Sobre mim uma sentença: as palavras como suposta herança metafórica da ditadura civil-militar no contexto escolar do Brasil

Ditado, bomba, dever de casa, quadro negro, castigo, grade – algumas palavras que persistem em minha memória quando reflito sobre a minha fase escolar no final dos anos 1970. Elas carregam o peso de uma época difícil em nosso país, atravessando a história, etimologicamente com significados diversos, embora chegando até mim como heranças metafóricas da ditadura. Em conjunto, elas atribuem-me uma sentença, uma condição de vida marcada pela restrição da liberdade. 

O Brasil enfrentou os anos mais desafiadores de sua história política e social durante a ditadura civil-militar, que se estendeu de 1964, após o golpe fatídico, até a abertura democrática em 1985. Esses últimos anos foram marcados por lampejos indicativos de declínio do regime e ascensão de ideias democráticas, culminando na eleição presidencial e nos discursos promissores de um futuro melhor para todos e todas (e todes?), acompanhados pela elaboração de uma nova Carta Constituinte. 

Ainda não consigo afirmar se esses anos tensos passaram despercebidos por mim e por meus familiares, embora perceba os reflexos na minha formação identitária, ideológica e no resultado do sistema neste corpo que sobreviveu a esse regime ditatorial, excludente e repressor. Meus pais possuíam pouca instrução escolar, como muitos conterrâneos naquela época, e raramente participavam ou se envolviam na cena política local e muito menos nacional, onde tudo era controlado e ocultado para a suposta paz social e a ordem, com o consequente progresso, que demorava a chegar naquele cerrado do oeste mineiro. Com eles, a regra era simples e clara: obedecer e não questionar os mestres, evitando dissabores na escola, pois “caderno e material escolar andam pela hora da morte”!

 Tínhamos acesso limitado à televisão, não havia banca de revista na cidade, e muito menos o hábito de ler jornais; as notícias nos alcançavam de maneira distorcida, de forma semelhante ao que acontece atualmente com a disseminação irrefreada de fake news por meio de aplicativos de mensagens. A Biblioteca Pública era um oásis na cidade e era para lá que eu me dirigia, após as aulas, ávido por devorar a leitura dos livros disponíveis, desde Monteiro Lobato até a série Vaga-Lume e outros que nos eram permitidos acessar, após passarem pelos órgãos de censura de então.

Entretanto, foi durante esse período que vivi minha fase inicial da escola primária, iniciando no pré-escolar em 1977 na Escola Estadual Martinho Fidélis, na cidade de Bom Despacho (MG), recém-chegado da zona rural onde vivíamos até então, para essa nova experiência na cidade. Enfileirados e uniformizados, após um sinal sonoro, que demarcava os horários, “familiarizados” com a rotina disciplinar da escola, naqueles pátios vigiados por inspetores, “supervisoras” pedagógicas, diretoras e outros mais, eu tentava dar meus primeiros passos rumo à alfabetização na sala de aula, embora já tivesse começado em casa, incentivado por uma irmã com habilidades de professora, três anos mais velha.

Logo surgiram os primeiros desafios. A turma era composta por alunos de um bairro da cidade de pessoas com poucos recursos na época, o atual quilombo da Tabatinga, que tinham e ainda têm uma língua própria, dos negros da Costa Africana. Além da carência econômica, muitos colegas não contavam com apoio familiar suficiente para realizar suas tarefas, enquanto eu, um pouco mais privilegiado pelo suporte de minha irmã, acabava por atrapalhar o trabalho da professora, que frequentemente me punia com reguadas na cabeça e deveres dobrados, como escrever de dois em dois até mil ou até acabarem as folhas do caderno ainda sem pauta, para que eu me acalmasse e permitisse que os demais avançassem na aprendizagem das sí-la-bas. 

Por outro lado, havia também alunos de classe média na turma, alguns filhos de grandes fazendeiros e militares, cujo comportamento muitas vezes causava desconforto aos demais. Anos mais tarde, decidi transpor fragmentos dessa história para a literatura e no livro “Roupa Suja de Inconfidente (Editora Ramalhete, 2020), essa experiência ainda me incomodava e, portanto, decidi escrever sobre ela:

Mas, ali, na sala de aula da cidade, tudo acontecia de um jeito diferente. Tinha os outros meninos, de banho tomado, uniforme engomado, roupas limpas, pasta nova, caixa com vinte e quatro lápis de cor, merendeira abarrotada, filho de fulano de tal, de sicrano. Gente importante. Além disso, tinha o quadro negro, o castigo no milho e ainda o dever de casa. Não compreendia o porquê de tantas regras, lições de vida urbana. Era um menino do mato. (p. 44) 

E continuava confrontando o contexto disciplinar com as atitudes ousadas dos alunos da época, muitas das vezes sem saber qual seria o castigo: 

A nossa turma era de crianças levadas, meninos donos do próprio nariz, inquietos. Hoje seriam considerados hiperativos. Apenas alguns mais retraídos, como eu, que vieram da roça. Mas ela (Tia Anne) sempre reclamava: estava difícil manter a disciplina. No que ia dar esses meninos desobedientes, topetudos? (p. 45) 

Interessante que também transpus para meu livro as lembranças dos conteúdos e das condições difíceis enfrentadas pelas professoras, sobretudo no que diz respeito ao reconhecimento por parte do governo estadual, responsável pela contratação e pagamento na época:

Com elas (as professoras), aprendi a distinguir gineceu de androceu, a identificar e desenhar todas as partes de uma flor, desde corola, sépala, pétalas (…), a respeitar as professoras, didáticas, malcasadas, como pejorativamente as classificou o governante ignóbil nos idos dos anos 80, (…), a se sujeitar às regras, aos padrões normativos de uma sociedade patriarcal e tradicional. (p. 52) 

O livro prossegue e mais à frente, ao abordar a fase juvenil e recordar minha participação no exército brasileiro, durante o final do período ditatorial, assim escrevi, dando ênfase à formação escolar que obtivera até então, fortalecidas pelas disciplinas de OSPB (Organização Social e Política Brasileira) e EMC (Educação Moral e Cívica): 

Lembranças desse período de provação da minha condição masculina? Talvez a de que fui o único recruta que acertou a cor na qual se vê inscrito Ordem e Progresso na bandeira nacional, verde, por causa do positivismo comtiano, que só eu sabia lá o que era isso, àquela época, numa inocência e carência de educação pública dos anos da ditadura recém-terminada (?). Diante de tanta rudeza, disciplina, ordem, poucas palavras doces, femininas, quase nenhum afeto, aprendi a ser homem neste mundo seletivo, excludente, homofóbico e machista. (p. 53) 

A questão pessoal da infância e adolescência nesse universo restrito, disciplinado e controlado dos anos da Ditadura Militar no Brasil ainda me incomodava. Voltei a tratar do tema no terceiro livro publicado, o romance “Sobre mim uma sentença” (Ramalhete, 2024), no qual o personagem da ficção carrega o peso dessa minha experiência pessoal de autor: 

Fui encaminhado para a escola, mais por obrigação, para que não fosse mais um analfabeto vagando por aquelas plagas, e talvez porque havia as metas governamentais e as exigências legais do projeto Mobral, que definiam as diretrizes educacionais naquele período da ditadura militar no Brasil, em contraponto às inovações pedagógicas freireanas, que surgiam alhures. 

Vivi lá, no Grupo Escolar, o desconforto de ser a criança negra da Tabatinga, que não tinha caderno e nem mesmo caixa de lápis de cor, tendo que me valer das doações e empréstimos dos colegas brancos. E para completar o quadro, aparentava um jeitinho efeminado. Fui alocado na turma de segunda classe, pois na primeira só podiam frequentar os ricos e brancos abastados, que tinham aulas particulares e merendeiras e vinham com uniformes limpos e tiproques (sapatos, na língua da Tabatinga) lustrosos. (p.26) 

Hoje, essas palavras me vêm, herdadas de uma experiência escolar de poucas décadas atrás, um pouco gastas, usadas com um peso menor. Tento conectá-las de forma indisciplinada, buscando construir novas e inusitadas sentenças, na tentativa de reescrever essa parte da história que cotidianamente me esforço para reescrever, para que nos sirva de lição e para que saibamos defender a educação libertadora e a democracia “acima de tudo”. 

REFERÊNCIAS: 

Araújo, Vander André (2020). Roupa Suja de Inconfidente. Belo Horizonte, MG: Editora Ramalhete.

Araújo, Vander André (2024). Sobre mim uma sentença. Belo Horizonte, MG: Editora Ramalhete.

VANDER ANDRE ARAUJO

Vander André Araújo

Nasceu em Bom Despacho/MG. Do banco da escola ao Banco do Brasil, foi menor aprendiz, atuou gestão de pessoas, processos e negócios, Gestor no CCBB, vindo a se aposentar em 2020. É Bacharel em Direito e Filosofia (UFMG), especialista em Gestão Empresarial, Administração Mercadológica, com MBA em Gestão do Desenvolvimento Regional Sustentável. Autor dos livros Roupa Suja de Inconfidente (Ramalhete, 2020); Pode Durar o Tempo de uma Música (Gulliver, 2022) e Sobre Mim Um Sentença (Ramalhete, 2024).

E-mail: vander_andre@uol.com.br

ARAÚJO, Vander André.Sobre mim uma sentença: as palavras como suposta herança metafórica da ditadura civil-militar no contexto escolar do Brasil. Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).

Imagem de destaque: Vander André Araújo

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