-mail: brunoegonu@gmail.com

Árllan Maciel

Árllan Maciel Cunha Alves

Professor de Sociologia no Estado de Minas Gerais. Formado em Ciências Sociais pela UFMG, mestrando pelo Promestre FaE/UFMG, membro do Ateliê de Ciênciais Sociais e Ensino da FaE/UFMG.

E-mail: arllanmaciel@gmail.com

Introdução

As humanidades no Ensino Médio estão em disputa. Desde antes desse médio ensino ser “novo”, o campo das humanidades, seus personagens, sentidos e “para quês” estão longe de serem pacificados e, apesar de alguns grupos tentarem, não há unificação ou padronização entre o que se pode fazer (mais como potência do que permissão) nessas geografias, sociologias, filosofias e histórias; tampouco, o que podem elas fazerem conosco, docentes e discentes atravessados e navegantes das suas marés rasas e mares profundos. Batalhas navais, em terra e em ar: territórios em disputa. Assim, iniciamos o texto com uma longa citação:

A BNCC da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas – integrada por Filosofia, Geografia, História e Sociologia – propõe a ampliação e o aprofundamento das aprendizagens essenciais desenvolvidas no Ensino Fundamental, sempre orientada para uma formação ética. Tal compromisso educativo tem como base as ideias de justiça, solidariedade, autonomia, liberdade de pensamento e de escolha, ou seja, a compreensão e o reconhecimento das diferenças, o respeito aos direitos humanos e à interculturalidade, e o combate aos preconceitos de qualquer natureza (BRASIL, 2018, p. 561).  

O trecho acima é o parágrafo que abre a seção sobre o ensino de humanidades na etapa do Ensino Médio, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). São princípios pedagógicos que fundamentam uma sequência de seis competências, bem como suas respectivas habilidades relacionadas ao ensino de tais componentes curriculares e que orientam a prática docente. Porém, nos propomos a pensar além (e talvez mesmo aquém, dando passos atrás) do que estabelece a BNCC, constatando que a realidade dinâmica e imprevisível da experiência educativa nos convida a refletirmos constantemente sobre seus propósitos e sentidos, convite que será estendido aos leitores dessas reflexões que nos arremessam violentamente à indagação: para quê humanidades? Mais que procurar respostas acabadas para esse questionamento – já respondido pelos documentos orientadores – ou procurar atender a uma demanda utilitarista de educação que nos coloca “para quê serve isto?” (LAHIRE, 2014), os cinco relatos que se seguem buscam deslocar e realocar sentidos para o ensino de humanidades, buscam ampliar as possibilidades de construção desses sentidos. Cinco crônicas pedagógicas que partem de diferentes lugares: das aulas de geografia, filosofia ou sociologia; de escolas públicas, privadas e do cursinho popular; do centro, da periferia e diferentes territórios; com diferentes sujeitos e realidades.

Adiantamos que, se alguém chegar a sair daqui com respostas definitivas, não é por culpa nossa. Como foi colocado, propomos, no lugar de consolidar respostas e direções certeiras do que fazer, apenas compartilhar ideias, construídas em conjunto, mais sobre possíveis “para quê” do que sobre “como” e “para onde”. Somos cinco professores da área de humanidades que, compartilhando incômodos, sofrimentos, esperanças e outras tormentas, percebemos que há algo que pode e precisa ser comunicado. Algo que, certamente, atravessa tantos outros professores e professoras nas escolas e em outros espaços educacionais por aí: a crise existencial e política do trabalho docente, o “para quê” da educação em geral, e do ensino de humanidades em particular.

“Suas aulas são confusas de propósito?”

(Terça-feira, 1º horário). Hoje uma aluna ficou indignada com a minha proposta de atividade. Ela não via sentido nenhum em que a turma pensasse coletivamente tanto maneiras de construir a aula quanto de avaliar. Já que ela estava muito revoltada e completamente indisposta a participar da atividade em grupo, pedi para que ela me escrevesse sobre essas angústias. Escreveu como não fazia sentido essa proposta, como a aula e o Novo Ensino Médio tinham um discurso de liberdade, mas que não funcionavam [doeu a associação da minha prática ao novo EM]. “As aulas têm que ser conduzidas unicamente pelo professor porque sempre foi assim e assim é que é fácil para eles (…) e tem que ser fácil do jeito que já estamos acostumados. Esse tanto de invenção só está deixando a gente com mais trabalho e não aprendendo nada”.

(Sábado letivo – Intervalo). “Professor desculpa… mas as suas aulas, elas são confusas de propósito? Não tô falando que são ruins não” me perguntou e se explicou Lélia enquanto conversava comigo e com os professores Péricles e Milton.

– São do jeito que são de propósito sim, Lélia… Eu até podia tentar fazer diferente, mas isso ia me deixar muito infeliz, respondi.

– Ele é assim com a gente também, acrescentou Milton.

– É que ele vai explicando as coisas com lógica, né… E aí do nada faz umas perguntas pra gente que bagunçam tudo na nossa cabeça, faz a gente ficar confuso sobre as coisas… É bom.

– Ele escolheu o caminho da felicidade dele, concluiu Péricles.

(Para quê o ensino de Humanidades no Ensino Médio). Está aí uma direção de pensamento que me incomoda bastante e, ao mesmo tempo, sempre vem me encontrar – “professor isso serve pra quê?”. A utilidade enquanto finalidade última e validadora dos conteúdos escolares tem sempre surgido como uma das mais intransponíveis barreiras para o que a escola e as humanidades em especial podem ser. Formatada como está, as Humanidades possuem muito pouco: pouco espaço, pouca utilidade e pouca validação.

Ciências Humanas ou Humanidades e não Ciências das Humanidades. O próprio nome da nossa área do conhecimento já traz consigo uma certa estranheza, uma inquietação. Não é A Ciência de algo, mas sim, uma pluralidade: CiênciaS HumanaS, HumanidadeS. Não deve ser assim só para repetirmos fórmulas ou procedimentos etapa por etapa durante a relação de ensino-aprendizagem. Um para quê possível para as Humanidades está, a meu ver, em possibilitar a inauguração de outros modos de acontecer a relação de ensino-aprendizagem, de produção do conhecimento. Pela crítica, pelo incômodo, pelo acolhimento e principalmente pela provocação de inquietamentos.

Dessa maneira, as Humanidades no Ensino Médio – e apesar do Ensino Médio – podem ser (e por uma questão de vida, acredito que devem ser) um território onde se compõe outros saberes, se produzem outros modos de vida e onde emergem e se multiplicam as resistências. Resistência contra tudo! Contra até as humanidades (aquela meramente formulesca). As humanidades, devido à sua existência plural, se mostram o território (pelo menos em virtualidade) onde se é possível produzir através da contradição, e este me parece ser um interessante “para quê” em que podemos nos agarrar.

Tweets, golpes, resistências e movimento[1]

Quando eu mostrei o tweet do Elon Musk[2] eles ficaram malucos. “Isso é montagem, professor, você tá de sacanagem com a gente!”, me acusavam em um tom altivo, porém trêmulo. Eu falei para eles que os Estados Unidos financiarem golpes de Estado na América Latina era normal, o estranho era um bilionário ir tirar onda no Twitter; mas, mesmo depois da explicação, eles seguiram intrigados até o final da aula.

A competência era sobre exploração de recursos naturais na América Latina. Eu sabia que falar da exploração de lítio e do golpe que a Bolívia sofreu em 2019 usando o Twitter ia dar ibope e deixá-los imersos no assunto. O que me surpreendeu positivamente foi que dessa vez eles ficaram indignados, realmente indignados. Então, seguindo a tradição do caudilho latinoamericano, organizei essa indignação e propus tomada de providências: vamos criar um comitê anti-imperialista na escola! O aceite foi unânime e o trabalho final estava decidido.

Combinamos que o primeiro passo seria fazer um levantamento para entender quais eram os recursos naturais mais cobiçados da América Latina. Para a surpresa da maioria dos alunos, a lista parecia inacabável: petróleo, lítio, minério de ferro, gás natural, cobalto, alumínio, nióbio, e assim vai. Feito isso, fomos levantar o histórico de “intervenções” sofridas após as conquistas da independência. Como era de se esperar, essa parte demorou porque a lista era grande. Passou uma semana, duas, três, mas finalmente estava pronto. Agora tínhamos que avaliar cada uma das intervenções e procurar por algum denominador comum. Eram muitas, não iria dar tempo; decidimos focar só no Brasil.

Já que decidimos focar nas intervenções que ocorreram aqui, resolvi aproveitar para já adiantar o próximo assunto: geopolítica contemporânea do petróleo. Então pausamos abruptamente e decidi passar para eles o filme do Snowden[3]. Apresentei também o WikiLeaks[4] e o Panamá Papers[5], sobrou até pro Bono do U2[6]. Nessa altura do semestre, o tweet do Elon Musk já nem parecia tão absurdo assim. E no fim, para encerrar essa etapa, assistimos à reportagem[7] do Fantástico sobre como a Petrobrás foi espionada pela NSA[8].

Ao longo dos dois meses nos quais esse trabalho foi realizado, vários alunos me paravam no final da aula para dizer que sempre saíam dos nossos encontros angustiados. Para ser sincero, eu fico bastante feliz com isso, acho que atesta a qualidade da minha aula. Penso que a angústia é um afeto muito importante para nós hoje em dia. Por ser caracterizada por um estado de inquietação, ela é capaz de provocar movimento e vencer a inércia. E, enquanto professor, o que eu mais quero provocar nos meus alunos é movimento.

Correio elegante

Era sábado letivo, um sábado chuvoso e frio em que acordei desanimado, justo por ser letivo. Contrariado, ainda sentindo o abraço da cama, cheguei às 7:30h no bairro distante da minha casa, onde a escola mora. Depois de um primeiro momento, da acolhida dos alunos e das famílias, começaram atividades e oficinas dos alunos, preparadas com os professores ao longo da semana. Dentre tudo mais, um grupo de alunas, trabalhando com questões de saúde mental e autoestima, rodavam com uma espécie de “correio elegante” pelo espaço, surpreendentemente cheio de alunos e familiares. Distribuíam bilhetinhos com mensagens escritas por pessoas que quisessem mandar elogios e coisas do tipo anonimamente para as outras, para dar uma afagada nessa estima de si, oscilante, que imagino que seja comum a todos nós.

Depois de ver outros professores recebendo bilhetes elogiosos de alunos, e sentir uma pontada de inveja, esperando receber também um, acabou chegando a minha vez. Foi-me entregue entre as embalagens de um coração de papel, uma dobradura bem-feita. Escrito no bilhete, uma mensagem que contrastava, nos primeiros momentos, com a ideia de mandar uma mensagem que ajudasse na saúde mental: Suas viagens não fazem sentido, mas a gente te ama.

Rendeu várias sessões com a psicóloga, conversas com amigos que já receberam coisas parecidas dos alunos, bate-bocas comigo mesmo… e não acho que tenha chegado em alguma conclusão. Fui tirado de um lugar de “eu sei bem o que estou fazendo como docente”, um conforto meio perigoso, estagnante. Sinto que essa aluna fez comigo o que eu acho que as humanidades deveriam tentar fazer mais em suas práticas de ensino. Tirar do lugar, causar um incômodo que movimente tanto pensamentos quanto corpos.

E aí entra outra coisa sobre “o que podem as humanidades”: esse deslocamento não pode acontecer só para os alunos. A gente, professor em formação (qual não é?) tem que se abrir para isso também, ajudar a fazer com que as humanidades não sejam posses de quem tem diploma. Isso passa por perceber, como diz Bell Hooks (2013), que sala de aula não é lugar de estrela. Ao contrário, pode ser espaço de estimular e fazer parte de uma proliferação de pluralidades, que nos façam repensar outros espaços de poder e privilégio, mas também as potencialidades criativas de cada um e de todo mundo ali. Talvez aceitar que nem sempre vamos estar fazendo sentido. Porque quero acreditar que aquilo que não faz sentido, mas reverbera na gente, nos chama para nos apropriar do que acontece na escola e em outros lugares da vida, construir nossos próprios sentidos, e assim agir diferente no mundo.

A pedra da intolerância no meio do caminho

A proposta de aulas mais horizontais, deslocando a centralidade da figura do professor, prosseguia cambaleante. Depois de formados os “grupos de trabalho” em cada turma de segundo ano, onde operavam vagarosamente no Whatsapp as discussões e decisões para as próximas aulas de sociologia, reuni-me com os estudantes participantes desses grupos em horários extraclasse – parte do trabalho invisível do professorado fora dos seus horários previstos.

Passando nas salas e pedindo emprestado os estudantes participantes dos “grupos de trabalho”, nos sentamos ao redor de uma mesa da cantina para acordos e decisões. A proposta era elaborarmos um conjunto de aulas sobre “diversidade religiosa”, e os objetivos pedagógicos foram se desenhando lindamente na conversa que se ia construindo naquela manhã: “queremos conhecer mais sobre diferentes religiões”;  “acreditamos que conhecer é um passo importante para a quebra de preconceitos e ideias superficiais sobre as religiões”; e de forma mais certeira “conhecer diferentes religiões é uma forma de reconhecer a diversidade religiosa buscando o respeito e uma postura mais crítica diante dos preconceitos que vemos na nossa sociedade” eram discursos que aventavam propósitos para nossas próximas aulas. A partir desses princípios pedagógicos, o formato das aulas foi sendo elaborado, chegando ao seguinte desenho: dividimos a sala em grupos, cada qual faria uma pesquisa sobre determinada manifestação religiosa e, posteriormente, apresentaria os resultados e reflexões dessa pesquisa, devendo discutir um pouco sobre a origem e história da religião escolhida, suas características, as principais práticas e crenças, e os preconceitos e críticas voltados a essa religião. Buscamos selecionar diferentes religiões para abarcar a pluralidade religiosa da cultura brasileira, principalmente aquelas que identificamos como alvos principais de práticas discriminatórias em nossa sociedade, e religiões praticadas pelos estudantes os quais demonstravam grande necessidade de discutir a respeito. Vale ressaltar que todo esse processo foi atravessado por incertezas, conflitos e entendimentos construídos entre diferentes sujeitos.

Pois bem… no dia seguinte à discussão realizada no “grupo de trabalho”, um estudante – que também participou das conversas – me abordou falando sobre seu incômodo com o tema delimitado e com a metodologia elaborada. Religião não era um assunto que deveria ser tratado na escola, menos ainda daquela forma, mas uma prática da vida privada de cada indivíduo; colocar sua própria religião como objeto de reflexão e discussão coletiva era algo que abalaria suas próprias crenças e fé e que isso, como dito, não caberia à escola. Busquei compreender melhor os motivos que o levaram a tomar aquela posição – ele pediu que fizesse um trabalho paralelo e não participasse das apresentações com o restante da turma. Replicou dizendo de uma experiência que teve em outra escola, inclusive nas aulas de sociologia, que o colocou numa situação desconfortável sobre sua própria religião, cuja crença foi exposta a críticas e ao debate; inclusive o posicionamento de sua família era o mesmo, de que não se tratava de um assunto a ser discutido publicamente, mas tolerado na sua privacidade.

A situação me arremessou num emaranhado de reflexões sobre a educação. Qual ação possível poderia tomar como professor diante daquela situação que me pareceu de uma evidente postura intolerante por parte do estudante? Quais os sentidos mobilizados com a proposta daquela aula e suas implicações? Qual o papel da escola na vida das pessoas e diante dos coletivos dos quais fazemos parte? Que tipo de concepção a respeito da escola aquele estudante articulou para fundamentar seu posicionamento? Afinal para quê a escola?

Professor, você alugou um triplex na minha cabeça

Ensinando Filosofia no Cursinho Popular, e com a minha experiência no mestrado, percebi que, para além de ensinar o conteúdo de Filosofia para a prova do Enem, é necessário trabalhar uma filosofia que construa realidades e as destrua também, que proporcione leituras de realidades e, por vezes, ações nessas realidades. Eu entendi que não posso simplesmente falar de “um bando de caras brancos”, heterossexuais, ricos e europeus para um pessoal que não faz parte desse padrão e desse grupo. Então, o que fazer, se eu preciso falar desse bando de filósofos? Eu falo, mas de maneira subversiva.

Eu chamo de subversiva, por exemplo, a possibilidade de apresentar aos meus alunos, que são da periferia, a oportunidade de pensar com Descartes, mas, ao mesmo tempo, pensar contra ele, e mais: pensar em sua realidade e como o pensamento cartesiano pode, ou não, nela interferir enquanto estudante. Por um lado, no ensino médio regular, o professor de Filosofia tem uma “tornozeleira eletrônica” que vigia e conduz o que ele precisa ensinar, baseando-se em um currículo que precisa ser seguido e cumprindo (e comprovado que foi cumprido). Por outro, eu tenho, nos cursinhos populares, uma liberdade maior. Eu também tenho uma grade conceitual que preciso cumprir, mas não tenho os “tentáculos” do Estado me segurando e limitando a minha possibilidade de lecionar Filosofia com conceito, mas também de uma maneira mais rizomática[9], em que o pensamento vai se ramificando em outros pensamentos livres. Eu defendo que a experiência filosófica deve ser o fio condutor da prática de se fazer filosofia. E tem dado certo, porque muitas coisas diferentes surgem durante as aulas.

Certa vez, uma aluna me disse: “Professor, você alugou um triplex na minha cabeça.” De imediato, eu não entendi a expressão, mas, curioso, procurei o significado no Google e obtive o seguinte resultado: “Afetar psicologicamente alguém a ponto de a pessoa não parar de pensar em alguma coisa que você tenha falado ou feito”. Em resumo: um processo de ensinar Filosofia, que afete o aluno e o impulsione a ter suas experimentações filosóficas, não como um devaneio sem rigor, mas como uma prática de criação livre que o capacite e, ao mesmo tempo, instigue-o a criar confluências de pensamento.

Um cursinho popular age na esfera da micropolítica[10]. É por meio de ações capilares que as relações de saber-poder vão moldando-se e se transformando em outra coisa. Essas ações agem como a ferrugem que vai oxidando metais ferrosos, deteriorando-os aos poucos. Assim é o ensino de Filosofia na educação popular: ele age nas relações sociais, paulatinamente deteriorando e corroendo os lugares de privilégio.

Desconcluindo e descontinuando

Afinal, qual é o “para quê” da área de humanidades no Ensino Médio? É na experiência situada de encontro entre diferentes sujeitos que seus sentidos vão se costurando, de forma dinâmica, criativa e, muitas vezes, improvável. Modos de existir da educação desde a provocação de inquietamentos e a multiplicação de resistências. Encontros angustiantes que, partilhados, rompem a inércia política e despertam movimento. Viagens sem sentido que reverberam na gente e apontam para a construção de sentidos outros. Conflitos que (re)produzem o difícil reconhecimento da diversidade. Triplex alugados nas nossas cabeças que instigam a criação de confluências de pensamentos. Que o ensino de humanidades nos permita, ao menos, imaginar.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a Educação como prática de liberdade. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla- São Paulo. 2013. Editora Martins Fontes, 2013.

LAHIRE, Bernard. Viver e interpretar o mundo social: para que serve o ensino de Sociologia? Revista de Ciências Sociais, v. 45, n. 1, p. 45–61, jun. 2014.

Notas

[1] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2013/09/130908_eua_snowden_petrobras_dilma_mm

[2] https://www.brasildefato.com.br/2020/07/25/vamos-dar-golpe-em-quem-quisermos-elon-musk-dono-da-tesla-sobre-a-bolivia

[3] https://www.adorocinema.com/filmes/filme-229359/

[4] https://wikileaks.org/

[5]https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-04/entenda-o-que-e-investigacao-jornalistica-panama-papers

[6]https://www.poder360.com.br/paradise-papers/bono-aparece-nos-paradise-papers-por-compra-de-shopping-na-lituania/

[7] Petrobras foi espionada pelos Estados Unidos, apontam documentos (Reportagem completa do Fantástico)

[8] Em inglês: National Security Agency – NSA, Agência de Segurança Nacional.

[9] Ideia utilizada pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari na obra “Mil Plâtôs”, onde se utilizam de um conceito da botânica, para sinalizar uma abordagem sem centro, hierarquia, ordem ou profundidade de se pensar filosoficamente. Diferencia-se então, da perspectiva cartesiana de Filosofia, onde se entende que ela é um pensamento estruturado e estanque como uma árvore, com raiz, caule e galhos.

[10] A micropolítica, segundo Michel Foucault, trata das práticas políticas e relações de poder em níveis locais e cotidianos da vida social. Diferentemente da macropolítica, que se concentra em estruturas amplas de poder, a micropolítica investiga as dinâmicas de poder em interações diárias, relações interpessoais, discursos e práticas cotidianas. Foucault destaca a importância de compreender essas formas descentralizadas de poder para uma análise abrangente do funcionamento do poder na sociedade.

ALVES, Árllan Maciel Cunha Alves. EGONU, Bruno Ikennah Bratz. NASCIMENTO E SILVA, Gabriel. FERREIRA, Mateus Santos. GOMES, Pedro Henrique de Oliveira. Crônicas de um sentido não enunciado: para quê humanidades no ensino médio? Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número 29, junho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Marcello Nicolato

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *