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Alfabetização científica na Educação Infantil

nubia

Núbia Amorim, afroindígena, professora da rede pública a 17 anos, pós graduada em Educação Ambiental e pesquisadora do Ensino de Ciências por meio das tecnologias ambientais em espaços formais e não formais.

Contato: afroindigenanubia@gmail.com

Aumentar o nível de entendimento público da Ciência é hoje uma necessidade, não só como um prazer intelectual, mas também como uma necessidade de sobrevivência do homem (LORENZETTI; DELIZOICOV, 2001, p. 49). 

As crianças são sujeitos de direitos e precisam aprender, participar e se desenvolver integralmente nas relações que são estabelecidas com elas mesmas, com os outros e com o meio. Desse modo, compreendemos a importância dos conteúdos de ciências e meio ambiente desde a educação infantil como meio de promover a alfabetização científica das crianças (BRASIL, 2018).

A alfabetização científica, ou letramento científico, precisa fazer parte do desenvolvimento integral da criança. O mundo científico não está isolado do processo de constituição do indivíduo, afinal, pertence à estrutura de tudo que nos cerca e, de forma significativa, da formação integral do sujeito na construção da sua identidade e subjetividade.  

Por esse motivo, a seguinte explanação trata de um determinado contexto, relatado sob a ótica da potencialidade das práticas pedagógicas na educação infantil de uma escola pública. O ponto de partida é a Travessa Alcato, Vila Calú, distrito do Jardim Ângela, uma escola localizada na periferia da zona sul da cidade de São Paulo, construída em cima de um córrego, em área de mananciais.

 De acordo com Moraes, “é importante que o aluno vivencie, a partir de situações do cotidiano, a ciência” (2010, p. 20), para que ele possa compreender a realidade em que vive e atuar sobre ela. Desse modo, a escola optou por inserir a sustentabilidade como princípio em seu Projeto Político Pedagógico (PPP), por entender que o ambiente da escola, seu entorno e cotidiano dos estudantes têm uma relação intrínseca. 

O documento que orienta as práticas da escola é o Currículo da Cidade: Educação Infantil (SÃO PAULO, 2019). Ele foi construído com base no documento da UNESCO, sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS-UNESCO, 2017) que buscam “garantir uma vida sustentável, pacífica, próspera e equitativa na Terra, para todos, agora e no futuro” (UNESCO, 2017, p. 6).

A escola acredita que “o conceito de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 não se refere apenas à dimensão ambiental, mas também às dimensões social e econômica” (SÃO PAULO, 2019, p. 57). Dessa forma, os conteúdos e metodologias apresentados na escola sobre a alfabetização científica têm o compromisso de promover a educação para o exercício da cidadania. 

Dentro dessa perspectiva, apresentamos as vivências ocorridas na turma da Sala Amarela, composta por 35 alunos de quatro e cinco anos de idade, que foram divididos entre o ensino remoto e o ensino presencial, na escola de educação enfantil EMEI Chácara Sonho Azul, no ano de 2021. O foco do relato são as atividades realizadas no projeto de agrofloresta, que possui uma horta escolar projetada com plantio de plantas frutíferas da mata atlântica, trabalha com a recuperação de solo e a diversidade de alimentos. A agrofloresta é um projeto da escola inteira e sua manutenção é realizada por meio do trabalho coletivo.

Vivências na horta escolar 

As vivências aqui relatadas referem-se às experiências de campo e aulas ao ar livre, dentro do projeto da horta escolar e alimentação, e têm como base as concepções apresentadas pelos ODS:

As dimensões dos ODS voltadas ao planeta fazem alusão à importância do cultivo de uma relação de afeto e respeito com a natureza desde a primeira infância. Para tanto, é essencial que bebês e crianças possam conviver o mais intimamente possível com a natureza e os elementos que a constituem: terra, água, ar, luz, calor, além dos reinos que a compõem em sua diversidade mineral, vegetal e animal (SÃO PAULO, 2019, p. 60).

O propósito das visitas à agrofloresta da escola foi mediar a construção dos conhecimentos científicos pelas crianças, para que pudessem observar, analisar, interagir e entender a realidade em que vivem. As atividades tinham a duração de quarenta e cinco minutos diários, estabelecidos na linha do tempo de cada turma. Para sua realização a professora contou com o auxílio da estagiária da educação especial e a participação de mais uma funcionária. A execução foi estruturada por meio das seguintes etapas junto às crianças: conversa sobre os objetivos da incursão e direcionamento das atividades; visita monitorada; observação-ação e mediação das educadoras para aquisição de novos conhecimentos; volta para sala e registro individual; roda de conversa e criação de novos roteiros elaborados com as crianças. 

As primeiras visitas tiveram o propósito de apresentar o espaço para as crianças e elas estabelecerem o processo de aproximação e investigação. A caminhada incluía descer as escadas, atravessar o refeitório, o campo aberto e o parque até chegar ao terreno.  Imediatamente as crianças reconheceram as bananeiras e a planta Dente de Leão. As primeiras investigações foram sobre o feijão-guandu, pois ele estava florido e tinha vagens. Elas começaram a estabelecer a relação flor e fruto. Também observaram a presença de abelhas e outros polinizadores e, para ampliar essa reflexão e elaboração dos conhecimentos, incluímos vídeos e livros sobre o tema. Como intervenção, o grupo de crianças propôs o plantio de flores para atrair mais insetos polinizadores, como abelhas. Para contemplar o pedido delas, plantamos girassóis. Com o passar do tempo, as crianças puderam observar que suas hipóteses sobre as flores atrairem os insetos estavam corretas. 

Depois da apresentação do espaço do terreno, iniciamos as incursões para o planejamento da horta e para definir o local mais adequado para o plantio. A orientação para as crianças era observar a incidência do sol e a proximidade com a torneira de água. Elas indicaram três possíveis locais. O primeiro era próximo às bananeiras, por ser úmido, então pesquisamos sobre plantas que precisam de muita água. O segundo local mencionado foi embaixo das árvores. Desse modo, pesquisamos sobre plantas que crescem na sombra. O terceiro apontamento delas foi o fundo do terreno, que era propício para o plantio em consórcio.  

Após o mapeamento dos locais disponíveis e o que se poderia plantar em cada lugar, iniciamos a pesquisa na internet usando o computador e a televisão da sala. Abrimos o site de pesquisa e os alunos foram elaborando as perguntas. O que plantar perto das bananeiras? O que plantar na terra molhada? O que plantar na sombra? O que plantar onde tem muito sol? Da pesquisa levantamos os nomes e as imagens das plantas, em seguida organizamos uma lista de mudas que precisavam ser compradas e as plantas que só seriam remanejadas de outros espaços.

 As ações foram distribuídas ao longo dos meses de 2021 e as responsabilidades divididas entre a turma. Seguimos os processos de escolher as hortaliças, as raízes e as ervas para compor o canteiro em consórcio da turma. O próximo passo foi iniciarmos as sementeiras. Nesse encontro com a terra, a água e o sol as crianças compreenderam como é a primeira germinação. O encantamento delas sobre o processo fez com que começassem a coletar e trazer todo tipo de semente que encontravam na rua, em casa ou na alimentação e trouxessem para a aula. 

Na sequência explicamos sobre os canteiros em consórcio e a ação de proteção que uma planta exerce sobre a outra, assim como influenciam a qualidade do solo e inibem a presença das pragas que comem e prejudicam as verduras. Passamos, então, a pesquisar como nutrir a terra para a horta crescer forte. Forramos os canteiros com folhas, grama seca e galhos que quebramos, pois a cobertura orgânica protege a terra do sol e a deixa úmida. Nesse momento, o grupo começou a questionar se todos os bichinhos tinham que ir embora e, por esse motivo, começamos a trabalhar com o roteiro sobre os insetos. 

As atividades de campo e pesquisa-ação junto às crianças foram desenvolvidas no caminhar do processo de observar, instigar a formulação de perguntas e hipóteses que, conforme iam surgindo, serviram de guia para a construção de roteiros vivos que se concretizaram nas vivências. As visitas continuaram para regar os canteiros e forrar o solo. O tempo para as plantas crescerem não foi de uma espera passiva pelas crianças, mas, um período de novas descobertas. O plantio feito pelas crianças refletiu na hora do lanche e do almoço, estavam conectadas por meio das leituras, das idas à cozinha, do aprender sobre os alimentos e sobre como nutrir a composteira da sala de aula.   

Parte significativa das aprendizagens das crianças foi sobre como cuidar do solo, auxiliar na regeneração, recuperar o espaço de degradação, abastecer as leiras do terreno e manter as composteiras da sala. Juntos discutimos sobre a transformação dos resíduos, o que é material orgânico e o que é reciclagem. As crianças indagaram sobre como a comida sumia e depois só viam o adubo. Novamente utilizamos vídeos e livros para auxiliar nas explicações. As minhocas tornaram-se as melhores amigas da turma. Algumas crianças as pegavam nas mãos, outras sentiam nojo e outras as esmagavam. As reações foram variadas, mas, ficou a certeza para a turma de que as minhocas nos ajudavam a cuidar do planeta. 

A natureza foi seguindo seu curso e iniciamos as orientações para as coletas de folhas, galhos, pedras, para compor as atividades de Coleções da Agrofloresta. O grupo de crianças foi seriando, classificando, comparando suas composições e descobrindo diferenças e proximidades entre elas. As crianças pediram para fazer uma miniexposição, para ver o que os amigos tinham encontrado, o que se desdobrou em uma mostra de arte florestal. Parte dos itens coletados foram usados para desenhos e colagens e outra parte virou um móbile para a sala. Ao longo do tempo renovamos e reaproveitamos os elementos para criar brinquedos, poções mágicas e presentes. As crianças puderam levar alguns itens para casa e repassavam as informações e descobertas para suas famílias. Estas, por sua vez, nos relataram a empolgação das crianças com as aprendizagens e descobertas.

A amoreira da horta foi um grande experimento para as crianças. O nosso direcionamento foi o de colher e comer os frutos mais roxos, pois estes estariam mais doces. Imediatamente eles começaram a provar as frutinhas de todas as cores e a fazer trocas com os colegas, explicando uns aos outros que cada cor teria um sabor diferente. Relataram que já haviam comido antes e que sabiam onde havia outras amoreiras. Colheram as amoras e as organizaram em sequência, por cores e tamanhos. Entraram debaixo da amoreira e investigaram o percurso de seu crescimento, conversaram com os colegas e contaram histórias. A árvore passou a ser um ponto de encontro e pesquisa para as crianças, com elacriaram uma relação afetuosa e de respeito. Para elas, as folhas possuíam forma de coração, o que significava que era a árvore do amor, então se tornou tema de poesia.

As crianças também observaram os pássaros e iniciaram uma pesquisa autônoma sobre eles, compartilharam histórias, trouxeram informações de casa, desenharam, falaram do ninho, dos ovos e dos sons. Para estimulá-las, levei para sala uma coleção de apitos que possuem os sons de pássaros. Isso gerou a dúvida sobre como se prendia a música dos passarinhos no apito, que não estava ligado na tomada e não estava gravado, como no Youtube. Não tivemos tempo para dar andamento a esta pesquisa e encontrarmos as respostas para as tantas outras perguntas das crianças que surgiram com as investigações e provocações que o projeto da agrofloresta aflorou, pois a demanda foi tanta que os dias se tornaram curtos.

Chegamos no tempo da colheita na horta e, para esse momento especial, elaboramos um rito de comemoração, que foi pensado e articulado com cantigas circulares. Os alimentos foram direcionados à cozinha da escola para serem servidos em algumas refeições. 

Algumas considerações

O trabalho feito sempre em conjunto de plantar, regar, colher e cozinhar foi pautado nos direitos de aprendizagem e nos campos de experiências previstos na BNCC (2018) para a educação infantil com a intenção de promover a alfabetização científica, o protagonismo e a aprendizagem integral das crianças. 

O relato não consegue evidenciar os olhares, as expressões faciais diante das descobertas sobre como ocorrem os processos, os corpinhos que pulam e correm  para chamar os amigos para dividir achados e fazer trocas, as sensações experimentadas profundamente por meio do  tato, do olfato, da visão e do paladar que só são possíveis quando as crianças encontram sentido no que aprendem.

Durante o ano foi possível observar modificações nos hábitos alimentares das crianças, tanto pelo acompanhamento das refeições escolares como pelo relato das famílias em casa. O vocabulário científico das crianças foi ampliado e e evidenciado no uso de termos como plantar, colheita, floresta, insetos, frutíferas, folhas, terra, crescimento, oxigênio e tantos outros exemplos de conceitos construídos e muitas hipóteses que elas levantaram. O grupo se apropriou do conhecimento sobre os processos de investigação e pesquisa através das experiências. Ao relatar e registrar suas observações, eles construíram novos conhecimentos, muitas vezes validando as situações vividas nos espaços não escolares.

As vivências não têm o propósito de terem um fim em si mesmas, nem de acumular conteúdos, mas de auxiliar as crianças a entenderem os processos investigativos como meio para construir novos conhecimentos e atuarem em sua realidade. As experiências ajudaram na construção do conhecimento e a despertar o desejo dessas crianças de cinco anos de idade  por continuarem seu percurso de descobertas. Para isso espera-se que o processo de ensino-aprendizagem continue de forma significativa, auxilie na construção da identidade e subjetividade de cada criança de forma integral e prazerosa.

Desse modo, destaca-se a importância dos conteúdos de ciências e meio ambiente para a alfabetização científica das crianças, de modo que elas aprendam, compreendam a realidade em que vivem e se tornem cidadãs críticas, reflexivas, promovendo intervenções voltadas para superação dos problemas ambientais e sociais.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.

DIAS, Alexandre Pessoa et al. Dicionário de agroecologia e educação. 1 Ed – São Paulo; Expressão Popular; Rio de Janeiro; 2021.

LORENZETTI, L.; DELIZOICOV, D. Alfabetização científica no contexto das séries iniciais. Revista Ensaio – Pesquisa em Educação em Ciências, v.3, n.1, 37-50, 2001.

MORAES, Jerusa Vilhena de. A alfabetização científica, a resolução de problemas e o exercício da cidadania: uma proposta para o ensino de Geografia. 2010. 246 f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

SÃO PAULO (SP). Secretaria Municipal de Educação. Coordenadoria Pedagógica. Currículo da cidade: Educação Infantil. – São Paulo: SME / COPED, 2019.

UNESCO. Educação para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: objetivos de aprendizagem. Brasília: UNESCO, 2017. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000252197 . Acesso em: 29 dez. 2021.

Imagem de destaque: wikimedia.org

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