Indicação | Relatos e vivências de profissionais na Educação Infantil: reflexões sobre a docência

O volume 1 do livro “Relatos e vivências de profissionais na Educação Infantil: reflexões sobre a docência”, organizado por Lomba (2021), Editora Appris, é resultado de um processo formativo e dialógico, em que professores/as, diretores/as, pedagogos/as e pesquisadores/as narram e mesclam suas trajetórias profissionais, pessoais, familiares, formativas… tão humanas e marcantes, onde as histórias de vida se revelam nas entrelinhas das histórias de profissão e vice-versa. Esse coletivo – denominado Grupo de Estudos e Escuta de Pesquisadores/as e Professores/as da Educação Infantil (GEEPPEI) – mostra, por meio da escrita reflexiva sobre seus processos de formação, que nos (trans)formamos e nos constituímos, também, nas relações com os nossos pares e que “ninguém constrói novas práticas pedagógicas sem se apoiar numa reflexão com os colegas” (NÓVOA, 2019a, p. 10).

Em seus 19 capítulos, com profissionais cheios de uma vontade pulsante de transformar as condições de trabalho e formação, desfilam histórias de superação, de parcerias, de inclusão/exclusão, de ausência de políticas públicas, de conquistas, inquietações e reflexões sobre a docência, o cuidado e a educação de bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas nas instituições de Educação Infantil (EI).

Nóvoa (2019b) assinala que “é na complexidade de uma formação que se alarga a partir das experiências e das culturas profissionais que poderemos encontrar os caminhos necessários para a formação de professores” (p. 206). Dessa forma, é na interlocução com sua teoria que os capítulos do livro se desenvolvem: na articulação entre elementos da trajetória de vida, da teoria pedagógica e das injunções político-institucionais. Para Nóvoa (2019a), “tornar-se professor” obriga a refletir sobre as dimensões pessoais, profissionais e coletivas do professorado, mas também a “compreender a complexidade da profissão em todas as suas dimensões: teóricas, experienciais, culturais, políticas, ideológicas, simbólicas etc.” (p. 6). Esse aporte teórico se traduz na obra, que, segundo a organizadora, tem como objetivos: (a) favorecer a formação continuada de professores/as; (b) fortalecer o diálogo entre pesquisadores/as e profissionais do campo da EI; (c) estimular debates em torno das tensões e dos desafios presentes no trabalho na EI (LOMBA, 2021, p. 19).

Cabe aqui ressaltar que no livro há pontos que demarcam um grande diferencial: 

  • coloca em evidência, na maioria dos capítulos, a voz de quem está na dinâmica diária de uma instituição de EI, percebida nos relatos, de onde emanam sentimentos, lutas, resistências e valores;
  • as condições da produção da obra geraram um percurso formativo que se constituiu como um movimento dialógico no GEEPPEI, “instaurando processos coletivos de trabalho” (NÓVOA, 2019a, p. 10). Foi desenvolvida uma metodologia de formação, em que –  após o convite para escrever sobre suas práticas e histórias inspiradoras – ocorreu um primeiro momento entre a organizadora e cada um dos/as autores/as: período de escritas, leituras, reescritas e reflexões para maior aprofundamento de cada temática. Na segunda fase, iniciou-se – entre os/as participantes – a revisão coletiva de cada texto, novas indicações de leituras e ajustes finais;
  • é a primeira publicação de muitos/as autores/as: “sonho da primeira publicação de alguns, sonho de serem ouvidos/as, sonho de compartilhar uma experiência e conversar sobre ela, mas, sobretudo, o sonho de criar novas possibilidades de formação de nós para nós mesmos” (LOMBA, 2021, p. 11).

E, especialmente, lemos/ouvimos um uníssono harmônico em que esses profissionais da educação expressam o desejo e “a beleza de ser um eterno aprendiz” (GONZAGUINHA, 1982), na tentativa de – na arte do encontro, do diálogo e do afeto – despertar, em todos/as, o desejo de aprender, buscar e inovar… sempre! Afinal, “a formação nunca está pronta e acabada, é um processo que continua ao longo da vida” (NÓVOA, 2019a, p. 9).

Neste viés, considerando a diversidade de experiências e as especificidades com as quais se delineiam os percursos formativos, podemos conhecer o lugar do saber produzido e articulado com os outros aspectos tão relevantes da vida pessoal, social, da carreira, da instituição onde estes/as profissionais se inserem e são autores/as, em seus textos e contextos, como veremos a seguir:

No Capítulo 1, O TORNAR-SE PROFESSORA DE CRIANÇAS DE 0 A 5 ANOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES SOBRE A DOCÊNCIA, Noeme Rosa de Carvalho nos conta de sua experiência como docente e as reflexões que realiza cotidianamente sobre sua prática. As memórias trazidas nos remetem a uma docência para além da formação acadêmica, ao destacar o valor da escuta, a empatia e o respeito aos direitos das crianças e de seus familiares.

No Capítulo 2, NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA, TINHA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO: PERCURSO E OBSTÁCULOS QUE NÃO IMPEDIRAM UMA PROFESSORA TRANS DE SER DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL, Leona Freitas Costa nos conta a sua trajetória pessoal, o reconhecimento como mulher trans e o “nascimento” da professora Leona. Aborda situações de descobertas, percalços, sofrimentos e obstáculos quanto à descoberta e aceitação da sua sexualidade e de seu nome social, tanto na vida pessoal quanto na profissional, como professora trans na EI.

No Capítulo 3, “SUA MÃO SEGURANDO A MINHA”: TRAJETÓRIA DE VIDA DE UMA PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SEUS APRENDIZADOS SOBRE PLANEJAMENTO E RESPEITO AO TEMPO DE UMA CRIANÇA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO DO AUTISMO, Denise Alves dos Santos nos conta suas vivências desde a infância, quando o “ser professora” já estava presente em suas brincadeiras com outras crianças. Ao nos dizer sobre o respeito às capacidades e individualidades de cada ser, princípio que perpassa suas interações com outros profissionais, crianças e seus familiares, apresenta-nos o desenvolvimento do seu trabalho e interações com uma criança com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

No Capítulo 4, ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO E AS ESPECIFICIDADES DA EDUCAÇÃO INFANTIL: REFLEXÕES DA MINHA VIVÊNCIA COMO PROFESSORA DE EDUCAÇÃO INFANTIL, Elizabeth Vieira Rodrigues de Sousa relata sua vivência como professora de EI inserida na proposta do projeto Alfaletrar, na Rede Municipal de Lagoa Santa (MG). A autora nos apresenta a sua experiência com alfabetização e letramento e suas considerações sobre a relação da construção e apropriação da linguagem escrita diante das especificidades da EI.

No Capítulo 5, O CHORO DOS BEBÊS NA CRECHE: CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO CULTURAL, Fernanda Pedrosa Coutinho Marques discorre sobre seu encontro com os bebês a partir de suas experiências pessoais, profissionais e acadêmicas. Por meio do diálogo com os estudos da Psicologia Histórico-Cultural, nos apresenta o choro dos bebês como forma de comunicação e resistência, nos convidando a refletir sobre práticas de cuidado e educação com os bebês nas instituições de EI.

No Capítulo 6, QUANDO A ROTINA PROVOCA APRENDIZAGENS: VIVÊNCIAS DE BEBÊS NA EDUCAÇÃO INFANTIL, Viviane Tolentino da Silva, ao descrever o processo organizacional dos tempos, espaços e materiais do espaço educativo, nos alerta para a necessidade de construção de práticas profissionais que considerem os bebês como o centro do fazer pedagógico, para que constituam suas relações e vivências em um espaço coletivo com qualidade.

No Capítulo 7, CUIDADO, INFÂNCIAS E CRIANÇAS: A INTEGRAÇÃO ENTRE A EDUCAÇÃO INFANTIL E O ENSINO FUNDAMENTAL, Rubia da Conceição Camilo aborda o processo de transição das crianças entre a EI e o Ensino Fundamental (EF) sob a perspectiva do cuidado. Ao refletir sobre as ações de cuidado que permeiam as relações dos profissionais da EI, nos convida a pensar nas crianças para além da ótica de alunos/as, considerando as suas infâncias e especificidades.

No Capítulo 8, SER DOCENTE NA EDUCAÇÃO INFANTIL: COMO LIDAR COM A PRÓPRIA AGRESSIVIDADE E COM A AGRESSIVIDADE INFANTIL?, Walquíria de Souza Euzébio recorre aos estudos psicanalíticos de Winnicott para defender uma compreensão não moralista e mais ampliada da agressividade como um dos possíveis caminhos para a construção de outras práticas educativas que incluam também o acolhimento às crianças.

No Capítulo 9, O SURGIMENTO DAS PROPOSTAS PEDAGÓGICAS DE UMA PROFESSORA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: O OLHAR INVESTIGATIVO DAS CRIANÇAS, Danielle Rocha Rosa Martins destaca, em seu percurso profissional na EI, as suas interações com as crianças, os diálogos e as observações que realiza anteriormente às suas propostas de trabalho com a turma, as quais são constantemente replanejadas diante das ações e falas das crianças, numa escuta atenta diante dos interesses e curiosidades do grupo.

No Capítulo 10, DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO POR MEIO DE PROJETOS NA CRECHE E PRÉ-ESCOLA, Márcia Canuto de Oliveira destaca as marcas deixadas pelas suas professoras desde os seus primeiros tempos de escola. Apresenta, ainda, resultados de seu trabalho por meio de projetos, cujo objetivo é estimular perguntas e descobertas junto às crianças, argumentando que o desenvolvimento desse trabalho envolve troca de saberes entre crianças, professoras e famílias.

No Capítulo 11, REFLEXÕES PEDAGÓGICAS A RESPEITO DAS RELAÇÕES ENTRE MERENDEIRAS, CRIANÇAS E PROFESSORAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL, Bárbara Souza Teixeira nos propõe pensarmos sobre um grupo que costuma ter o trabalho invisibilizado e pouco discutido: as merendeiras. Ao pesquisar como as merendeiras e crianças se relacionavam dentro de uma instituição de EI em Belo Horizonte (MG), a autora nos convida a pensar sobre o lugar que essas profissionais ocupam e podem ocupar nas instituições de EI.

No Capítulo 12, A COMUNICAÇÃO COM OS FAMILIARES DAS CRIANÇAS E A BUSCA POR AMBIENTES ACOLHEDORES: O PERCURSO E AS ESCOLHAS DE UMA DIRETORA DA EDUCAÇÃO INFANTIL, Rosane Gomes Ribeiro Bittar, diretora de uma instituição de EI, narra sobre sua trajetória profissional, compartilhando ações relacionadas ao seu trabalho de comunicação com os familiares das crianças que, por acolher e valorizar a troca de informações, funciona como importante suporte ao grupo de professoras em suas parcerias com os familiares.

No Capítulo 13, DESAFIOS QUE ENVOLVEM O TRABALHO DA PEDAGOGA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: TRABALHANDO NA CRECHE E PRÉ-ESCOLA EM UMA MESMA INSTITUIÇÃO, Maria Amélia Reis Miranda, ao nos apresentar a sua trajetória profissional, traz considerações sobre a sua rotina diante de diferentes planejamentos para creche e pré-escola e a divisão do seu tempo entre o trabalho que realiza junto às professoras, com a direção da escola e com os familiares das crianças.

No Capítulo 14, REFLEXÕES SOBRE OS HOMENS PROFESSORES NA EDUCAÇÃO INFANTIL E SUAS RELAÇÕES COM AS PRÁTICAS DE CUIDADO E EDUCAÇÃO COM CRIANÇAS PEQUENAS, por Waldinei do Nascimento Ferreira nos convida a refletir sobre a presença/ausência do professor homem na EI. Apresenta dados de sua experiência e de seus colegas de profissão, também professores na EI de Belo Horizonte (MG).

No Capítulo 15, “NÃO TRABALHAMOS COM ESTE TIPO DE ESTÁGIO”: POSSIBILIDADES, DESAFIOS E LIMITES DE SER PROFESSOR HOMEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL, Antonio Marcos de Sousa Barbosa Miranda indaga: “Quantos pedagogos homens nós conhecemos? E desses, quantos educam e cuidam de crianças pequenas na EI?” Apresentando dados dos últimos censos escolares com o número de professores homens na EI no Brasil e no município de Belo Horizonte (MG), o autor descreve os seus desafios, percebidos durante a graduação, que o encorajaram a pesquisar sobre essa temática.

No Capítulo 16, MENINAS BRINCAM COM BONECAS E MENINOS SOBEM EM ÁRVORES? REFLEXÕES SOBRE EDUCAÇÃO, GÊNERO, INFÂNCIA E VIDA PROFISSIONAL, Paula Isabela Cardoso Resende ilustra a correlação existente entre escolhas profissionais e a construção dos gêneros feminino e masculino na EI. A partir de relatos da professora Noeme, argumenta sobre a necessidade de o educador fomentar a liberdade individual da criatividade infantil, sem amarras em nome de limitações baseadas em ser menino ou ser menina.

No Capítulo 17, A DIMENSÃO BIOGRÁFICA DOS/AS DOCENTES NA EDUCAÇÃO INFANTIL COMO UM DOS ELEMENTOS DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL: NARRATIVA, EXPERIÊNCIA E FORMAÇÃO, Maria Lúcia de Resende Lomba se apoia nos estudos desenvolvidos por Nóvoa ao considerar a dimensão biográfica como um dos elementos da formação dos profissionais da EI. Ao trazer reflexões sobre as especificidades da docência na EI em contexto coletivo, nos alerta para a necessária construção de formas de escuta e acolhimento dos/as profissionais da EI, para que possam aperfeiçoar seus modos de escutar e acolher os bebês, as crianças e seus familiares.

No Capítulo 18, “A LITERATURA É UMA VIAGEM”: A ARTE DE TRANSMITIR O PRAZER DE LER HISTÓRIAS AOS PROFESSORES DE BEBÊS E CRIANÇAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL NA FRANÇA, Laurence Lefèvre nos conta sobre seu trabalho como professora responsável pelos cursos de literatura infantil em um centro de formação para futuros Educadores da Primeira Infância (EJEs) em Paris, na França. Define a literatura como um ato livre, sem expectativa de resultados, nem metas a serem alcançadas. Nessa perspectiva, para os educadores, a literatura infantil é pensada como mediação.

No Capítulo 19, ENTRE TEATRO, INFÂNCIA, MEMÓRIA, POESIA E VIDA COMPARTILHADA: CARTA DE UM PROFESSOR-PESQUISADOR-ARTISTA EM FORMAÇÃO, Charles Valadares Tomaz de Araújo nos apresenta em uma carta o seu percurso de pesquisa entrelaçado ao teatro, à educação e à infância e provoca reflexões a partir da concepção de infância estudada ao longo de sua trajetória pessoal, artística e educacional. O texto é um convite para nos aproximarmos dos modos de ser e estar das crianças como um princípio de vida e pesquisa.

Enfim, o livro dá visibilidade às práticas de professores/as de contextos e histórias tão diferentes, mas que se costuram no afeto, compromisso, acolhimento, competência e disponibilidade ao trabalho. A leitura do livro revela a importância da formação continuada, da produção de saberes docentes, da escrita autoral, da escola como formadora também de professores/as e da reflexão sobre as realidades educacionais tão distintas que se apresentam nesse país continental, no campo e na cidade. Lomba (2021) diz que “cada capítulo não tem a intenção de apresentar um ponto final, mas suscitar novas perguntas e reflexões sobre a temática” (p. 26), onde não há prescrições, mas  incompletudes e trocas, onde todos/as podem e devem falar!

Esse livro é indicado para professores/as, diretores/as, gestores/as, coordenadores/as pedagógicos/as, pedagogos/as, pesquisadores/as, familiares de crianças da EI, enfim, para todos os seres apaixonados, estudiosos, contadores de histórias, curiosos pela dinâmica das existências e experiências que desfilam no tempo e no espaço da vida… Mas preparem-se, pois, como nos sussurra Manoel de Barros (2010, p. 347), nesse livro “há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas”.

REFERÊNCIAS

BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010.

GONZAGA JÚNIOR, Luiz (Gonzaguinha). O que é, o que é? Caminhos do coração. EMI-Odeon, 1982.

LOMBA, Maria Lúcia de Resende. (Org.). Relatos e vivências de profissionais na Educação Infantil: reflexões sobre a docência. Curitiba: Appris, 2021.

NÓVOA, Antônio. Os Professores e a sua Formação num Tempo de Metamorfose da Escola. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 3, p.1-15, 2019a.

http://dx.doi.org/10.1590/2175-623684910

NÓVOA, Antônio. Entre a formação  e a profissão: ensaio sobre o modo como nos tornamos professores. Currículo sem Fronteiras, v. 19, n. 1, p.198-208, jan./abr. 2019b.

foto Lucia

Lúcia Helena Schuchter

Doutora e mestre em Educação (PPGE/UFJF) e graduada em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Integrante, desde 2009, do Grupo de Pesquisa Aprendizagem em Rede (GRUPAR/UFJF), coordenado pela Profª Drª Adriana Rocha Bruno. Professora aposentada da rede municipal de ensino de Juiz de Fora (MG), tendo trabalhado na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Seus temas de estudo: letramentos, tecnologias digitais da informação e comunicação, políticas públicas, formação docente.

ORCID:  https://orcid.org/0000-0003-1424-309X

Contato: lh.schuchter@gmail.com

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