PAI AFASTA DE MIM ESSE “CÁLICE”: Colégio Central da Bahia: epicentro político de resistência secundarista (1964-1985)
Cíntia Borges de Almeida
Professora da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC, pelo Departamento de Ciências da Educação – DCIE, e pelo Programa de Pós-Graduação em Educação – PPGE. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação – GRUPPHED e do Grupo de Pesquisa Portal do Bicentenário. Ilhéus-BA, Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8084-9888 .
E-mail: cbalmeida@uesc.br
Iure Alcântara dos Santos Barros
É professor da Secretaria de Educação do estado da Bahia, Mestre em Educação pelo Programa de Pós Graduação em Educação- (Políticas Educacionais e Gestão Escolar) Universidade Estadual de Santa Cruz( UESC), Pós graduado em Metodologia do Ensino de História pelo Centro Universitário Internacional. (UNINTER), Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal da Bahia.(UFBA). Professor Colaborador do Curso de Pós-Graduação lato sensu em História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (HCABI) IF Baiano/Campus Governador Mangabeira. Integrante do Grupo de Pesquisa em Política e História da Educação – (GRUPPHED), e do Núcleo de estudos afro-brasileiros e Indígena (NEABI), Embaixador oficial da Olimpíada Nacional em História do Brasil (ONHB- UNICAMP) e mentor da Associação brasileira de incentivo à Ciência – ABRIC.
E-mail: iurealcantara@gmail.com
Pai afasta de mim esse cálice
Pai afasta de mim esse cálice
Pai afasta de mim esse cálice
(BUARQUE; GIL, 1978).
Durante a ditadura civil-militar muitas foram as tentativas de silenciar a nação. As censuras foram uma das estratégias mais utilizadas para impedir as articulações que declararam “abaixo a ditadura”. A arte sempre foi um meio utilizado para tocar em temas sensíveis e libertar a sociedade de algemas impostas para o silenciamento, mas o golpe de 1964 embora impusesse o “cálice”, encontrou muitos sujeitos que se recusaram a beber do silêncio.
Ao nos remetermos aos anos 60 percebemos uma instabilidade política no país, sobre influências também externas da Guerra Fria em um mundo bipolarizado pelas disputas do socialismo e do capitalismo, foi criado um inimigo para a afirmação do poder capitalista; era o comunismo, que ameaçava a ordem mundial. No Brasil, militares e setores da alta burguesia começaram a criar mecanismos para derrubar o governo de João Goulart, considerado comunista por propor com apoio de diversos movimentos sociais reformas de base. Com isso, setores “conservadores” estimulam no país uma desordem visando justificar o golpe muito bem-planejado por partidos de oposição a Jango. Para a historiadora Nadine Habert, “os militares associados aos interesses da grande burguesia nacional e internacional, incentivados e respaldados pelo governo norte-americano, justificaram o golpe como defesa da ordem e das instituições contra o perigo comunista” (HABERT, 1996, p. 8).
Com o golpe efetivado e com apoio dos setores dominantes, era preciso conter as resistências que vieram de diversas frentes da sociedade e que se deu em várias regiões do Brasil. Embora as resistências fossem muito intensas na região sudeste, é importante destacar que em Salvador-BA tivemos diversos grupos que ousaram não se calar ao autoritarismo vigente; tivemos manifestações de trabalhadores da Petrobrás, da Universidade Federal da Bahia e um forte movimento de resistência secundarista no Colégio Central da Bahia.
Neste artigo, discutiremos uma das formas de controle da ditadura que foi pelo meio educacional. Já está consolidado no campo da história da educação, pesquisas que apontam como as disciplinas Educação Moral e Cívica, e Organização Social e Política do Brasil visaram o esvaziamento do ensino crítico do componente curricular História, para a construção de um patriotismo social que legitimava o governo vigente.
Durante a ditadura, a escola foi alvo do governo para impor à juventude ideias “conservadoras” e desviar o obscurantismo ditatorial. Nessa premissa, o Colégio Central da Bahia se torna um espaço de intensa vigilância e resistência.
O Colégio Central, que hoje é uma das mais importantes escolas públicas da Bahia, sediada na área central de Salvador, durante a ditadura se tornou um local de censura, vigilância e repressão, ao mesmo tempo que um importante epicentro político de formação e resistência ao projeto ditatorial. Ao nos debruçarmos sobre o arquivo escolar da instituição que guarda importantes registros dessa escola centenária, percebemos o quanto os livros, fotografias, diários, atas de reuniões, livros de pontos, notícias do grêmio estudantil apontam para o comprometimento de estudantes secundaristas para resistir ao autoritarismo avassalador que viu no Central um lugar ideal para impor o patriotismo social, mas que encontrou uma juventude articulada e comprometida em resistir à censura, através da formação política e da arte.
Como optamos por investigar as resistências analisando o arquivo da escola, através da produção dos próprios sujeitos que deixaram registros do que se passava naqueles anos, é fundamental nos cercarmos do conceito da cultura escolar, nos aproximando do que define Dominique Julia “que a escola não é somente um lugar de aprendizagem de saberes e sim um lugar de hábitos e comportamentos; tal como a sociedade influencia a escola, a cultura escolar também influencia a sociedade” (JULIA, 2001, p.12). Isso nos impele a refletir que diferente do que foi difundido que a escola era um aparelho ideológico estatal em que o governo impõe projetos de controle que perpassa pela escola, a cultura escolar nos auxilia a dizer que isso não acontece sem tensões e que existe uma cultura de resistência que se analisada aparece nos registros dos sujeitos. Ainda sobre essa premissa é importante notar os apontamentos de Luciano Faria Filho que possibilita-nos perceber a defesa da ideia da “escola como parte da construção do projeto de nação, sendo inconcebível pensar a formação do território nacional sem refletir sobre as instituições escolares”. O autor afirma que “a escola é construída e vai se construindo, muitas vezes, para impor o código e as regras que assegurem a continuidade do privado e não do público” (FARIA FILHO, 1998, p.147).
Ao adentrarmos o arquivo escolar do Central[1], encontramos diversos registros do que foi a ditadura nessa instituição, mas optamos por apresentar apenas um dos mecanismos de censura e resistência que ocorreu logo nos anos de 1966 em que a ditadura vinha se consolidando, que foi a construção e tentativa de exibição da peça “Aventuras e desventuras” criada por Carlos Sarno com auxílio de outros estudantes da escola e que fazia parte do grupo de teatro conhecido como GATEB.
Figura 1 – Trecho da peça “Aventuras e desventuras de um estudante”, a peça proibida no Colégio Central
Fonte: arquivo escolar do Colégio Central (1966)
No documento acima, encontramos o registro do trecho da peça que fora escrita pelos próprios estudantes, censurada e proibida de ser apresentada no pátio da escola pela direção de Walter Reuter, na época diretor do Colégio Central. No roteiro foi possível perceber que a mesma continha críticas sobre, “dificuldades dos alunos se manterem na escola”, “proibição das práticas culturais” e “críticas aos problemas estruturais da escola e autoritarismo por parte da direção”. Ao associarmos o contexto vivenciado em todo o país, somado às reivindicações estudantis do Central e a proibição da peça a ser apresentada, era perceptível que o Colégio Central vivia controlado sob a ditadura. Como nos afirma Michel Foucault em VIGIAR E PUNIR, “a disciplina é o adestramento dos indivíduos para obter com ele o controle total”. Ainda para o autor, “todo indivíduo passa a ser vigiado e controlado pelo poder, para moldar os corpos” (FOUCAULT, 1975, p. 89). Os estudantes que criaram e buscaram encenar a peça e dispostos a não aceitar a censura tiveram seus nomes listados no inquérito disciplinar da direção do Central.
Figura 2- Lista de alunos do inquérito disciplinar da escola que participaram da criação e tentativa de encenação da peça “aventuras e desventuras” proibida pela direção do Central.
Fonte: arquivo escolar do Colégio Central (1966)
Os estudantes envolvidos após abertura do inquérito foram expulsos da escola. Ao mesmo tempo que as notícias de importantes jornais da Bahia destacavam as agitações políticas que estavam acontecendo no Colégio Central, tivemos o aumento da vigilância intensa na escola e confrontos com a polícia da Bahia. Destacava-se o Colégio Central como um lugar de resistência, e outras instituições como a Universidade Católica de Salvador (UCSAL), Universidade Federal da Bahia (UFBA), escolas públicas da Bahia e Mosteiro de São Bento apoiaram as manifestações dos estudantes e criaram estratégias para que a peça fosse encenada. A primeira tentativa se deu na UFBA, onde foi divulgado para a comunidade escolar e da própria universidade, mas no dia combinado, houve uma intensa repressão da polícia que fez com que a peça não fosse apresentada. Uma última tentativa era com o apoio do Mosteiro de São Bento, ligado à Igreja Católica, mas com a censura ao mosteiro, a peça deixou de ser apresentada.
Embora a peça nunca tenha sido apresentada, a atuação dos estudantes secundaristas do Central em um período de intensa repressão se tornou notícia e inspiração para diversos outros atores sociais da Bahia, que encontrou no Central também um lugar de formação política para atuar contra a ditadura. Com tantas mobilizações, a direção foi trocada, os estudantes do inquérito retornaram à instituição, mas era só o começo da repressão e das resistências dos estudantes do Central que duraram até o final da ditadura.
É importante destacar que quando investigamos o arquivo escolar do Colégio Central da Bahia, os documentos encontrados apontam que do início ao fim da ditadura, a instituição foi alvo de intensa repressão, ao mesmo tempo em que também de resistência. Para Diana Vidal:
[…] o arquivo escolar pode fornecer elementos para a reflexão sobre o passado da instituição, das pessoas que frequentaram ou frequentam, das práticas que nelas se produziram e mesmo sobre as relações que se estabeleceram em seu entorno, cidade ou região (VIDAL, 2005, p. 24).
Assim como a própria história do arquivo escolar nos mostra que mesmo após o golpe houve inúmeras tentativas de sucatear a escola, acabar com o arquivo escolar e até mesmo de fechar o Colégio Central.
Ao mesmo tempo o seu legado de luta nos ensinou que a democracia é uma das mais importantes conquistas da sociedade e com ela veio o direito da escola pública; e nenhum governo autoritário por mais sombrio e repressor que seja, como se mostrou os vinte um anos de ditadura, irá destruir sujeitos que decidem não se calar e continuar acreditando no que dizia Anísio Teixeira, “só existe democracia efetiva, quando existe escola pública”.
Atualmente o arquivo do Colégio Central contém diversas prateleiras organizadas em caixas e pastas com numerações, nome dos documentos, para facilitar a pesquisa de uma escola com 185 anos. Isso ajuda professores e pesquisadores na seleção de materiais para pesquisa e produção de aulas sobre cada período da escola, mas que com a percepção de empreitada desempenhada, aqui não há uma conclusão sobre os efeitos da repressão sobre os sujeitos do Colégio Central e sim, em linhas finais, um convite à reflexão sobre demandas políticas, sociais, econômicas, culturais e ambientais, que se fazem na Educação. “Que continuemos a lutar!”.
Referências
FARIA FILHO, L. M. O espaço escolar como objeto da história da Educação: algumas. Reflexões. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 141-159, 1998.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. Ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
HABERT, N. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Ática, 1996.
JULIA, D. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, n. 1, p. 9-44, 2001.
VIDAL, D. Cultura e práticas escolares: uma reflexão sobre documentos e arquivos escolares. In: SOUZA, R. F.; VALDEMARIN, V. T. A Cultura Escolar em debate: questões conceituais, metodológicas e desafios da pesquisa. Campinas, São Paulo: Unesp/FCLAr, 2005.
[1] Para se debruçar sobre a história e importância do arquivo escolar do Colégio Central da Bahia; http://www.biblioteca.uesc.br/biblioteca/bdtd/202110852D.pdf
BARROS, Iure Alcântara dos Santos. ALMEIDA, Cíntia Borges de.PAI AFASTA DE MIM ESSE “CÁLICE”: Colégio Central da Bahia: epicentro político de resistência secundarista (1964-1985). Revista Brasileira de Educação Básica, Belo Horizonte – online, Vol. 7, Número Especial – O Golpe de 1964 e a Ditadura Civil-Militar na escola básica brasileira, julho, 2024, ISSN 2526-1126. Disponível em: (link). Acesso em: XX(dia) XXX(mês). XXXX(ano).
Imagem de destaque: Ginásio da Bahia: Colégio Central – Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (EDUCAÇÃO / FOT.1496)